Desenganem-se aqueles que julgam viver em liberdade… Eu próprio tenho vivido nessa ilusão.
É certo que o 25 de abril de 1974 nos trouxe inúmeras e relevantes liberdades, mas no âmago de alguns, porventura demasiados, popula uma certa mesquinhez e ananismo e a ditadura dos pequenos poderes teima em tolher os mais crentes na bondade do ser humano.
Tem-me sido difícil esquecer um episódio recente sobre a expedição de uma carga perigosa.
Na realidade, apesar da carga perigosa, esta era uma expedição de risco reduzido, não só pela natureza dos produtos envolvidos, como pelo profissionalismo e comportamento responsável da empresa expedidora.
Tratando-se de uma expedição multimodal em contentor para outro continente, ouve o cuidado de cumprir os requisitos legalmente definidos no ADR[i], até ao porto de embarque, e o disposto no Código IMDG[ii] para o transporte marítimo, não esquecendo as melhores práticas de segurança.
O Código IMDG, tal como acontece com o ADR, define na Parte 5 os requisitos de expedição no que respeita à sinalização do contentor (Capítulo 5.3) e no que concerne à documentação (Capítulo 5.4).
A generalidades dos operadores envolvidos e as entidades responsáveis pelo transporte marítimo de mercadorias perigosas parecem continuar a desconhecer que a regulamentação é alterada a cada 2 anos.
Mais grave ainda, mantêm práticas ancestrais, anteriores à aplicação obrigatória do Código IMDG, exigindo “ilegalidades” como a aposição da sigla “IMO” quando se procede à identificação da classe de perigo (ou divisão), impondo o seu poder na aceitação das cargas, mesmo quando o expedidor garante ter classificado e declarado corretamente a mercadoria.
De uma vez por todas: todas as cargas efetuadas num navio em transporte internacional serão cargas IMO (Organização Marítima Internacional), pois terão de cumprir com as regras definidas no seio desta organização em Convenções tão importantes como a SOLAS[iii], a MARPOL[iv] ou a STCW[v] ou com alguns dos seus Códigos, como por exemplo o IMDG Code, IGC Code, IBC Code, IMSBC Code, Grain Code, etc..
Quem declarar uma mercadoria perigosa como “IMO 3” ou “IMO 9” está claramente em incumprimento ao disposto no 5.4.1.4 das emendas 41-22 do Código IMDG atualmente em vigor (5.4.1.4.1 “Descrição das mercadorias perigosas” e 5.4.1.4.2 “Sequência da descrição das mercadorias perigosas”).
Para as informações sobre a carga, a regulamentação nacional (DL 180/2004, que distraidamente veio a aplicar este e outros códigos aos transportes nacionais e cuja última alteração foi feita em 2016), que nasce obsoleta, teve o “azar” de escolher conteúdos e uma sequência distinta das duas sequências então permitidas no Código IMDG, referindo ser requerido indicar: “Designação técnica exata das mercadorias perigosas ou poluentes, números ONU atribuídos, se existirem, classes de risco OMI”.
Os pequenos poderes têm mais força que a lei, em especial quando o Estado se demite de assumir as suas responsabilidades. O Código IMDG é de aplicação obrigatória desde 1 de janeiro de 2004, mas parece que em Portugal nada se passa nesta matéria…
Desde 1 de janeiro de 2008, em linha com os demais regulamentos modais, apenas uma sequência obrigatória passou a ser permitida, sendo necessário indicar:
- o número ONU, precedido das letras “UN”;
- a designação oficial de transporte, determinada em conformidade com o 3.1.2, e, se for caso disso, com o nome técnico entre parêntesis (ver 3.1.2.8.);
- a classe de perigo principal ou, quando aplicável, a divisão de perigo, incluindo para a classe 1, a letra do grupo de compatibilidade. As palavras “classe” ou “divisão” podem ser incluídas precedendo os números da classe ou da divisão de perigo principal;
- o(s) número(s) da classe ou divisão de perigo correspondendo à(s) etiqueta(s) de perigo subsidiário necessário para ser aplicado quando atribuído serão inseridos após a classe de perigo principal ou divisão e devem estar entre parênteses. As palavras “classe” ou “divisão” podem ser incluídas precedendo o(s) número(s) de classe ou divisão de perigo subsidiário
- se for caso disso, o grupo de embalagem atribuído à matéria, que pode ser precedido pelas letras “GE” (por exemplo, “GE II”).
