Neste artigo analisa-se a correspondência recente entre um grupo de cidadãos portugueses e a Comissária europeia dos Transportes sobre a questão da bitola ferroviária.
Mostra-se que as actuais políticas ferroviárias do Governo português, apoiadas por Fundos da União Europeia, estão mal fundamentadas do ponto de vista técnico-económico e vão conduzir a economia portuguesa ao isolamento e o povo português ao empobrecimento. Mostra-se que a solução para o problema é aplicar as políticas de transportes da União Europeia, acompanhadas de um aumento do esforço de investimento na ferrovia para níveis semelhantes ao de Espanha.
1 – Diagnóstico da situação
A maioria dos cidadãos portugueses acha o debate sobre a bitola ferroviária (distância entre carris) uma questão esóterica, que só interessa a meia dúzia de técnicos. Nada mais errado: a bitola ferroviária vai condicionar fortemente as suas condições de vida futura. Por exemplo, vai influenciar o preço de numerosos produtos no supermercado, o preço dos electrodomésticos, o valor dos salários e das pensões, e a qualidade dos serviços públicos em geral, incluindo o Serviço Nacional de Saúde. Como é possível que uma decisão tomada há mais de 150 anos em Espanha possa ter estes efeitos? O problema é que as trocas comerciais entre Portugal e o resto da União Europeia (UE), que representa 70% do comércio externo de Portugal, faz-se em 80% do valor por rodovia, um modelo que tende a ficar cada vez menos competitivo por razões ambientais e energéticas. Se nada se alterar, Portugal ficará isolado dos seus principais parceiros comerciais, sem capacidade de atrair, fixar e manter investimento, em particular industrial, devido ao aumento dos custos do transporte de mercadorias para a UE. As empresas industriais ou se deslocalizarão, ou só sobreviverão com políticas de baixos salários. Isso afectará muito negativamente a competitividade da economia e o nível de vida dos portugueses. Veja-se o exemplo de países que se isolaram da economia mundial, como a Albânia ou a Coreia do Norte, que são extremamente pobres.
Para resolver este problema, Portugal precisa de seguir as tendências das políticas europeias de transportes, fortemente motivadas pelos objectivos de sustentabilidade ambiental e energética de forma a garantir a competitividade da indústria e as metas de redução de emissões de gases de efeito de estufa até 2030 e neutralidade climática até 2050 fixadas pela Comissão Europeia (ver págs. 5 e 6). Estas políticas prevêem a transferência de 30% do transporte de mercadorias nas médias e longas distâncias para os modos ferroviário e marítimo até 2030 e 50% até 2050 (ver ponto 3 na pág. 10), pois estes modos são muito mais eficientes dos pontos de vista ambiental e energético que a rodovia. Por isso, Portugal precisa de uma ferrovia competitiva nas suas ligações ao centro da Europa, pois a via marítima, embora seja parte da solução, não o é na totalidade porque não é uma alternativa competitiva para muitos sectores de actividade, conforme se demonstra no “Inquérito sobre transporte internacional de mercadorias”, elaborado pela CIP (ver Anexo II). Actualmente, dos muitos milhões de toneladas de mercadorias transportadas anualmente entre Portugal e o centro da Europa, nem uma tonelada é transportada por ferrovia, porque esta é pouco competitiva. Isto deve-se às características técnicas das nossas linhas, das quais as principais são as rampas excessivamente inclinadas (que limitam o peso da carga rebocada), o comprimento das linhas de cruzamento e resguardo, que limitam o comprimento dos comboios, e os problemas de interoperabilidade, em particular a diferença da bitola ibérica (1668 mm) para a bitola europeia (1435 mm).
A bitola ibérica existe em Portugal e na rede convencional espanhola, e a bitola europeia (ou UIC) existe em toda a Europa ocidental, excepto Portugal. Esta diferença de bitolas não permite aos nossos comboios entrarem em França, onde as linhas estão em bitola europeia.
2 – Soluções
Para que a ferrovia seja competitiva, os comboios devem poder circular sem obstáculos técnicos (ver págs. 29 e 30), isto é a bitola, sistema de sinalização e sistema de alimentação eléctrica (estas são as características principais) devem ser os mesmos em toda a rede. Chama-se a isto interoperabilidade. Por isso, a UE definiu políticas com vista à criação de redes interoperáveis em toda a Europa, a Rede Core ou Rede Principal, a completar até 2030, e a Rede Comprehensive, mais vasta, a completar até 2050.
A Rede Principal é prioritária para financiamento e em Portugal consiste em 3 Corredores: Sines/Lisboa-Badajoz (Corredor Internacional Sul), Sines-Leixões (Corredor Litoral) e Aveiro- Salamanca (Corredor Internacional Norte). De acordo com o art.º 39 do Regulamento UE 1315/2013, entre outros critérios, estas linhas deverão ser todas em bitola europeia para que não existam obstáculos técnicos à circulação de comboios.
No caso português, a rede ferroviária existente data do século XIX e mesmo nos tráfegos internos enferma de falta de competitividade: i) no transporte de mercadorias, principalmente devido às rampas inclinadas e linhas de resguardo curtas, e ii) no transporte de passageiros, principalmente devido às numerosas curvas de raio horizontal reduzido que limitam as velocidades. Além disso, nos principais corredores de grande tráfego, a rede enferma também de falta de capacidade. Esta falta já existe actualmente nos troços extremos da Linha do Norte (Aveiro-Porto e Lisboa-Entroncamento) e existirá no futuro nos Corredores Internacionais, actualmente em via única, e sem capacidade para receber as grandes quantidades de comboios que deveriam receber de acordo com as políticas europeias.
Assim, a solução mais barata e eficiente para este conjunto de problemas é a construção de raiz de linhas novas de grande capacidade (via dupla) em bitola europeia e restantes características técnicas competitivas para tráfego misto (passageiros e mercadorias) nos 3 Corredores da Rede Principal da UE em Portugal, pois resolveria simultâneamente todos os problemas referidos.
3 – Política ferroviária actual do Governo português
Todas as Linhas portuguesas da Rede principal da UE consistem em modernizações de Linhas existentes e um troço novo entre Évora e o Caia/Badajoz, todos em bitola ibérica, e travessas de dupla fixação, ou polivalentes. Estas travessas permitem colocar os carris na posição da bitola ibérica ou da bitola europeia, como se pode ver na figura seguinte. No entanto, não permitem pôr 2 carris de cada lado para funcionar com ambas as bitolas em simultâneo. Ou seja, se uma linha estiver em bitola ibérica, a partir do momento em que se começa a mudar a posição dos carris para a bitola europeia, os comboios não podem circular entre as extremidades da linha até se concluir a obra na linha toda.
Não há qualquer plano do Governo português ou da IP para a mudança da bitola nas linhas da Rede Principal, (ver Anexo 1 deste link). O PNI 2030, que define os investimentos na ferrovia até 2030, não inclui qualquer referência a obras de mudança da bitola até 2030, data em que todas as linhas da Rede Principal deveriam estar em bitola europeia, de acordo com o Regulamento 1316/2013 da UE (considerando 14, pág. L 348/130), que Portugal tem a obrigação de cumprir.
4 – As políticas da União Europeia
A União Europeia disponibiliza comparticipações generosas (até cerca de 70% dos custos) para a construção dos Corredores da Rede Principal. Um dos mecanismos de financiamento, denominado CEF (Connecting Europe Facility, ou Mecanismo Interligar a Europa, em português) destina-se a financiar as linhas da Rede Principal. Para este efeito estas linhas devem respeitar as respectivas características técnicas de interoperabilidade, definidas no art.º 39 do Regulamento UE 1315/2013 já referido, incluindo a bitola europeia, de forma a permitir a livre circulação de comboios na União Europeia.
Como as linhas da Rede Principal em Portugal não respeitam as características técnicas de interoperabilidade da Rede Principal da UE, que a UE financia, um grupo de autarcas, empresários, técnicos e académicos portugueses, resolveu confrontar a Comissão Europeia com esta contradição (correspondência completa com a Comissária dos Transportes disponível em https://www.civil.ist.utl.pt/~mlopes/conteudos/Ferrovia%20Comissao%20Europeia/)
Assim, na 1.ª resposta (3.9.2020) a srª Comissária dos Transportes reafirmou claramente os objectivos da UE, que incluem a construção em Portugal até 2030 de uma rede de bitola europeia nos itinerários da Rede Principal da UE. A explicação para as incompatibilidades entre os objectivos das políticas europeias, por um lado, e as obras e planos de investimento do Governo português, por outro, veio na 3.ª resposta da Comissária (18.11.2020): a colocação das travessas polivalentes constitui uma 1.ª fase da migração para a bitola europeia, sendo a mudança da posição dos carris feita mais tarde, em obras ferroviárias como todas as outras obras ferroviárias na UE. Ora este pressuposto crucial está mal fundamentado. Enquanto em obras de modernização ou manutenção, a interrupção contínua da circulação de comboios se pode fazer por poucas horas durante a noite, em obras de mudança da bitola estas interrupções durarão meses ou anos (como se fundamenta no ponto 1 do Anexo no final deste artigo). Assim as políticas actuais do Governo para as linhas da Rede Principal da UE, que a Comissão tem apoiado, conduzem Portugal a uma situação de onde só será possível sair com custos gigantescos para a economia, porque as obras em linhas de grande tráfego previamente em funcionamento originarão longas interrupções de tráfego ou a necessidade de construir outras infraestruturas para as evitar.
As respostas da Comissária incluem também diversos outros argumentos, que também se ouvem em Portugal, mas são todos inconclusivos, ou irrelevantes, porque não conduzem a conclusões claras e bem fundamentadas. Estas questões referem-se nos ponto 2 a 4 do Anexo final deste artigo, para os leitores mais interessados nesses detalhes. Em particular demonstra-se que os eixos variáveis, a solução técnica que o Governo usa para dizer que Portugal não precisa da bitola europeia, não são uma solução competitiva para o problema da bitola. Acresce que se o fossem a Espanha também não precisaria da rede ferroviária de bitola europeia, em que investe todos os anos milhares de milhões de euros. Nos pontos 5 e 6 do Anexo referem-se outros erros das políticas ferroviárias a que a Comissária não respondeu nem comentou.
5 – O futuro
Para evitar o futuro de isolamento económico e empobrecimento a que as políticas actuais condenam o nosso país (referidos no ponto 1), a via mais directa seria, sem dúvida, a alteração das actuais políticas para as Linhas da Rede Principal da UE em Portugal. Na prática, trata-se de seguir o exemplo da Espanha, que se prevê que em 2025 ou próximo, já tenha a bitola europeia i) em toda a zona da costa do Mediterrâneo, servindo os seus principais portos e metade da sua economia, e ii) no País Basco, que é o principal obstáculo orográfico (e, portanto, de financiamento) à ligação da rede de bitola europeia de França para a parte ocidental da Península Ibérica. Portugal já não tem hipótese de até 2030 construir soluções competitivas e que satisfaçam as necessidades futuras da economia nos itinerários da Rede Principal. Mas pode minimizar esse atraso para poucos anos, se fizer um esforço de investimento na rede ferroviária de bitola europeia semelhante ao de Espanha ( ver Cap VI, págs 69 e 70).
Pelas respostas da Comissária, seria este, sem dúvida, o desejo da Comissão Europeia. O problema da política europeia é precisamente este, até agora tem-se ficado pelos desejos, sem fazer uso dos instrumentos financeiros e políticos de que dispõe para pressionar o Governo português a aplicar as políticas de transportes da UE. É este erro que a actual Comissária dos Transportes herdou e ainda não corrigiu. É essa capacidade de liderança que faz falta: srª Comissária, não ceda à tentação de esconder os erros agindo como se não os conhecesse, exija qualidade nas análises técnicas e corrija os erros do passado; promova um acordo tripartido Portugal-Espanha-UE, que defina as características técnicas (obviamente respeitando as regras aplicáveis da UE), timings e financiamentos das linhas internacionais da Rede Principal da UE em Portugal e Espanha; se lhe apresentarem soluções faseadas para cada linha, com base numa 1.ª fase com as linhas em bitola ibérica e travessas polivalentes, exija uma definição detalhada das restantes fases e respectivos timings de execução, e sujeite esses planos a escrutínio público.
