Na área das políticas públicas, o método comparativo é essencial. Compreender por que países semelhantes recorrem, perante o mesmo problema, a medidas políticas diferentes nem sempre é simples. Analisar o resultado dessas políticas é crucial para decisões futuras. Quando analisamos as políticas nacionais adicionando o confronto com as políticas europeias, o desafio passa, muitas vezes, por compreender por que certos estados aplicam o direito comunitário como previsto, outros vão além do exigido pelo direito comunitário e outros, pelo contrário, apresentam maior resistência à adoção do direito comunitário.
A história da transposição da diretiva comunitária 96/67/CE sobre assistência em escala, publicada em 1996, é certamente um caso de estudo na resistência à correta transposição do direito comunitário. A continuação dessa resistência à tendência europeia e mundial do setor, é que está atualmente em jogo com a Groundforce, a qual apenas sobreviveu num quadro de dependência setorial e concorrência manietada.
Note-se que não há nada de errado em escolher soluções diferentes da maioria, exceto quando essa solução passa pelo incumprimento do direito comunitário, que é uma violação das obrigações do estado Português. O problema é que o ganho da solução escolhida tem de ser considerado e são mais raros os casos em que se ganha por se seguir contra a corrente do que aqueles em que se acompanha a corrente.
É verdade que a situação atual da Groundforce em muito resulta da crise dos passados dois anos e da extraordinária quebra de receitas do setor em resultado da não realização de voos. Todos os atores vivem num ecossistema setorial em que os problemas sofridos pelas companhias aéreas sempre se repercutiriam nos seus fornecedores de serviços. Contudo, pensar que a situação atual da assistência em escala resulta apenas da crise dos últimos dois anos, ignorando a relação entre esta e a transportadora aérea nacional, sua principal cliente e acionista, é olhar a questão de uma forma superficial, mas, acima de tudo, ignorar que o quadro de 1996 não é o quadro de hoje, que o modelo atualmente existente, além de duvidosamente legal, é anacrónico, e claramente remamos contra a corrente quando a corrente está a ficar mais forte.
A história da transposição da diretiva comunitária 96/67/CE sobre assistência em escala, publicada em 1996, é certamente um caso de estudo na resistência à correta transposição do direito comunitário.
O que isto quer dizer é que a crise do setor não trouxe um novo problema à assistência em escala, apenas o iluminou. Vejamos:
Em outubro de 1996 a União Europeia publicou a Diretiva 96/67/CE com o objetivo de liberalizar a atividade de assistência em escala nos aeroportos comunitários e promover a concorrência no setor.
O anexo à diretiva indica onze categorias de atividade de assistência à escala, nomeadamente assistência a passageiros (categoria 2), assistência a bagagem (categoria 3), manutenção de aeronaves (categoria 8), assistência em rampa (categoria 5), entre outros.
De forma geral, pode dizer-se que desde a aterragem de uma aeronave até a sua partida, a companhia aérea depende de diferentes serviços de assistência em escala que têm de ser realizados até ao voo seguinte, e para a realização desses serviços existem empresas de assistência em escala, como a Groundforce. Em alternativa, o operador pode requerer uma licença para realizar, ele próprio, a atividade de assistência em escala às suas aeronaves. Finalmente, nada impede um operador de realizar assistência em escala a terceiros, desde que não seja o operador dominante nesse aeroporto. Desta forma, um operador pode:
a) Ser cliente de assistência em escala contratando o serviço a um operador independente, como, por exemplo, em Portugal, a Groundforce ou a Portway.
b) Pode realizar o serviço às suas próprias aeronaves não dependendo de qualquer terceiro, por exemplo, a TAP realiza os serviços de assistência em escala que necessita aos seus voos sem recorrer a serviços de terceiros,
c) Pode ainda, acumular a atividade de assistência em escala com a sua atividade de operadora e realizar atividades de assistência em escala a terceiros. Por exemplo, a SATA realizar os serviços de assistência em escala aos seus voos e aos voos de outros operadores.
d) Adicionalmente, como a assistência em escala é composta por um conjunto de serviços, um operador poderá realizar alguns serviços e subcontratar a uma empresa de assistência em escala independente outros serviços, fazendo um conjunto das três opções anteriores.
Nos termos da diretiva, é referido nos artigos 6.º e 7.º que os Estados-Membros podem limitar o número de fornecedores de serviços de assistência em escala a um mínimo de dois fornecedores em quatro categorias de serviços. Em concreto, assistência à bagagem, assistência a operações em pista, assistência em abastecimento de combustível e óleo e assistência em carga e correio e seu tratamento. Adicionalmente, um dos fornecedores tem de ser independente do aeroporto ou da companhia aérea dominante no aeroporto. As limitações concorrenciais também se aplicam aos operadores que decidam fazer a sua própria assistência em escala.
Um dos pontos mais importantes na implementação da diretiva é a decisão sobre quantos fornecedores de serviço são permitidos operar no aeroporto. Esta decisão, que é tomada a nível nacional e por aeroporto, deve considerar o nível de exigência de serviços, o custo no seu fornecimento e a possibilidade de economias de escala no aeroporto em questão. Não obstante, a atribuição de licenças deve ser realizada por concurso e as licenças estão limitadas temporalmente.
Por outro lado, porque serviços de assistência em escala incluem dentro de si vários serviços, é necessário considerar a possibilidade de economia de âmbito, ou seja, a redução no custo do fornecimento de um serviço resultante do fornecedor do serviço fornecer também outros serviços. Por exemplo, num aeroporto onde o serviço comercial de passageiros seja dominante, um fornecedor de serviços de assistência a operações em pista pode criar uma economia de âmbito se também incluir serviços de assistência à bagagem. Contudo, como a assistência à carga segue um procedimento substancialmente diferente, poderá haver pouca ou nenhuma economia de âmbito, pelo que um fornecedor de serviços de assistência em escala acumular muitas categorias, na medida em que são heterogéneas entre si, pode não conduzir a uma economia de escala relevante nesse aeroporto.
Assim, neste momento, podemos concluir que:
a) a criação de economias de escala encontra-se limitada pelo conjunto heterogéneo de serviços fornecidos, o que incentiva a existência de um número elevado de fornecedores,
b) A criação de economias de escala, embora limitada, não é impossível, já que podem ocorrer sinergias entre serviços de diferentes âmbitos o que, adicionado à limitação geográfica e física do aeroporto pode, inversamente, conduzir à redução do número de fornecedores do serviço.
Se adicionarmos a este quadro:
a) A limitação ao número de operadores independentes no âmbito do processo de liberalização,
b) O facto de um número relevante de operações de assistência em escala serem realizadas pelos próprios operadores das aeronaves, ou pelos operadores dos aeroportos, em detrimento de operadores independentes,
c) Considerarmos que cada aeroporto tem especificidades locais na sua operação e funcionamento que dificultam a padronização da atividade entre vários aeroportos,
não é surpreendente que a assistência em escala ainda permita que operadores independentes relativamente pequenos, com baixo nível de profissionalização e de limitada capacidade de gestão se mantenham no ativo e representem uma realidade ainda expressiva na indústria de assistência em escala.
Ainda assim, a consolidação do setor, especialmente entre os operadores independentes de assistência em escala, não só se tem desenvolvido nos últimos anos como é uma inevitabilidade e para a qual os seguintes fatores têm contribuído:
a) A pressão concorrencial sobre as companhias aéreas tem levado a uma maior concentração destas na sua atividade principal, reduzindo o volume de operações realizadas pelas companhias aéreas em auto assistência,
b) A pressão concorrencial sobre as companhias aéreas tem também levado a uma maior pressão sobre a sua base de custos com a consequente redução das margens dos operadores independentes de assistência em escala,
c) Os operadores independentes de assistência em escala têm-se posicionado perante o crescimento das possibilidades de mercado através de processos de aquisições e fusões com outros operadores independentes,
d) As economias de escala apenas são possíveis através do aumento de movimentos assistidos, o que requer a expansão da atividade dos operadores. Por outro lado, a concentração das companhias aéreas através da consolidação do mercado e fusão destas permite, e potencia, a negociação com operadores independentes de contratos para um número elevado de estações, em detrimento da negociação com pequenos operadores independentes que apenas forneçam o serviço num número reduzido de aeroportos.