Por exemplo: “UN 1230 Metanol 3 (6.1) II” ou “UN 1230 Metanol classe 3 (classe 6.1) GE II”.
Mais grave que isso, pois na realidade são “apenas” questões formais (previstas na lei), quer o terminal, quer o armador, exigiram a colocação de sinalização no contentor contrária ao que está definido na regulamentação internacional, parecendo desconhecer as particularidades aplicáveis às mercadorias em “Quantidades Limitadas” (“Limited Quantities”, para os que eventualmente não entendam português).
…chego lamentavelmente à conclusão de que pouco (ou nada) se investe em segurança e prevenção se não houver fiscalização e sanções.
Por sorte o contentor embarcou, mas a ameaça paira sobre novos carregamentos…
Os pequenos poderes têm mais força que a lei, em especial quando o Estado se demite de assumir as suas responsabilidades. O Código IMDG é de aplicação obrigatória desde 1 de janeiro de 2004, mas parece que em Portugal nada se passa nesta matéria…
Cheguei a pensar que desconhecimentos como os acima relatados poderiam ser por não estar disponível uma edição em português (que facilitasse o entendimento) ou por ser uma publicação de valor elevado (aproximadamente 200€, a edição da IMO).
A Tutorial, com o apoio da Riscos Editora (a casa-mãe deste TRANSPORTES & NEGÓCIOS), de algumas pessoas, empresas e entidades que acreditaram no projeto, conseguiu em 2016 uma primeira edição portuguesa do Código IMDG por 1/5 do custo da edição da IMO (sem qualquer apoio do Estado Português). A AGEPOR tem realizado, de forma regular, ações de formação neste domínio há mais de 10 anos. Ainda assim, face às necessidades, chego lamentavelmente à conclusão de que pouco (ou nada) se investe em segurança e prevenção se não houver fiscalização e sanções.
Apesar de estar ligado ao transporte de mercadorias perigosas há mais de duas décadas, há uma enormidade de especificidades que desconheço e que sei que nunca irei conhecer. Contudo, não me canso de tentar melhorar e aprender, questionando-me sempre sobre a fundamentação e a base de qualquer afirmação ou posição assumida. Outros, de forma prepotente, continuam a impor a ditadura do “quero, posso e mando”, sem terem a humildade de procurar qualquer fundamentação.
Entendo o saber como o Santo Graal da liberdade e este só é possível com o questionamento permanente, a dúvida e a auscultação dos diversos intervenientes.
Os anos que nós próprios (ou os nossos progenitores) vivemos no obscurantismo tendem a provocar mutações que acredito perdurarem geneticamente, só pode… não será por acaso que, como já ouvi do padre que celebrou o meu casamento: “a nossa personalidade começa a formar-se algumas dezenas de anos antes de nós nascermos”.
De que outra forma se justificaria que uma geração tão academicamente instruída fosse incapaz de duvidar, de questionar, de procurar entender, de assumir que não se sabe?
Hoje, todos “acham” ou “pensam que”, sem se darem muitas das vezes ao trabalho de investigar/documentar e efetivamente pensar, fazendo prevalecer a ditadura dos ignorantes.
[i] Acordo relativo ao transporte internacional de mercadorias Perigosas por Estrada.
[ii] Código Marítimo Internacional das Mercadorias Perigosas, aplicável às mercadorias perigosas embaladas ou acondicionadas em unidades de transporte de carga.
[iii] Convenção Internacional de 1974 para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar.
[iv] Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, 1973, alterada pelo Protocolo de 1978.
[v] Convenção Internacional sobre Normas de Formação, Certificação e de Serviço de Quartos para os Marítimos.
JOÃO CEZÍLIA
Tutorial, Lda.
Efetivamente João, é factual. Lidamos cada vez mais com um nível de desconhecimento gritante e consequente por parte dos operadores logísticos no que a carga perigosa se refere.
Impera investir em formação e capacitar os operadores de conhecimento que lhes confira a confiança necessária que a adjudicação deste tipo de carga exige.