Stuart Mill é frequentemente citado por dizer que aquele que só conhece uma parte da questão, nada sabe sobre a mesma. Creio já antes ter repetido nesta coluna uma frase que muitas vezes ouvi da minha mui estimada orientadora, adaptando às ciências comparativas esta ideia, dizendo que quem apenas conhece uma realidade, nada sabe sobre a realidade.
Assim, porque creio que há exemplos dos quais se pode, quando se quer, aprender, e aproveitando o facto das previsões de crescimento da WizzAir poderem, neste ano de 2022, ultrapassar a Ryanair enquanto companhia mais rentável da Europa, gostaria de aproveitar este espaço para recordar a Malév, companhia aérea de bandeira da Hungria.
Como a Malév encerrou
Malév, a companhia aérea nacional húngara, nasceu do outro lado da cortina de ferro em 1946, operando aeronaves de fabrico soviético, tendo na década de oitenta assumido uma frota Boeing sempre operando a partir da sua base em Budapeste. A operação da companhia focava-se, como era o quadro do transporte aéreo internacional há mais de trinta anos, no modelo de companhias aéreas nacionais, símbolos da soberania estatal, operando em rotas reguladas, com tarifas acordadas no âmbito da IATA, em ambiente sem concorrência e sem preocupações quanto aos seus resultados financeiros finais. Em suma, uma operação comum no quadro pré-liberalização europeu, coincidente com o período da divisão da Europa em dois blocos.
Após a queda do muro e com as drásticas alterações no quadro regulatório do transporte aéreo europeu com o terceiro pacote de liberalização de 1992, a companhia nunca foi capaz de apresentar lucros mantendo-se fiel ao seu papel de serviço público num mundo que não mais o exigia. Assim, a privatização da companhia aérea pelo governo húngaro veio a tornar-se irremediável, tendo sido realizada uma venda parcial de participações da mesma a um grupo italiano associado à Alitalia. Essa venda, que nunca gerou os frutos pretendidos, viria a ser revertida, seguida de uma nova privatização em 2007. A entidade privada que adquiriu a maioria do capital da companhia aérea, a AirBridge, tinha já participações em outras companhias aéreas e era esperado que trouxesse know-how e liderança à Malév, assim como planos de reestruturação para que a companhia fosse rentável. Um discurso familiar.
Apesar das medidas adotadas sob a nova estrutura da empresa, a mesma não conseguiu apresentar os resultados pretendidos e prometidos (veja-se a figura 1), mantendo-se a situação da empresa insustentável. Adicionalmente, o estado havia realizado um empréstimo à AirBridge que esta não se encontrava mais em situação de cumprir, pelo que o Estado húngaro decidiu, em 2010, nacionalizar a sua companhia de bandeira com prejuízo para o Estado. Uma situação também, infelizmente, familiar.
Para o efeito, através de uma operação acordeão, com redução do capital da empresa e novo aumento de capital, o estado húngaro viu-se assim proprietário de 94,6% do capital social da empresa, tendo, a título de principal acionista, realizado vários empréstimos à empresa acompanhados de um aumento do capital. Não entrando em grandes detalhes, bastará dizer que esta operação veio a ser considerada um auxílio estatal por parte da Comissão Europeia e, como tal, a companhia aérea Malév foi notificada para proceder à devolução dos auxílios recebidos o que, sendo manifestamente impossível, conduziu ao encerramento desta histórica companhia. Uma situação deveras familiar entre companhias aéreas europeias.
Fantasmas e ameaças
Independentemente da falta de legalidade no auxílio estatal prestado pelo estado magiar, é curioso analisar a justificação da intervenção do governo na companhia, o qual foi na altura publicado pelo governo num livro branco sobre a herança da Malév, e que pode ainda hoje ser consultado[1].
Poupando ao leitor menos curioso a leitura, os principais argumentos usados na intervenção na companhia pelo governo de Victor Orbán foram aqueles que já nos são, de alguma forma, também bastante familiares,
- A companhia era um contribuinte em receita fiscal para o estado, sendo um dos principais exportadores do país,
- A companhia transportava 3 milhões de passageiros para 45 destinos por ano,
- A companhia era o principal operador do aeroporto de Budapeste e a sua garantia de funcionamento, o encerramento da companhia obrigaria o Estado a suportar a quebra de receita do operador privado da infraestrutura (com semelhante argumento quanto ao operador de serviços de navegação aérea),
- A companhia promovia o turismo no país e a falta de um operador nacional seria uma desvantagem competitiva para a Hungria.
Naturalmente, quase nem seria necessário dizer, toda a culpa política do sucedido foi, de acordo com o relatório, do parceiro privado escolhido pelo estado três anos antes.
O que realmente sucedeu
Ora, com o encerramento da Malév em 2012, a Hungria tornou-se num excelente laboratório para se testar o argumentário utilizado pelo governo justificativo da intervenção.
Dos argumentos apresentados pelo governo de Victor Orban sobre a importância estratégica de salvar a Malév em 2010 a experiência em 2012 veio a demonstrar como careciam de qualquer verdadeiro fundamento ou razão.
Porém, em termos de valores agregados, a queda de movimentos no aeroporto no primeiro ano ficou-se nos 10%, não se identificando qualquer queda no número de passageiros ponto a ponto[2], ou seja, o número de passageiros perdidos ocorreu principalmente nos passageiros em trânsito.
No próprio ano de encerramento da Malév, mais de vinte operadores iniciaram operações para Budapeste ou aumentaram o número de frequências para Budapeste (e, para aqueles alérgicos a operadores low cost, a lista de novos operadores inclui a nossa TAP, a Alitalia, a Lufthansa e a Qatar Airways entre outros). Estes operadores aproveitaram os slots disponibilizados pela saída da Malév e acabaram por garantir e aumentar a conectividade de Budapeste com outros destinos.
O grande crescimento ocorreu com operadores low-cost, em especial a Wizz Air e a Ryanair. Só esta iniciou 31 novas rotas a partir de Budapeste baseando quatro aeronaves nesse aeroporto[3]. Sendo que a primeira, aumentou imediatamente de 67 para 129 voos semanais a presença em Budapeste. Estes dois operadores são hoje os dois maiores operadores europeus em operações ponto a ponto e prevê-se que a Wizz Air, o qual é um operador húngaro, possa destronar a Ryanair.
No que diz respeito ao número de turistas na Hungria, dados estatísticos demonstram que, também aqui, o governo húngaro estava enganado, o número total de turistas em 2012 foi de 43,57 milhões de pessoas e o número de turistas em 2019 foi de 61,4 milhões. Mais importante, o número manteve sempre uma trajetória ascendente[4]. Note-se como existe uma relação lógica entre o tipo de passageiros perdidos e o efeito no turismo, como a queda de passageiros foi em passageiros em trânsito, o número de turistas não sofre grande efeito dessa redução, desmistificando-se, mais uma vez, a ideia de que uma plataforma giratória (um “hub”) pesa no turismo.
Conclusão
Dos argumentos apresentados pelo governo de Victor Orban sobre a importância estratégica de salvar a Malév em 2010 a experiência em 2012 veio a demonstrar como careciam de qualquer verdadeiro fundamento ou razão.
- A Hungria ganhou ligações aéreas no mesmo ano civil que devolveram o tráfego ao país garantindo a conectividade nacional e o acesso ao estrangeiro.
- Ao mesmo tempo, o número de turistas no país não teve qualquer redução mantendo a trajetória ascendente em números absolutos.
- A queda de receita em exportações e receita fiscal está hoje largamente compensada com os vibrantes números da Wizz Air, a qual estava arredada a um papel secundário em prol da proteção da companhia de bandeira ao qual se adiciona, naturalmente, a não despesa estatal.
Restará porventura apenas um argumento que era de especial apreço a Victor Orbán e que este nunca recuperou. Com a perda da companhia aérea de bandeira perdeu-se um símbolo nacional, o que é especialmente importante para um regime de preocupante défice democrático como o de Orbán, mas que pelo qual não devemos verter qualquer lágrima.
[1] Disponível em https://2010-2014.kormany.hu/download/2/c8/60000/White%20Paper%20on%20the%20Mal%C3%A9v%20Heritage.pdf, consultado em janeiro de 2022;
[2] https://centreforaviation.com/analysis/reports/budapest-market-recovers-following-loss-of-malev-84065 consultado em Janeiro de 2022
[3] https://www.thejournal.ie/less-than-seven-hours-after-malev-collapse-ryanair-announces-new-budapest-base-345179-Feb2012/ consultado em janeiro de 2022;
[4] https://www.worlddata.info/europe/hungary/tourism.php consultado em Janeiro de 2022.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper
Obrigado ao Autor. Excelente artigo