Recentemente, segundo noticiado no início de janeiro (09/01/2023) pelo Transportes e Negócios, um conjunto de entidades, composto pela AGEPOR (Associação dos Agentes de Navegação de Portugal), APAT (Associação dos Transitários de Portugal) e CPC (Conselho Português de Carregadores), sugeriram que o governo e as administrações portuárias deveriam estudar alternativas de licenciar, concessionar, ou privatizar serviços operacionais na esfera portuária, o que poderia proporcionar uma maior inovação e eficiência em cada porto e a criação de dinâmicas diferentes das atuais, com a retirada destes serviços da esfera pública.
Esta abordagem sugerida por tais entidades enquadra-se no desenvolvimento dos modelos de negócios das administrações portuárias nacionais que se baseiam num quadro de portos landlord, sendo a única exceção os portos da Região Autónoma dos Açores, em que predomina o conceito de service e tool port.
A estrutura de proveitos das três maiores administrações portuárias nacionais (Sines, Leixões e Lisboa), tendo por base os dados dos relatórios e contas de 2019, assenta numa proporção de 45% de rendimentos decorrentes de concessões (e de 42% de receitas geradas por serviços portuários, sendo que se considerou neste caso apenas as administrações portuárias de Sines e Leixões, por via da relevância extraordinária que o porto de Lisboa regista em termos de rendimentos associados a áreas dominiais). A rentabilidade média dos três maiores portos nacionais foi em 2019 da ordem dos 37%.
Entretanto, os futuros desafios para os portos, nomeadamente os europeus, no âmbito do pacote de medidas Fit for 55, iniciativa da União Europeia que estabelece uma meta de pelo menos 55% na redução de emissões líquidas de gases com efeito estufa até 2030 e a neutralidade carbónica em 2050, enquadram-se cada vez mais numa abordagem orientada para as questões da sustentabilidade e da transição energética. Para além disto, os próprios clientes, de que é exemplo a IKEA, exigem a descarbonização dos portos. A pressão externa a que os portos estão sujeitos induz uma maior orientação para a inclusão social, proteção ambiental e conservação de recursos por parte dos portos, aspetos diretamente ligados aos objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pelas Nações Unidas em 2015, influenciando decisivamente as propostas de valor dos portos (ver figura abaixo).
Neste sentido, os portos terão de deixar de ser apenas um nó da cadeia logística, tanto na perspetiva do hinterland como do foreland, para passarem a liderar processos de sustentabilidade ambiental e a recentrarem o seu papel numa perspetiva de valor para as comunidades locais, sendo-lhes exigido um papel de liderança em processos de sustentabilidade ambiental, com destaque para a eficiência energética e a partilha de energia.
Em síntese, a atual proposta de valor dos portos sofrerá inevitavelmente uma influência crescente de aspetos de ordem ambiental, obrigando a um crescente foco em outras áreas que não a da prestação de serviços a navios e mercadorias.
É neste contexto que a promoção e o desenvolvimento de comunidades portuárias energéticas é não só um conceito ambiental e energético, mas, sobretudo, um novo elemento com forte incremento da proposta de valor para qualquer porto, particularmente na perspetiva do seu hinterland adjacente. Esta abordagem originará, muito provavelmente, um aprofundamento do modelo landlord, passando as administrações portuárias a operar como elementos vitais de comunidades energéticas locais, o que nos leva, de novo, à discussão sobre os modelos de governação dos portos e como estes modelos deverão ser enquadrados numa abordagem envolvendo múltiplos stakeholders, com vista à geração de valor para as comunidades locais.
A teoria do stakeholder, desenvolvida a partir de 1984 por R. Edward Freeman, trouxe uma nova abordagem para o quadro analítico da gestão e do direito, ao sugerir que as necessidades dos stakeholders deveriam estar no início de qualquer ação, com base em princípios como os da teoria do contrato social ou da responsabilidade social.
Em síntese, a atual proposta de valor dos portos sofrerá inevitavelmente uma influência crescente de aspetos de ordem ambiental, obrigando a um crescente foco em outras áreas que não a da prestação de serviços a navios e mercadorias. Os próximos anos deverão ser de grande transformação a nível portuário, envolvendo, entre muitos outros aspetos, a necessidade de maior envolvimento estatal, via, por exemplo, benefícios fiscais para a adesão de stakeholders portuários à agenda Fit for 55, ou ainda a necessidade de atualização de planos estratégicos portuários, atribuindo um maior grau de intervenção e interligação com os stakeholders locais, nomeadamente os privados.
Os efeitos negativos na capacidade de criação de valor para as comunidades locais, resultado da ação direta do Estado e esquecendo a centralidade dos portos, parecem evidentes, sobretudo se comparamos a situação nacional com a dos portos concorrentes, sobretudo os espanhóis.
Uma ferramenta com potencial para apoio neste tipo de processos é a Advocacy Coalition Framework (ACF). Desenvolvida também a partir da década de 1980, aborda domínios como a formação e manutenção de coligações, a propensão para a aprendizagem e o papel da ciência e da tecnologia nos processos políticos, para além dos fatores associados às mudanças políticas ao longo do tempo. A sua utilização tem abrangido os mais variados setores, com um particular destaque para as questões da saúde e ambientais, com interessantes resultados em termos científicos. Presume esta abordagem que os atores envolvidos num determinado subsistema podem ser agregados, formando coligações compostas por grupos de interesses que compartilham uma série de convicções e crenças normativas e causais e desenvolvem uma atividade coordenada por um período considerável. O sistema de crenças de cada coligação possui uma estrutura composta por: crenças essenciais profundas que raramente se alteram, crenças políticas, que registam poucas mudanças e aspetos secundários, que são ajustáveis a novos dados e informação. Os autores do modelo argumentam que o subsistema nada mais é do que uma arena onde os grupos de atores discutem regularmente a respeito de um determinado campo das políticas públicas, como saúde, educação, política urbana, etc..
A este respeito, o modelo espanhol apresenta uma estrutura de governação com uma certa similitude com esta abordagem, registando uma solidez e resiliência assinaláveis e uma relação muito próxima e institucionalmente articulada entre stakeholders e Estado: por um lado, as autoridades portuárias são compostas, no seu nível de gestão mais elevado, por um vasto conjunto de stakeholders e, por outro, são detidas e orientadas por um órgão governamental, a holding “Puertos del Estado”, dedicada exclusivamente ao setor portuário. Tal abordagem é inexistente em Portugal, sendo o atual modelo um exemplo de elevada dependência face ao Estado por parte das administrações portuárias, e funcionando sobretudo como um elemento de caráter tático para o Estado (por exemplo, via distribuição de dividendos). Esta perspetiva é inviável a longo prazo, conforme se deduz do conteúdo, por exemplo, do artigo de opinião de José Contradanças, no T&N 23/02/2023. Os efeitos negativos na capacidade de criação de valor para as comunidades locais, resultado da ação direta do Estado e esquecendo a centralidade dos portos, parecem evidentes, sobretudo se comparamos a situação nacional com a dos portos concorrentes, sobretudo os espanhóis.
Este tópico de discussão encontra-se apenas no início. O que os próximos anos trarão sobre este assunto dirá muito sobre o futuro dos portos e da economia nacional na próxima década.
Assessor na empresa Portos dos Açores, S.A.
Doutorando do Programa Doutoral em Sistemas de Transporte, pela Universidade de Coimbra