Este processo de fusões e aquisições de operadores de assistência em escala tem levado a uma alteração do cenário do proprietário típico, sendo que os operadores mais pequenos, com menor especialização, capacidade e conhecimento da indústria, têm sido afastados em prol de operadores mais sofisticados e centrados na indústria.
Estes operadores mais sofisticados e de maior dimensão, como por exemplo a Menzies, por operarem um número elevado de aeroportos têm obviamente uma maior capacidade negocial na aquisição e locação do equipamento, mas também a capacidade de negociar com os operadores contratos únicos que incluam os serviços em vários aeroportos. Desta forma, o operador pode, com apenas um contrato e com um valor médio por rotação, fechar um conjunto de destinos deixando ao fornecedor independente a responsabilidade de gerir a especificidade do aeroporto em questão.
…a sobrevivência da Groundforce sem que seja vendida a um operador independente de maior porte, parece cada vez mais depender de uma intervenção política (quer através de uma intervenção direta na companhia ou indireta através do seu acionista).
Fica, do exposto, claro que a tendência do mercado pode ser reduzida a duas ideias, em primeiro lugar, a perda de peso na atividade de assistência em escala dos aeroportos de companhias aéreas a favor dos fornecedores independentes e, em segundo lugar, a continuação da concentração dos fornecedores de assistência em escala.
Neste quadro internacional, caso a tendência do setor seja seguida, poderemos assistir à entrada de um operador independente de maior porte, quer através da compra da Groundforce, ou por substituição desta nas licenças relevantes. É expectável que, a acontecer, traga um benefício para as companhias aéreas em resultado da sua capacidade de baixar o custo do serviço por poderem negociar vários aeroportos com o mesmo fornecedor oferecendo um maior número de movimentos ao operador independente.
Por outro lado, as preocupações de paz social e de índole laboral com a entrada de um novo operador não parecem ter grande fundamento. Não se antecipa grande razão para este novo operador não criar um número de postos de trabalho, pelo menos, equivalente aos que se perderiam com a saída da Groundforce se assumir a mesma posição (ou, perdendo mercado para a Portway seria esta a aumentar o número de postos de trabalho) basicamente, como os operadores de serviços de assistência em escala não contratam só por contratar, são as companhias aéreas que ditam as necessidades de contratação dos fornecedores de serviço de assistência em escala ao determinar o número de movimentos no aeroporto. Assim, preços mais competitivos podem, quanto mais, conduzir a um aumento de número de movimentos e consequentemente à necessidade de mais postos de trabalho. Adicionalmente, o actual operador não apresenta garantias a nível de postos de trabalho, pelo contrário, já assumiu publicamente dificuldades em pagar salários e, em Novembro de 2010, realizou um despedimento coletivo em Faro que está ainda na memória de todos.
Finalmente, no que diz respeito ao fantasma da qualidade de serviço, essa resolve-se com a negociação competente de um Service Level Agreement pelas companhias aéreas.
A alternativa, ou seja, a sobrevivência da Groundforce sem que seja vendida a um operador independente de maior porte, parece cada vez mais depender de uma intervenção política (quer através de uma intervenção direta na companhia ou indireta através do seu acionista). Uma intervenção desta natureza terá de ser extremamente bem justificada e não será isolada, pois implica que se tome uma decisão sobre o seu maior cliente, será a TAP a ficar presa entre manter artificialmente a Groundforce, a seu custo, ou assumir diretamente a sua própria assistência em escala, numa escolha que sempre parecerá ser mais política que uma escolha de gestão.
Deixando-nos a perguntar, mais uma vez, o que é que estamos a tentar proteger?
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper