Como aqui anteriormente ressalvado, a 14 de julho de 2021, a Comissão Europeia apresentou um pacote de propostas para tornar as políticas da UE em matéria de clima, energia, uso do solo, transportes e fiscalidade adequadas para reduzir as emissões líquidas de gases com efeito de estufa em pelo menos 55% até 2030, em comparação com os níveis de 1990 – o “Fit for 55”’.
O pacote incluía, entre outras, uma proposta de regulamento para garantir condições de concorrência equitativas para o transporte aéreo sustentável, também conhecida como iniciativa “ReFuelEU Aviation”.
Concretamente, o regulamento proposto obriga os fornecedores de combustíveis a distribuir combustíveis de aviação sustentáveis (SAF), com uma percentagem crescente de SAF (incluindo combustíveis de aviação sintéticos, ou e-combustíveis) ao longo do tempo, a fim de aumentar a utilização de SAF pelas companhias aéreas reduzindo desta forma as emissões no sector da aviação. Obriga igualmente as companhias aéreas a limitar o consumo de combustível de aviação antes da partida dos aeroportos da UE às quantidades estritamente necessárias para a operação segura dos voos, com o objectivo de garantir condições de concorrência equitativas para as companhias aéreas e os aeroportos, assim como evitar as emissões adicionais resultantes do aumento do peso das aeronaves pelo transporte de quantidades excessivas de combustível.
Da proposta em causa alguns pontos podem, e devem, ser louvados. Em primeiro lugar, o esforço da proposta de regulamento em compatibilizar as medidas propostas com o funcionamento do mercado único da aviação. Para o efeito, é reforçada a importância de harmonização de legislação no tema, a qual é invariavelmente suplantada pela legislação comunitária ocorrendo, a nível comunitário, uma concorrência no tema entre o regime de licenças de emissão, a “ReFuelEU Aviation” e a Diretiva sobre as Energias Renováveis (mais conhecida como a “RED”).
É bem sabido como o mercado único de aviação é imperfeito e, nessa imperfeição, assimétrico no fardo que recai sobre os operadores em comparação com os fornecedores de serviços, nomeadamente de navegação aérea.
Em segundo lugar, o espaço de articulação com a revisão das regras de reporte e monitorização de emissões ao abrigo do CELE/ETS e do CORSIA. O espaço para medidas ambientais começa a ficar algo saturado e carente de articulação entre as medidas. Não que as mesmas sejam excessivas, sempre me apresentei como um defensor do CELE (ainda que como uma ferramenta de meio e não de resultado), mas simplesmente não faz sentido obrigar à entrega de emissões por cada tonelada de combustível normal e não ser acautelada a utilização de SAF’s através do respetivo desconto nas licenças a entregar.
Em terceiro lugar, a referência expressa à intenção de articulação com a ICAO, o que, como se sabe, tem sido uma das grandes dificuldades na implantação de medidas de cariz ambiental. São sobejamente conhecidas as dificuldades de articulação entre o CELE e o CORSIA, em especial nas regras de implementação territorial do CELE em relação às regras de soberania da Convenção de Chicago, inclusivamente conduzindo à aplicação do “stop the clock” aos voos extra-comunitários. Por outro lado, existe um risco maior na dupla contabilização das emissões, o que tem de ser acautelado na relação entre o CELE e o CORSIA (e definitivamente banido da legislação nacional, uma vergonha muito propriamente nossa).
Nem tudo é perfeito, claro, e da análise atual das propostas legislativas do ReFuelEU Aviation e da proposta de Regulamento para a monitorização e reporte de emissões no âmbito do CELE[1], alguns pontos devem ser considerados pelos operadores.
Em primeiro lugar, as regras de minimis são diferentes nos dois regimes. No âmbito do ReFuelEU Aviation, um operador com menos de 729 voos num ano civil fica excluído do conceito de operador de aeronaves.
Em segundo lugar, as definições de SAF, na fase actual da indústria, não se encontram ainda aprimoradams. Dito de forma simples, nem todos os SAF’s são iguais, pelo que não faz sentido dar a todos o mesmo valor ambiental. Isto também se reflete nas regras de reporte e emissão no âmbito do CELE. Onde, aliás, convirá reforçar as obrigações declarativas dos fornecedores de combustíveis, caso contrário, sobrará para os operadores os riscos de penalização por insuficiente justificação das propriedades dos combustíveis utilizados quando essa informação poderá não ter sido recebida atempadamente. A Associação Airlines 4 Europe, por exemplo, tem defendido a criação de certificados de origem para os combustíveis SAF.
A mesma lógica pode, e deve, ser transposta para os aeroportos, já que, são estes que têm de garantir a disponibilidade de combustíveis em quantidade suficiente para que o operador possa garantir o mix no abastecimento. Caso contrário, não se pode, como é pretendido, limitar as práticas de tankering dos operadores ao limitar a quantidade de combustível a colocar a bordo.
Igualmente no que concerne às práticas de abastecimento, desde já fica a dúvida sobre as responsabilidades do operador nas situações onde o combustível não esteja disponível para utilização na operação ou quando o operador não possa atestar a informação relevante sobre o SAF fornecido. Sem uma isenção da proibição de tankering nestas situações, o operador encontra-se obrigado a utilizar o combustível disponível, independentemente da qualidade do mesmo. Eventualmente, uma obrigação de maior reporte da informação sobre o SAF produzido, nomeadamente sobre as suas propriedades e distribuição poderá fazer sentido, o que, por sua vez, será contabilizado na Base de Dados da União prevista na Diretiva RED II ou, em alternativa, a emissão de certificados de SAF modelados no sistema das Garantias de Origem existentes no sector elétrico.
Em conclusão, sem dúvida que caberá aos operadores, aliás como sempre, acompanhar e monitorizar com cautela os desenvolvimentos neste tema, com especial atenção a que as obrigações de todos os intervenientes sejam, de facto, assumidas por todos os intervenientes. É bem sabido como o mercado único de aviação é imperfeito e, nessa imperfeição, assimétrico no fardo que recai sobre os operadores em comparação com os fornecedores de serviços, nomeadamente de navegação aérea. Tratando-se do mesmo legislador, será importante que os operadores não se deixem surpreender. Por outro lado, é também responsabilidade do legislador comunitário uma efetiva coordenação entre, pelo menos, o CELE, o CORSIA, a RED e a ReFuel.
[1] Referimo-nos à proposta de atualização das regras de monitorização e comunicação das emissões aplicáveis no âmbito do Comércio de Licenças de Emissão da EU (CELE) cuja consulta pública foi encerrada a 23 de agosto.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial