Afinal, existe uma “bala de prata” para reduzir as emissões: não o tão procurado combustível marítimo sustentável, mas uma decisão que as indústrias que mais emitem Gases de Efeito Estufa (GEE) e que são grandes utilizadoras do transporte marítimo vão tomar quando avaliarem o preço a pagar – simplesmente, reduzir a procura de transporte marítimo.
É isso que leio no relatório denominado “Financing the transition”, da Danish Ship Finance[i].
“Ao colocar um preço no carbono, direta ou indiretamente, a indústria de transportes marítimos está a por a nu alguns dos fundamentos ocultos da sua eficiência operacional. Ainda assim, as reduções mais significativas nas emissões de GEE podem não resultar de melhorias operacionais ou do fornecimento de combustíveis descarbonizados, mas antes de menores volumes de comércio marítimo.
O processamento de muitas matérias-primas é altamente intensivo em energia e, hoje, também intensivo em carbono. A visão de uma economia circular tem por objetivo manter as matérias-primas no ciclo pelo maior tempo possível. Os princípios da economia circular estão a transformar processos de fabrico e eficiência energética, a conservação e a redução de resíduos estão a ser aprimoradas. Essas tendências podem ter efeitos colaterais em larga escala na indústria de transporte marítimo.”
Transportar pedra
Tomemos como exemplo a indústria siderúrgica. Por cada tonelada de aço produzida, são emitidos para a atmosfera cerca de 1,8 toneladas de CO2. Em consequência, a siderurgia é responsável por 7% a 9% dos GEE a nível mundial. Estão a ser exploradas formas mais limpas de produzir aço, incluindo a utilização de hidrogénio em vez de coque (carvão betuminoso) como reagente. A tecnologia está na sua fase inicial de desenvolvimento, mas quando estiver madura eliminará o coque do circuito. O coque representa atualmente cerca de 5% dos granéis secos transportados por via marítima.
Por outro lado, a produção de aço pode ter lugar perto da mina, acedendo ao minério de ferro sem necessitar de utilizar o transporte marítimo e recorrendo a energias renováveis. O minério de ferro representa 28% do volume total de granéis secos transportados por via marítima a nível mundial. Consequentemente, irá ter lugar uma mudança estrutural na procura de transporte marítimo em simultâneo com a redução de emissões de CO2.
Outro exemplo, a produção de baterias elétricas. Em 2022, a Zâmbia e a República Democrática do Congo fecharam um acordo para o desenvolvimento da cadeia de valor das baterias elétricas. No passado mês de março, os EUA assinaram com os dois países um MoU com o mesmo objetivo (e, claro, também para combater a dominância da China naqueles mercados). A RDC produz 60% a 70% do cobalto a nível mundial e a Zâmbia é o oitavo a nível mundial na produção de cobre. São passos iniciais que podem ou não ter resultados efetivos, mas em caso afirmativo serão alguns milhões de toneladas de minérios a menos no transporte rodoviário, ferroviário e marítimo.
Um exemplo em Portugal. Em entrevista recente ao Expresso[ii] o CEO da Northvolt reafirmou que tem por objetivo arrancar em 2026 com “uma fábrica de conversão de minério/rocha em lítio” utilizável na produção de baterias elétricas. Tem como pressuposto que vai comprar o minério em Portugal, mas não sabe se a quantidade será suficiente e quando ele estará disponível. Nesse contexto, anuncia que vai importar “concentrado de lítio” do Canadá e da Austrália para produzir 32.000 toneladas de lítio. Ao mesmo tempo afirma que no processo produtivo 94% do peso da rocha será material residual. Se assim for, vai ter de importar anualmente 800.000 t de rocha da Austrália[iii] e vai ter de pagar pelo transporte marítimo – não os fretes atuais, mas preços corrigidos em função do carbono emitido em dezenas de viagens numa muito longa distância.
Cada um por si
Creio que os atores no terreno do comércio de matérias primas estão um pouco confusos e a cada um a olhar para o seu umbigo (isto é, para o “seu negócio”).
Na semana passada, o CEO da Trafigura, uma das maiores traders mundiais de matérias-primas e grande cliente do transporte marítimo, numa conferência internacional realizada em Santiago do Chile, alertou para a necessidade de os governos reconhecerem a importância do cobre e de outros metais industriais, incluindo o alumínio e o zinco, para a transição energética. Disse ele:
- “se não tivermos cobre suficiente, haverá um curto-circuito na transição energética”,
- “não me parece que a sociedade em geral esteja a percecionar totalmente a importância da mineração e do cobre quando se aborda a questão das mudanças climáticas”,
- “se quisermos descarbonizar, vamos precisar de metais para fazer isso. Teremos que desenvolver recursos. As pessoas têm de entender que nem tudo pode vir da economia circular. Pode ser que no futuro, mas não agora.”
A Danish Ship Finance prevê que vai ter lugar um “calibrar do comércio global” e que este irá favorecer os pioneiros da indústria de transporte marítimo que façam parcerias com os seus clientes e estabeleçam contratos de longo prazo para satisfazer as suas necessidades futuras de transporte marítimo verde.
Por seu lado, os armadores analisam com bastante ansiedade os enormes volumes de investimento que vão ter de efetuar na adaptação de navios existentes ou na aquisição de novos navios que nos próximos 25 a 30 anos cumpram com as orientações da IMO e da UE. Armadores que não têm controlo operacional sobre os navios (pois são geridos comercialmente por outros), que não sabem se vão beneficiar de poupanças futuras no combustível e que não sabem de que forma vão ser afetados pelos ratings ambientais (CII – Carbon Intensity Indicator) ou pelo preço do carbono (EU ETS – Emissions Trading System).
Num inquérito efetuado pela McKinsey[iv] junto de 21 empresas de transporte marítimo, publicado em abril 2023, apresentam-se, entre outras, as seguintes conclusões:
- 46% das empresas entrevistadas afirmam que já executaram programas-piloto envolvendo um ou mais combustíveis de baixo carbono e que definiram planos para a sua implementação futura, enquanto 35% afirmam não ter tomado qualquer ação.
- Um terço dos entrevistados diz que “não sabe” com que tipos de combustível vão as suas frotas operar em 2030 e em 2050. Os dois terços restantes expressaram expectativas divergentes sobre o combustível que irão utilizar no futuro.
- As projeções dos entrevistados para o consumo de combustível das suas frotas em 2050 dividem-se de forma equitativa entre uma ampla variedade de opções: amónia verde, biodiesel e fuelóleo lideram cada um com 16% a 17% do mix de combustíveis, seguidos por amónia azul, gás natural liquefeito (GNL), e-metanol, biometanol, biometano e e-metano, cada um representando uma quota de 6% a 10%.
- Dar o salto para um futuro com combustível mais verde irá exigir décadas de trabalho, mas os entrevistados têm claro o que irão precisar para acelerar a transição. Mais de 80% deles indicaram:
- maior disponibilidade de combustíveis alternativos,
- redução de custos dos combustíveis alternativos,
- disposição dos clientes para pagarem um “green premium” e,
- mudanças na regulamentação.
Calibrar o comércio mundial
A Danish Ship Finance prevê que vai ter lugar um “calibrar do comércio global” e que este irá favorecer os pioneiros da indústria de transporte marítimo que façam parcerias com os seus clientes e estabeleçam contratos de longo prazo para satisfazer as suas necessidades futuras de transporte marítimo verde.
Os volumes de carga a transportar disponíveis nos mercados spot irão reduzir-se, não apenas em resultado desses contratos de longo prazo, mas, igualmente importante, em função de uma menor procura de transporte por parte das indústrias subjacentes que trabalham para reduzir as emissões.
Nos contentores
No meio desta complexidade fica-se espantado com os “vanguardistas” como por exemplo a Hapag-Lloyd, que na passada semana anunciou a introdução do programa “Ship Green”[v] baseado na utilização de biocombustível.
Neste programa os clientes podem escolher entre três opções, que representam níveis diferentes de redução de emissões de CO2: 100%, 50% ou 25% das emissões no segmento marítimo dos serviços de transporte que lhe são prestados. Basta confirmarem os embarques através do website da Hapag-Lloyd. A empresa garante que utiliza biocombustível proveniente de matéria-prima de 2ª geração, isto é oriundo de cadeias de abastecimento certificadas e produzido a partir de resíduos, como óleos usados e gordura de origem animal. Também garante que nenhum óleo virgem comestível será incluído no combustível. As emissões assim “evitadas” são alocadas aos embarques com uma abordagem “book and claim”, o que significa que a Hapag-Lloyd pode afetar as emissões evitadas de CO2 a todos os transportes marítimos, independentemente dos navios e da rota utilizada.
Conclusão
Talvez os cenários futuros não sejam exatamente aqueles que cada um isoladamente está a desenhar para o seu negócio.
[i] Ver em https://www.skibskredit.dk/media/2327/shipping-market-review-may-2023.pdf
[ii] Expresso de 5 de maio 2023, entrevista de Miguel Prado a Paolo Cerruti (Cofundador da Northvolt).
[iii] O Canadá tem 2,9 milhões de toneladas métricas de reservas de lítio, mas as decisões recentes do Governo Federal e do Governo do Ontário não vão no sentido de exportar o minério/rocha ou o lítio, mas sim de refinar junto ás minas, produzir baterias e exportá-las. A Austrália vai pelo mesmo caminho. A China exporta automóveis elétricos. Ver em “Critical battery minerals may help nurture Canada’s EV sector – Stellantis and Volkswagen plan EV battery plants for Ontario, while the Canadian government is developing more processing capacity for minerals critical for EV batteries”, https://www.wardsauto.com/industry-news/critical-battery-minerals-may-help-nurture-canada-s-ev-sector, 5 de Abril 2023.
[iv] Efetuado pela McKinsey para o Global Centre for Maritime Decarbonisation, o Global Maritime Forum, e o Mærsk Mc-Kinney Møller Center for Zero Carbon Shipping. Ver em: https://www.mckinsey.com/industries/travel-logistics-and-infrastructure/our-insights/charting-fuel-choices-as-the-shipping-industry-sails-toward-net-zero, 20 de Abril 2023.
[v] Ver em https://www.hapag-lloyd.com/pt/company/press/releases/2023/05/-ship-green—hapag-lloyd-launches-climate-friendly-transport-so.html
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos