A Ryanair alega que a easyJet está a subutilizar os slots que ganhou à TAP em Lisboa e que por isso devem ser devolvidos – o que dizem os dados e como se comparam?
Paris Orly e Lisboa Portela são dois aeroportos europeus muito congestionados, onde as faixas de aterragem e descolagem, conhecidas como “slots”, são escassas. Quem detém estes “slots” possui um direito histórico que, para permanecer válido infinitamente, exige uma utilização mínima de 80% ao longo do ano.
Não existe uma apreciação qualitativa legalmente reconhecida sobre o uso do “slot”, ou seja, não é critério legítimo para se exigir a devolução de um “slot” avaliar se a sua utilização é mais útil (para a economia, para os passageiros, etc.) se for entregue a outra companhia aérea que voasse para destinos diferentes ou mais importantes ou a outra que quisesse voar com aviões que transportem mais passageiros. Qualquer avaliação qualitativa após a atribuição do “slot” não tem consequências práticas nem jurídicas. Uma vez atribuído a uma companhia aérea, o “slot” pode ser utilizado para o destino e pelo tipo de avião que a empresa entender ser mais adequado à sua estratégia.
Os “remédios”
Devido a razões históricas, os “slots” em aeroportos congestionados estão principalmente nas mãos das companhias aéreas mais antigas nesses mesmos aeroportos. Por exemplo, a British Airways em Londres Heathrow, a Lufthansa em Frankfurt, a Air France em Paris Orly e a TAP Air Portugal em Lisboa detêm uma parcela significativa dos “slots” desses aeroportos, chegando a controlar mais de 50% dos movimentos autorizados nessas infraestruturas.
Isso torna extremamente difícil para outras companhias aéreas, especialmente as mais recentes, conseguirem acesso e ali construírem uma operação relevante, uma vez que as companhias mais antigas mantêm firmemente os seus direitos históricos, utilizando-os até de forma estratégica com o único objetivo de evitar ou dificultar a entrada de novos concorrentes sem com isso estarem a cometer nenhuma ilegalidade.
Consciente dessa limitação natural e legal que restringe, na prática, a livre concorrência, sempre que a Comissão Europeia identifica e justifica uma possível distorção no mercado – seja devido a uma ajuda estatal ou a uma fusão, por exemplo – utiliza diversos mecanismos para reequilibrar a situação e torná-la mais justa para outros operadores económicos e para os consumidores. No caso dos aeroportos congestionados e das companhias aéreas que são objeto de análise pela Comissão para a Concorrência, a questão da cedência de “slots” é frequentemente utilizada como uma dessas soluções ou “remédios”.
O concurso público internacional
Com apenas um ano de diferença entre ambos, a Comissão Europeia aplicou o mesmo “remédio” à Air France em Orly e à TAP Air Portugal em Lisboa pelas ajudas/doações estatais recebidas por essas companhias. Em ambos os casos, foi exigida a cedência de 18 “slots”.
Devido à sua quantidade expressiva, que permite a criação de uma base operacional com aeronaves baseadas nesses aeroportos, gerando mais empregos diretos e realizando voos potencialmente mais relevantes para o mercado local, a Comissão tem favorecido a realização de concursos públicos internacionais nos quais todos estes “slots” cedidos são atribuídos a uma única companhia aérea. Na avaliação dos candidatos, vários fatores poderiam ser determinantes, mas aquele que é considerado o principal é: a companhia aérea que oferece a maior capacidade de lugares seria a primeira classificada. Por quanto tempo? Para quantos destinos?
Esta abordagem concursal limitativa com um único vencedor exclui, desde logo, a possibilidade de candidatura de companhias que não têm como modelo de negócio o estabelecimento de outras bases fora. Em Paris Orly, os 18 slots cedidos foram atribuídos à Vueling, enquanto que em Lisboa foram para a easyJet. Em ambos os casos, a proposta das companhias passou por basear 3 aviões Airbus A321, os maiores da frota, com 235 lugares.
As outras companhias aéreas que se candidataram perderam uma oportunidade única de entrar nesses aeroportos, sendo natural que estejam atentas à continuidade do cumprimento das condições prometidas. Passados alguns meses, o que resta, na realidade, dessas promessas concursais? No caso de Lisboa, a Ryanair tem razão em questionar o comportamento da easyJet? Como se compara o comportamento de ambas as companhias que utilizaram uma receita semelhante para ficar com o “remédio”?
Metodologia utilizada e fontes
Pela semelhança dos dois concursos públicos para 18 “slots” em Lisboa e em Orly, e recorrendo aos dados objetivos e neutros do agregador de capacidade aérea Cirium Diio, comparámos a evolução das companhias vencedoras, Vueling em Orly e easyJet em Lisboa.
No caso da Vueling em Paris, o concurso foi ganho em 2021 e teve efeitos a partir de Novembro desse ano. A easyJet ganhou um ano depois em Lisboa e aplicou as mudanças daí resultantes a partir de novembro de 2022. Uma vez que todas as candidatas tinham de basear aviões nesses aeroportos – um avião baseado é aquele que começa e termina o dia nesse aeroporto ali gerando empregos diretos – e que o número de slots era o mesmo para todas as candidatas, a diferença das propostas teve de residir noutro critério determinante: o número total de lugares oferecidos. Tanto em Orly como em Lisboa, as vencedoras propuseram basear três aviões do tipo Airbus A321 com 235 lugares, maiores do que os Boeing 737-800 da Ryanair com apenas 189 e com um comissário a menos por voo.
A análise elaborada pela SkyExpert mede a evolução de ambas as companhias durante os dois períodos anuais da aviação civil comercial definidos pela IATA (Associação Internacional do Transporte Aéreo): 6 meses de Verão (Abril – Outubro) e 6 meses de Inverno (Novembro – Março). A avaliação contempla o número total de lugares de avião disponibilizados em cada período, o número de destinos e o número médio de lugares por voo em cada temporada. “Salta-se” o auge do período pandémico do tráfego intraeuropeu de 2020/21 e são devidamente assinalados os dois grandes momentos: pré-concurso e temporadas seguintes à vitória do concurso público.
Interpretações
Número de destinos – em ambos os casos nota-se uma quebra muito grande no número de destinos servidos em qualquer das temporadas comparativas. Neste tipo de companhias, é normal existirem algumas diferenças entre Verão e Inverno. Basta pensar que muitos destinos operados – como Ibiza, Menorca, Palma de Maiorca, entre outros – são, de facto, destinos típicos de Verão que não se repetem nos meses de Inverno. Por outro lado, em cidades como Paris ou Lisboa, sujeitas a uma enorme concorrência diária de várias companhias, a oferta geralmente é em escala: destinos voados com enorme frequência, por vezes mais de um voo por dia. À medida que a rede se distancia de destinos de puro ócio e que o tráfego se normalizou no pós-pandemia, a exigência de voar várias vezes por dia/semana para o mesmo destino resulta numa menor disponibilidade de aviões para assegurar uma rede de destinos tão vasta com a mesma frota.
O que está em causa nestas situações é sério: a seleção de um único candidato que passa a ter acesso, de uma só vez, a uma quantidade de “slots” que raramente estão disponíveis nessas condições tão amplas e que transforma drasticamente o mercado
Nesse sentido, identifica-se uma perda de conetividade para o aeroporto e, eventualmente, um desvio às expetativas geradas pós-concurso público, mas considera-se que os outros dois critérios prevalecem na avaliação concursal: o da capacidade média dos aviões que operam e o valor total dos lugares disponíveis nas duas temporadas do ano.
Capacidade média por voo – Vueling e easyJet têm um conceito pan-europeu de multi-bases e ambas utilizam aviões da família Airbus A320. Alguns são A319 (156; na última versão da easyJet para poupar um comissário: 150), outros são A320 (entre 180 e 186) e outros ainda são os A321 (235 lugares). A cada um deles corresponde um número determinado de funcionários e de empregos diretos no aeroporto onde estão baseados – no caso dos comissários, a variação pode ir de 3 a 5. O avião varia consoante a rota e a base. Em aeroportos congestionados – como os casos de Paris e Lisboa – é cada vez mais aconselhável utilizar aviões de maior porte. Como o “slot” é o mesmo e a dificuldade está em adicionar novos “slots”, aconselha-se utilizar o maior avião possível para cada “slot” e, assim, aumentar a capacidade sem grandes alterações. Esta é, aliás, a recomendação da própria CTI para o melhor aproveitamento da Portela[1].
Como as companhias utilizam um mix dos seus tipos de avião, a capacidade média por voo permite-nos aferir qual a tendência e qual a evolução. No caso da Vueling, resulta claro que são cada vez mais os voos operados com o A321 e isso reflete-se numa capacidade média sempre em crescimento em Orly. Já em Lisboa, após a promessa cumprida de basear os três aviões maiores logo a seguir ao concurso, testemunhámos, pelo contrário, uma queda desse valor. Isso significa que cada vez mais voos estão a ser operados por aviões menores do que o A321 e esta tendência merece ser analisada com maior detalhe à luz do concurso público.
Número total de lugares – à estratégia comercial de operar menos destinos não tem necessariamente de corresponder uma redução da oferta total de lugares como demonstra a evolução da Vueling em Orly, onde cada destino voado recebe mais voos por dia/semana; já em Lisboa, a easyJet revela uma redução a este nível do número total de lugares que poderá, à luz das obrigações derivadas do concurso público, ter algum impacto.
Como este estudo não teve a possibilidade de aferir a quantidade de voos/lugares operados pelos aviões da base ou, pelo contrário, provenientes de aviões de outras bases e tendo esse sido igualmente um critério determinante, é fundamental também fazer verificações a este nível.
Quem controla e a quem se queixar
Tão importante quanto estabelecer o “remédio”, criar um concurso público internacional e definir os critérios de adjudicação ao candidato único, seria igualmente importante assegurar a verificação efetiva do cumprimento das condições que determinaram a adjudicação do vencedor. Os dados são objetivos e neutros e estão facilmente disponíveis.
O que está em causa nestas situações é sério: a seleção de um único candidato que passa a ter acesso, de uma só vez, a uma quantidade de “slots” que raramente estão disponíveis nessas condições tão amplas e que transforma drasticamente o mercado: em Lisboa, a easyJet ultrapassou a rival Ryanair, passou a ter acesso ao terminal 1 e tornou-se na 2ª companhia mais importante. Para a Vueling, Orly tornou-se na sua 2ª maior base.
Torna-se vital compreender como e por quem essa função de fiscalização do “pós-concurso” é exercida e em que condições se deve ou se pode reverter o resultado. Para o futuro, será este o modelo de concurso limitativo o mais correto para os “remédios” ou, pelo contrário, provocam anos depois mais dores de cabeça ainda?
O número de destinos a operar e a permanência dos mesmos não foi determinante na escolha do vencedor do concurso público.
O número de lugares por avião era determinante por influenciar diretamente o número de lugares total disponível, o critério mais relevante para ganhar o concurso.
As comparações, para serem corretas, deverão ser sempre feitas entre estações correspondentes (exemplo: Inverno de 19/20 com Inverno 21/22). Na easyJet nota-se uma quebra constante que denuncia a utilização de aviões menores.
[1] https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/transportes/aviacao/detalhe/comissao-tecnica-quer-avioes-maiores-na-portela
PEDRO CASTRO
Diretor SkyExpert Consulting