Dependente da regulamentação, é comum vermos expressões diferentes para designar o mesmo conceito ou conceitos semelhantes.
Como me compete falar, não só de transportes como também de negócios, é importante esclarecer que, quando se fala de transportes (e em especial de mercadorias perigosas) este termo inclui não só a operação de transporte propriamente dita mas também as atividades a jusante e a montante.
Ou seja, as regras aplicáveis ao transporte de mercadorias perigosas não são só um problema e um conjunto de obrigações aplicáveis a transportadores rodoviários, ferroviários, aéreos ou marítimos. Estas regras são também aplicáveis às entidades responsáveis pela embalagem e enchimento de mercadorias perigosas, bem como às que carregam mercadorias em contentores ou veículos. Aplicam-se ainda às empresas que carregam ou descarregam contentores a partir de veículos ou vagões ou simplesmente descarregam matérias e objetos perigosos de qualquer unidade de transporte.
As conformidades legal e de segurança têm que começar a ser garantidas previamente ao início da expedição, antes da mercadoria começar a sua viagem do ponto A até ao ponto B, em vias do domínio público, bem como em quaisquer outras vias abertas ao trânsito público.
Quem pretender expedir uma mercadoria perigosa terá obrigatoriamente que saber se a mesma é classificada de acordo com os critérios dos modos de transporte a serem utilizados e, consequentemente, garantir as condições de acondicionamento definidas regulamentarmente…
Apesar dos critérios de classificação terem a mesma matriz inspiradora – o Livro Laranja das Nações Unidas, definindo limites harmonizados em matéria da afetação às classes de perigo e aos grupos de embalagem (“packing groups”) -, podem existir disposições especiais aplicáveis nalguns modos de transporte que, tendo em consideração o risco (que é distinto, apesar do perigo ser o mesmo), possibilitam a utilização de isenções ou dispensam a aplicação de certos requisitos de acordo com o ADR, RID, Código IMDG ou as Instruções Técnicas da OACI (ou DGR da IATA).
Muitas das vezes, quem expede a mercadoria não é o fabricante da mesma, e há mesmo situações em que, apesar de quem vendeu o produto ser o fabricante, quem é responsável pela expedição e contratualização do transporte é o comprador, de acordo com o estabelecido no contrato de compra e venda.
Aquele que colocar à expedição uma mercadoria perigosa, terá que saber que ela é perigosa e, por conseguinte, obrigada a cumprir um conjunto de requisitos que passam pela adequação da embalagem (ou outra forma de acondicionamento), da respetiva sinalização e marcação e das demais condições que garantam a expedição segura da mercadoria, nomeadamente em matéria da declaração da carga.
No transporte marítimo, o Código IMDG obriga a que, na documentação de transporte, o expedidor certifique, assinando e datando o documento, que o conteúdo da carga é descrito de forma completa e exata através da Designação Oficial de Transporte (“Proper Shipping Name”) e que está convenientemente classificado, embalado, marcado, etiquetado, sinalizado e, em todos os aspetos, em condições apropriadas para ser transportado em conformidade com a regulamentação internacional e nacional aplicável.
Como (…) parece não haver fiscalização em Portugal, talvez fosse tempo de as empresas seguradoras penalizarem as empresas que preferem viver no desconhecimento (…) potencialmente gerador de perdas e danos e premiar aquelas que procuram e aplicam as melhores práticas
Também no transporte aéreo é incontornável a assinatura de uma declaração equivalente, a responsabilizar o expedidor. É contudo aceite que pessoas ou empresas (incluindo consolidadores, despachantes e agentes) contratadas pelo expedidor, ajam em seu nome, assumindo as responsabilidades do expedidor na preparação da remessa, na condição de terem recebido a formação adequada.
Apesar de não existirem declarações equivalentes no transporte terrestre (no ADR e no RID), as obrigações de segurança dos expedidores estão claramente identificadas no Capítulo 1.4 dos referidos regulamentos, salvaguardada pela obrigatoriedade de nomeação de Conselheiros de Segurança, aplicável desde a publicação do ADR/RID 2019 e cujo período transitório excecional se esgotou a 31 de dezembro de 2022.
Nos regulamentos internacionais aplicados ao transporte aéreo e ao transporte marítimo não existe a figura de Conselheiro de Segurança (“Dangerous Goods Safety Adviser” ou simplesmente DGSA), mas tal não invalida a obrigatoriedade de cumprir com as regras definidas para o transporte de mercadorias perigosas e em especial com a formação de TODOS os intervenientes da cadeia logística.
À imagem do que acontece com o transporte aéreo, esta formação deveria ser aplicada a todos os que possam intervir com a carga, seja ela classificada ou não como perigosa, pois existem demasiados perigos ocultos e situações em que apenas alguém devidamente sensibilizado pode estar preparado para pequenos indícios sobre os perigos da mercadoria.
A carga declarada sob uma descrição geral pode conter matérias ou objetos perigosos que não são evidentes, sendo no modo aéreo esta questão um risco acrescido na bagagem dos passageiros. Mas não é um exclusivo deste modo de transporte. A profusão de isenções aplicadas ao transporte terrestre, bem como a proliferação do comércio eletrónico, potenciam a incorreta ou a não declaração de cargas perigosas, o que constitui uma séria ameaça à segurança de todos os envolvidos.
Como, à exceção do transporte rodoviário, parece não haver fiscalização em Portugal, talvez fosse tempo de as empresas seguradoras penalizarem as empresas que preferem viver no desconhecimento (e consequentemente em incumprimento) potencialmente gerador de perdas e danos e premiar aquelas que procuram e aplicam as melhores práticas, que em muitos casos vão além do mero cumprimento legal.
Há bons exemplos, mas infelizmente o incumprimento e o potencial risco de incidentes ou acidente é elevado. Vai-nos valendo a N. S. …
ADR – Acordo relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada, incluindo os acordos particulares assinados por todos os países interessados no transporte;
Código IMDG – Código Marítimo Internacional das Mercadorias Perigosas, regulamento de aplicação do Capítulo VII, Parte A da Convenção Internacional de 1974 para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (Convenção SOLAS), publicado pela Organização Marítima Internacional (OMI) em Londres;
DGR – Dangerous Goods Regulations da IATA – International Air Transport Association
Instruções Técnicas da OACI – Instruções técnicas para a segurança do transporte aéreo das mercadorias perigosas em complemento do Anexo 18 da Convenção de Chicago relativa à aviação civil internacional (Chicago, 1944), publicadas pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) em Montreal;
RID – Regulamento relativo ao Transporte Internacional Ferroviário de Mercadorias Perigosas, Apêndice C da COTIF (Convenção relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários).
JOÃO CEZÍLIA
Tutorial, Lda.
Sempre muito bem escritos estes artigos do João Cezília. Rigorosos e com conceitos bem explicados. Acresce a nota de humor no final!