O recente interesse renovado do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na aquisição da Gronelândia volta a levantar questões sobre as motivações subjacentes a esta ambição territorial. À primeira vista, pode parecer apenas uma ideia excêntrica, mas uma análise mais profunda revela razões estratégicas e económicas que explicam este desejo, ancoradas em dados históricos e projeções credíveis sobre a importância crescente da região.
A intenção dos Estados Unidos em adquirir a Gronelândia não é recente. Em 1946, o então presidente Harry Truman chegou a propor 100 milhões de dólares à Dinamarca pela ilha. Mais de meio século depois, em 2019, Trump retomou esta iniciativa no seu primeiro mandato, enfrentando imediata oposição do governo dinamarquês e das autoridades da ilha. Agora, em 2025, o interesse é reacendido, acompanhado por declarações sobre possíveis projetos económicos e militares, o que eleva a tensão diplomática entre os EUA, a Dinamarca e a Gronelândia. Embora a ilha usufrua de ampla autonomia, continua sob soberania dinamarquesa, e os seus líderes têm sido claros em afirmar que a Gronelândia não está à venda, reforçando o seu desejo de maior independência e autodeterminação.
Sendo a maior ilha do mundo, a Gronelândia tem cerca de 2,16 milhões de quilómetros quadrados, dos quais aproximadamente 80% se encontram cobertos por gelo. A sua localização estratégica entre o Atlântico Norte e o Oceano Ártico torna-a fundamental para o controlo de rotas marítimas emergentes, especialmente à medida que o gelo no Ártico continua a derreter. De acordo com o National Snow and Ice Data Center (NSIDC), a extensão de gelo no Ártico está a decrescer cerca de 13% por década desde 1979, criando oportunidades para novas rotas de navegação.
Esta abertura progressiva de rotas, como a Passagem do Noroeste (próxima do Canadá) e a Rota do Mar do Norte (sob influência da Rússia), pode reduzir substancialmente o tempo e os custos de transporte entre a Ásia, a Europa e a América do Norte. Estima-se que a rota entre Xangai e Roterdão, por exemplo, possa ser encurtada em cerca de 30% a 40% se for utilizada a Rota do Mar do Norte.
Além das rotas marítimas, a Gronelândia possui recursos naturais valiosos como petróleo, gás natural, ouro, diamantes e minerais raros. O United States Geological Survey (USGS) estima que o Ártico possa conter cerca de 13% das reservas mundiais de petróleo ainda por descobrir e 30% das de gás natural. Contudo, na Gronelândia, a exploração destes recursos permanece limitada devido às condições climáticas severas, à falta de infraestrutura e aos requisitos ambientais cada vez mais rigorosos.
O renovado interesse dos Estados Unidos na Gronelândia é um símbolo de como o mundo está a mudar rapidamente, com as alterações climáticas a reconfigurarem fronteiras económicas e geopolíticas. O Ártico converteu-se num novo palco de disputas estratégicas e comerciais, com consequências que vão muito além das regiões polares, afetando cadeias de abastecimento globais e a segurança energética.
O degelo acelerado no Ártico não é, por isso, apenas um tema económico e geopolítico, mas também uma grave preocupação ambiental. O degelo do permafrost, por exemplo, pode libertar grandes quantidades de metano, um gás de efeito de estufa com potencial de aquecimento muito superior ao do dióxido de carbono. Dados recetes – e preocupações – indicam que a temperatura média no Ártico está a aumentar pelo menos duas vezes mais depressa do que a média global, o que contribui para um ciclo de aquecimento acelerado em toda a região.
Não obstante as preocupações ambientais, as oportunidades comerciais levam várias empresas a investir em rotas alternativas. Em 2018, a Maersk realizou uma viagem experimental pela Rota do Mar do Norte para avaliar a sua viabilidade comercial, recorrendo a quebra-gelos para garantir a segurança. Esta iniciativa simbolizou o crescente interesse nas rotas árticas. A Rússia, por sua vez, tem investido de forma significativa em infraestrutura no Ártico, procurando estabelecer-se como referência no desenvolvimento da sua Rota do Mar do Norte e no aproveitamento dos recursos minerais e energéticos daquela região.
As transformações no Ártico têm impactos bem para lá das regiões polares, afetando países de latitudes mais baixas, como Portugal. Sendo um importante entroncamento de rotas entre a Europa, África e as Américas, Portugal pode vir a sofrer um desvio do fluxo comercial se as novas rotas polares se tornarem estáveis e economicamente atrativas. Tal desvio poderia reduzir o tráfego que atualmente passa pelos portos nacionais, com potencial diminuição de receitas para o setor marítimo e logístico.
Por outro lado, com alguma visão, estas mudanças podem ser encaradas como uma oportunidade. Se Portugal reforçar a modernização e a eficiência dos portos de Sines, Leixões e Lisboa (pelo menos estes), bem como as ligações ferroviárias e rodoviárias, poderá posicionar-se como um hub logístico complementar. A experiência marítima portuguesa, associada à sua posição geográfica e à crescente aposta na digitalização e na sustentabilidade portuária, podem tornar o país numa alternativa credível para rotas que, por motivos climáticos ou geopolíticos, não se consigam fixar de forma permanente no Ártico.
O renovado interesse dos Estados Unidos na Gronelândia é um símbolo de como o mundo está a mudar rapidamente, com as alterações climáticas a reconfigurarem fronteiras económicas e geopolíticas. O Ártico converteu-se num novo palco de disputas estratégicas e comerciais, com consequências que vão muito além das regiões polares, afetando cadeias de abastecimento globais e a segurança energética.
Ainda que as oportunidades comerciais sejam relevantes, a realidade climática impõe-se: segundo dados da NASA, o manto de gelo da Gronelândia perdeu, em média, cerca de 280 mil milhões de toneladas de gelo por ano entre 2002 e 2021, tendo registado picos de perda superiores a 500 mil milhões de toneladas em anos particularmente quentes. Esta tendência tem efeito direto na subida do nível das águas do mar e no equilíbrio climático global.
A “corrida” ao Ártico reflete um equilíbrio frágil entre o potencial de crescimento económico, o imperativo da sustentabilidade ambiental e as aspirações de autodeterminação dos povos nativos. Num contexto em que o presidente Donald Trump reacende o interesse pela aquisição da Gronelândia, torna-se evidente que estas dinâmicas só ganharão força nos próximos anos, exigindo um debate internacional alargado.
Tal como se costuma atribuir a Charles Darwin: “Não é a espécie mais forte que sobrevive, nem a mais inteligente, mas a que melhor se adapta às mudanças” – é precisamente esta capacidade de adaptação que estará em jogo para todas as nações, incluindo Portugal. O mundo está a mudar depressa, e a capacidade de adaptação de cada nação poderá ditar não apenas o sucesso económico, mas também a proteção de um dos ecossistemas mais vulneráveis e decisivos para o equilíbrio climático do planeta.
IRIS DELGADO
Mestre em Gestão Portuária, pela Escola Náutica Infante D. Henrique