Em março de 2023 o atuAl Governo anunciava que estava a ser ultimado um pacote de medidas que se previa ser capaz de iniciar um novo capitulo para os portos nacionais. Para além da revisão dos prazos das concessões, e da revisão do modelo de governance dos portos, a ideia da criação do conceito de domÍnio portuário chegou a ser avançada.
Todavia, e como abordei no anterior artigo de opinião aqui no TRANSPORTES & NEGÓCIOS, essa reforma não chegou a materializar-se. Uma das medidas que ficaram por concretizar – e muito importante, na minha opinião – foi a criação de um domínio portuário unificado em Portugal, visando uma gestão mais eficiente e integrada dos portos nacionais.
Mas o que é, exatamente, isto?
Ora, a área de jurisdição dos portos refere-se ao espaço territorial que está sob a gestão e controlo da autoridade portuária. Em Portugal esta área inclui as águas do porto, docas, ancoradouros, terminais, e outros espaços associados que são essenciais para o funcionamento do porto. A definição específica e a regulamentação podem variar de acordo com a legislação nacional e local.
Já o domínio público, por outro lado, refere-se a bens que pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas e que são indissociáveis da sua função pública. Esses bens são inalienáveis e impenhoráveis, e estão destinados ao uso público ou ao serviço público.
Os bens do domínio público, de acordo com a sua titularidade, pertencem ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 84.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º e no artigo 15.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de outubro, na sua redação atual.
Em Portugal adotou-se um conceito formal de domínio público, isto é, são bens do domínio público aqueles que constam da CRP e da lei, pelo que temos:
- Domínio público do Estado ou estadual: o respetivo elenco consta do n.º 1 do artigo 84.º da CRP e do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de outubro, e demais legislação avulsa (por força da remissão da alínea p) do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de outubro);
- Domínio público regional: o respetivo elenco consta, no que respeita ao arquipélago dos Açores, do n.º 2 do artigo 22.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, sendo que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira é omisso quanto a esta matéria, pese embora lhe faça referência no n.º 1 do seu artigo 144.º;
- Domínio público autárquico: não existe nenhuma lei de caráter geral relativa ao património público autárquico, pese embora se insiram neste as estradas e caminhos municipais e os bens do domínio público hídrico reservado para as autarquias locais.
Os bens do domínio público estão sujeitos a um regime de direito público, dotado de especial tutela, daqui decorrendo as características dos bens de domínio público: inalienabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e autotutela.
A principal diferença entre estes dois conceitos – área de jurisidção e domínio público – é que a área de jurisdição dos portos relaciona-se especificamente com o espaço e os bens necessários para as operações portuárias, enquanto o conceito de domínio público é mais amplo e inclui todos os bens que pertencem ao Estado ou a entidades públicas e que têm um propósito público.
Portanto, a área de jurisdição dos portos pode ser considerada uma subcategoria do domínio público, onde os bens estão especificamente destinados às funções do porto.
Este enquadramento legal é importante para entender a gestão e regulação dos portos. Existem diversos tipos de domínio na área de jurisdição dos portos, incluindo domínio ferroviário no caso da APDL – Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, S. A. (APDL), uma vez que através do Decreto-Lei n.º 55/2022, de 17 de agosto, foi atribuído àquela empresa pública as competências de gestora de infraestrutura ferroviária relativamente ao Terminal Ferroviário de Mercadorias de Leixões. Por outro lado, por exemplo, a grande maioria do negócio dominial da APL – Administração do Porto de Lisboa, S.A. (APL) assenta em domínio hídrico.
A criação de um domínio portuário em Portugal é, por isso, mais do que uma “invenção” legal; é um passo estratégico para assegurar que os portos portugueses continuem a ser competitivos e eficientes no século XXI.
A distinção entre domínio público marítimo (cujo conceito está hoje perfeitamente definido) e domínio público portuário é, por isso, um ponto crucial. Esta diferenciação, já reconhecida pelo Tribunal Constitucional (cf. Acórdãos n.º 330/99, n.º 131/2003 e n.º 654/2009), sublinha a necessidade de um regime jurídico distinto para cada um.
Acredito, e tenho defendido, que a criação de um domínio portuário em Portugal é uma chave para desbloquear o potencial dos portos nacionais.
Tal medida permitiria uma gestão mais coesa e eficiente, integrando as diversas áreas de jurisdição sob um único regime jurídico. Isto não só simplificaria a administração portuária, mas também fortaleceria a posição de Portugal no cenário marítimo global. Veja-se que, em termos de direito comparado com outros países com vocação portuária relevante, na França prevê-se expressamente a existência de “domaine portuaire” (no Code des transports), em Espanha “domínio público portuário” (na Ley de Puertos del Estado y de la Marina Mercante).
A criação de um domínio portuário unificado pode oferecer outras vantagens significativas também para a gestão de áreas portuárias e a sua relação com as cidades adjacentes. Facilitaria, também, a coordenação entre as operações portuárias e o planeamento urbano, permitindo um desenvolvimento mais harmonioso e integrado entre porto e cidade – crucial para mitigar a rivalidade histórica entre os municípios e os terrenos ribeirinhos, muitas vezes marcada por conflitos sobre a utilização do solo e a jurisdição.
Além disso, um domínio portuário unificado poderia promover uma gestão mais eficiente e sustentável dos recursos, alinhando as operações portuárias com as políticas ambientais e urbanísticas.
Outro aspecto importante é a capacidade de responder de forma mais eficaz aos desafios globais, como as mudanças nas rotas de comércio, as exigências de sustentabilidade e as inovações tecnológicas. Um domínio portuário unificado estaria melhor posicionado para adaptar-se a essas mudanças, aproveitando oportunidades e mitigando riscos. Poderia, igualmente, facilitar a adaptação aos desafios globais, promovendo uma gestão mais racional e sustentável dos recursos portuários e reduzindo a competição interna entre os portos nacionais.
O caso portuário é a prova de uma crise mais geral dos princípios de interesse geral e de utilidade pública aplicados à gestão das infraestruturas de transportes e de comunicações, como nos diz Marion Magnan em “Le domaine portuaire, entre protection et valorisation: l’ambiguïté de la notion d’utilité publique au prisme du droit domanial”. Este facto pode ser atribuído, por um lado, ao progresso da descentralização e, por outro, ao endurecimento do direito comunitário com as suas tendências liberais. É cada vez mais difícil para o Estado afirmar-se como único garante destes princípios e único decisor quanto ao seu sentido e âmbito de aplicação. No caso dos portos, a propriedade pública é um dos últimos, mas frágeis, alicerces da sua legitimidade.
A criação de um domínio portuário em Portugal é, por isso, mais do que uma “invenção” legal; é um passo estratégico para assegurar que os portos portugueses continuem a ser competitivos e eficientes no século XXI.
Pós-graduada em “Maritime Law”, com especialização em “‘Oil and Chemical Pollution”, pela London Metropolitan University