Anexo – Argumentos inconclusivos e omissões
1 – Obras de mudança da bitola semelhantes a obras de manutenção
Em obras ferroviárias correntes de manutenção ou modernização, estas podem decorrer durante períodos nocturnos com interrupções de tráfego de poucas horas, ou com interrupções de poucos dias numa das linhas, de vias duplas, que assim funcionam em via única por períodos de tempo reduzidos e em extensões reduzidas, minimizando o impacto na circulação de comboios.
Em obras de migração de bitola será necessário interromper a circulação entre os extremos das linhas durante a totalidade da obra nessas linhas, pois basta mudar a posição dos carris em 1 metro de linha para criar uma descontinuidade que impede os comboios de passar até se executar a obra na linha toda. Consoante os casos, poderão ser meses ou até anos. Ora é aqui que está o problema: são os custos indirectos destas paragens da circulação de comboios para a economia, ou seja, para os utilizadores, empresas e passageiros, o que está em causa.
Os custos directos das obras de migração de bitola, que envolvem a mudança da posição dos carris e a substituição dos aparelhos de mudança de via (agulhas na linguagem comum) foram estudados em 2010 e rondavam, em média, meio milhão de euros por kilómetro (0.5 Meuros/km) (ver págs 28 e 29). Mesmo actualizando este valor para 0.65 Meuros/km para ter em conta os 10 anos decorridos, e considerando os portos e plataformas logísticas, não considerados nesse estudo, como a rede actualmente tem cerca de 2600 km, os custos directos da mudança da bitola na generalidade da rede existente usando travessas polivalentes seria da ordem dos 2000 a 2500 milhões de euros. Este valor é claramente inferior, por exemplo, ao que se pretende injectar na TAP ou se tem vindo a injectar no Novo Banco. O problema são os custos indirectos, que podem ser extremamente variáveis, dependendo das alternativas que existam para o transporte de mercadorias e passageiros nos itinerários em que a circulação de comboios tem de ser interrompida por períodos longos, e das quantidades a transportar. Por exemplo, actualmente a interrupção da Linha do Norte durante meses ou anos teria custos inquantificáveis para a economia, insuportáveis mesmo, por falta de alternativas ambiental e economicamente aceitáveis.
Um dos principais defensores da manutenção da exclusividade da bitola ibérica disse recentemente, num debate televisivo, que a mudança da bitola na rede actual custaria “largas dezenas de milhar de milhões de euros”. Dado que dos milhares de milhões de euros de custos, os custos directos seriam 2 a 2.5, as “largas dezenas” só se poderiam referir aos custos indirectos. Independentemente do rigor da estimativa, os custos indirectos seriam sempre significativos e resultariam de interromper a circulação em linhas em funcionamento, e não da sua introdução de raiz na construção das linhas portuguesas da Rede Principal da UE. Este custo seria nulo se estas fossem linhas novas, como é necessário para satisfazer as necessidades futuras da economia portuguesa, pois numa linha nova pôr os carris na posição da bitola ibérica ou da bitola europeia tem o mesmo custo.
2 – Os custos de mudar a bitola em toda a rede ferroviária existente
Na 1.ª resposta (3.9.2020) que recebemos da Comissária referiam-se os custos massivos da mudança da bitola em toda a península Ibérica. Isto é responder a uma questão que ninguém colocou e sem tirar qualquer conclusão em relação ao assunto em discussão. A mudança da bitola na rede existente é uma questão a equacionar depois da construção da Rede Principal. Pode ou não fazer-se. Mas nessa fase, nos itinerários de grande tráfego, que são os da Rede Principal, essa questão equacionar-se-á de forma completamente diferente do que hoje em dia, dado que os custos indirectos serão muito menores: nesses itinerários haverá alternativas economicamente competitivas e ambientalmente aceitáveis para a maior parte das interrupções de circulação de comboios, que seriam as linhas da Rede Principal a construir antes.
3 – O facto de haver outras prioridades
A Comissária refere na sua 1.ª resposta (3.9.2020) que estudos da UE e os operadores indicam que há outras questões mais importantes que a da bitola: a electrificação e a possibilidade de fazer comboios mais longos, de 740 m. Também não se percebe a que propósito vem este argumento, pois não altera em nada o objectivo de construir as linhas da Rede Principal em bitola europeia até 2030. Quando muito permitiria concluir que eses outros objectivos devem ser alcançados antes de 2030. Em segundo lugar, este argumento tem subjacente também a má fundamentação técnica, pelas razões seguintes: ao referir a importância relativa de diferentes objectivos está-se implicitamente a levantar a questão de estabelecimento de prioridades na resolução de problemas diferentes. Essas questões colocar-se-iam se estivéssemos a optar, por exemplo, entre várias linhas, em quais intervir em 1.º lugar. Mas não é isso que está em causa, trata-se de várias questões relativas às mesmas linhas: a electrificação, o comprimento das linhas de cruzamento e resguardo, a redução das inclinações das rampas, o aumento dos raios das curvas, a bitola, o sistema de sinalização e controle de velocidade e o aumento da capacidade. Como referido, a maneira mais barata e eficiente de resolver este conjunto de problemas é resolvê-los todos simultâneamente através da construção de linhas novas de raiz, onde todas estas questões podem ser tratadas no projecto. A resolução destes problemas um a um faria incorrer em desperdícios: por exemplo, a electrificação faria colocar postes e catenária numa linha existente, que a seguir poderia deixar de ser necessária, porque parte da linha tinha de ser substituida por variantes para eliminar rampas excessivas.
4 – O facto de haver outras soluções técnicas
Na sua 1.ª resposta (3.9.2020) a Comissária também refere a existência de outras de soluções técnicas para o problema da bitola: o 3.º carril, as travessas polivalentes e o material circulante de eixos variáveis.
O 3.º carril é uma má solução permanente para o problema da bitola, pois, apesar de permitir que numa linha circulem tanto comboios de bitola ibérica como de bitola europeia, tem inconvenientes técnicos relevantes: o custo de construção é muito superior ao da mudança da bitola com travessas polivalentes, os custos de manutenção são superiores, e o 3.º carril introduz fortes limitações de velocidade em particular nas agulhas, em alguns casos de 30 km/h. O uso do 3.º carril pode justificar-se, não como solução permanente do problema da bitola, mas como tecnologia de transição em alguns troços em que a criação de alternativas para o transporte de mercadorias e passageiros seja muito difícil ou cara, e porque facilita a substituição gradual do material circulante.
As travessas polivalentes são um meio para fazer a migração da bitola e não uma alternativa a essa migração.
Os eixos variáveis consistem em eixos tecnicamente complexos que permitem alterar a distância entre as rodas no sentido transversal das linhas, passando num aparelho chamado intercambiador a baixa velocidade. Embora aparentemente seja uma solução atractiva e com certeza útil no período de transição entre bitolas, tem diversos inconvenientes que a tornam pouco competitiva e como tal uma má solução permanente: os eixos são mais pesados e mais caros que os eixos fixos correntes, tornando mais caro o transporte de mercadorias, são fabricados essencialmente por 2 fabricantes espanhóis, e exigem uma manutenção que não pode ser feita em qualquer país, como por exemplo se pode fazer com os vagões de mercadorias de eixos fixos. Como os vagões de mercadorias na Europa circulam por vários países, uma avaria obrigaria a rebocar os vagões para Espanha ou a ter instalações de apoio próprias para os reparar em todas as regiões e países onde circulassem. Além disso, sendo fornecidos por poucos fabricantes, haveria menos concorrência, o que tenderia a aumentar ainda mais os preços, para além de representar uma dependência estratégica de um reduzido número de fabricantes, o que não seria nada saudável.
Além disso, dificilmente algum operador ferroviário europeu adquiriria material deste tipo para servir um mercado pequeno como o português, ou seja, impediria a concorrência na operação ferroviária, fazendo com que as empresas e passageiros portugueses ficassem sujeitos a preços mais elevados do que no resto da Europa.
Mesmo em Espanha, esta tecnologia, que já é aplicada em comboios de passageiros em percursos internacionais há mais de 50 anos, tem-no sido só para passageiros e de forma restrita. Recentemente têm-se aperfeiçoado os eixos variáveis para mercadorias, mas apenas para facilitar a transição da bitola em Espanha e não para a tornar desnecessária, como declarado explicitamente pelos próprios fabricantes e se mostra nas figuras seguintes. Além disso, Espanha continua a investir todos os anos milhares de milhões de euros do OE (por exemplo vejam-se os valores dos OE espanhol de 2013, pág 12, 2015, pág 11 e 2017, pág 9 e seguintes), fora os Fundos europeus, na rede ferroviária de bitola europeia, que desde 2011 passou a ser projectada para tráfego misto (passageiros e mercadorias). Será credível que a Espanha, que tem mais de 50 anos de experiência com estes sistemas, continue a investir milhares de milhões de euros todos os anos na rede de bitola europeia, se o problema da diferença da bitola ficasse resolvido satisfatoriamente com os eixos variáveis?
Função dos eixos variáveis para vagões de mercadorias
Foi este argumento dos eixos variáveis, mal fundamentado portanto, que foi usado recentemente no âmbito do debate sobre o Plano de Recuperação e Resiliência que Portugal entregou em Bruxelas, para justificar em Portugal a manutenção indefinida da bitola ibérica. Também neste caso, e noutros (exemplo 1 e exemplo 2) a deficiente fundamentação técnico-económica é uma das características da justificação das políticas actuais. Note-se que o que se diz em Bruxelas não é o mesmo que se diz para consumo interno: em Portugal diz-se que não precisamos da bitola europeia (ver Anexo 1 da 2.ª carta para a Comissária), em Bruxelas diz-se que a bitola ibérica na Rede Principal é uma fase intermédia para manter a interoperabilidade com a rede espanhola de bitola ibérica, fazendo-se a mudança para a bitola europeia mais tarde.
5 – Usar a bitola ibérica para evitar a concorrência
Este é o argumento que o Governo português invocou para justificar a manutenção da exclusividade da bitola ibérica, como se pode ver na entrevista em que o Ministro Pedro Marques declara que a bitola ibérica é uma protecção natural contra a concorrência. Trata-se de garantir um quase monopólio aos operadores ferroviários existentes, sacrificando a competitividade da economia. Esta atitude anti-concorrencial vai ostensivamente contra as políticas europeias, para a qual a Comissária foi alertada logo na 1.ª carta (30.7.2020), na pág 9, e não recebeu qualquer comentário nas respostas da Comissária, mas não passa despercebida aos operadores ferroviários europeus. Obviamente a nível internacional o Governo não justifica a exclusividade da bitola ibérica com este argumento, usa os outros argumentos referidos neste artigo e nega querer evitar a concorrência.
6 – Estudos de tráfego
Na 2.ª carta (21.9.2020) que se enviou à Comissária, no Anexo 3, alertou-se para o facto de os estudos de tráfego, que no Corredor Internacional Norte suportam a opção pela modernização da Linha da Beira Alta, em via única, em vez da construção de uma linha nova em via dupla, se basearem em pressupostos completamente inadequados: ignoram-se as políticas de transferência modal da UE, assumindo-se que as quotas de mercado entre os diferentes modos de transporte se manterão semelhantes no futuro.
Ou seja, os investimentos para cumprir as políticas europeias de transportes ignoram os objectivos dessas mesmas políticas. Assim, um dia chegaríamos a 2040 ou 2060 com a linha da Beira Alta completamente entupida e as exportações do Centro e Norte de Portugal a precisarem de dar uma “voltinha” inútil pela Galiza ou por Lisboa e Madrid para seguirem por ferrovia para a UE. Se alguém perguntasse a causa do problema, a resposta teria de ser “porque planeámos a rede ferroviária do século XXI para servir as necessidades que tínhamos antes de a construir”.
Também neste caso impera a má fundamentação (técnica ou política, não se sabe bem, porque se refere aos pressupostos dos estudos e não às análises técnicas dos mesmos), em conjunto com a total falta de visão estratégica. Também esta questão não recebeu qualquer reacção da Comissária.
MÁRIO LOPES
Professor universitário
Há uma grande diferenca entre Teimosia e Preserverança, os desgovernos de Sôcrates e Costa foram teimosos ou seja pouco inteligentes e muito ignorantes e incompetentes apesar de todos os Alertas da UE sobre a diferente bitola existente. A consequencia que corremos JÁ é perdermos o financiamento de 700 milhoes de euros na AV entre Lisboa e Porto, ” Ó COSTA NÃO APRENDES ?”