São inúmeras as vezes que me deparo com a afirmação de que a aviação não paga impostos beneficiando de um regime verdadeiramente excecional. Importa dizer, antes que os incautos leitores decidam que a aviação é o seu futuro por sofrerem de ansiedade tributária, que não é bem assim.
Existem, de facto, algumas isenções que aproveitam a aviação internacional, mas a mais importante de todas será, porventura, a isenção sobre a aquisição de combustível, sendo sobre essa que iremos escrever hoje, até porque o quadro irá mudar radicalmente num futuro muito próximo e os operadores têm de se preparar para este novo desafio.
Faz assim sentido realizar uma pequena resenha do quadro atual no que concerne a tributação do combustível utilizado na aviação, para seguidamente, sublinhar as diferenças que se aproximam.
O quadro atual
Ao contrário do que muitas vezes é dito, a Convenção de Chicago não exclui a tributação de combustível destinado à aviação. A única norma da Convenção relevante para o tema consta da alínea a) do artigo 24.º, o qual indica: “As aeronaves que entrem, saiam ou atravessem o território de um Estado contratante serão temporariamente isentas de direitos aduaneiros, sujeitando-se contudo aos regulamentos aduaneiros desse Estado. Os combustíveis, os óleos lubrificantes, as peças sobressalentes, o equipamento normal e as provisões (de bordo) existentes a bordo de uma aeronave pertencente a um Estado contratante, à chegada ao território de outro Estado contratante, e que se encontrem ainda a bordo à partida do território desse Estado, serão isentos de direitos aduaneiros, taxas de inspeção ou de quaisquer outros direitos ou taxas do mesmo género, quer nacionais quer locais…”
Ora, é minha opinião que a norma em causa é clara. Esta não proíbe a taxação de combustível, apenas visa prevenir a dupla tributação de combustível embarcado na medida em que pode ocorrer tributação no estado de embarque do combustível, não podendo apenas ocorrer a tributação sobre combustível já embarcado em outro Estado Contratante.
Dando corpo à norma com um exemplo, o Estado “A” (por exemplo, “Andria”) não pode tributar combustível abastecido no Estado “B” (por exemplo, “Zora”) ainda que a aeronave aterre ou sobrevoe o território de Andria. A isenção do artigo 24.º inclui também o combustível efetivamente gasto a sobrevoar o território de Andria. Por outro lado, nada impede o Estado de Zora, local de abastecimento, de tributar o operador de aeronaves pelo combustível aí abastecido.
Em virtude do alcance limitado do artigo 24.º da Convenção, é usual os Estados contratantes adicionarem disposições sobre esta matéria nos Acordos de Serviços Aéreos, aí sim, proibindo a taxação de combustíveis utilizados na realização de transporte aéreo internacional de natureza comercial entre Estados.
Quando existentes, sendo que em uma grande maioria dos acordos de serviços aéreos, essa isenção existe, a taxação de operadores designados por um Estado é proibida no outro Estado. Consequentemente, nada impede os Estados de tributarem os operadores por si próprios designados ao abrigo dos acordos.
Ou seja, retomando o nosso exemplo, no Acordo de Serviços Aéreos entre Andria e Zora, Andria pode, em abstrato, tributar o combustível das empresas de transporte aéreo por si designadas, não podendo apenas tributar o combustível embarcado pelas empresas designadas por Zora no seu Estado, sendo que o combustível já embarcado em Zora sempre estaria isento ao abrigo do artigo 24.º da Convenção.
Ao conceder aos operadores do outro Estado um benefício que não granjeia aos seus próprios operadores, estamos perante um caso de “discriminação positiva”. Não obstante a aprovação de formas de discriminação positiva não ser proibida pelo direito internacional, o ambiente altamente competitivo da aviação internacional torna tal prática, no mínimo, invulgar. Adicionalmente, o cenário descrito é um convite a práticas de tankering, ou seja, existindo tributação sobre o combustível em apenas uma das jurisdições, os operadores darão preferência ao abastecimento na outra jurisdição (ou seja, sendo o combustível embarcado em Andria por operadoras designadas por Andria, tributado em Andria, os operadores abastecerão em Zoria desde que o combustível extra abastecido gasto para o transporte desse combustível adicional não seja em si mais caro que o total de imposto a pagar).
A nível comunitário, este tema encontra-se regulado desde 2003 pela Diretiva 2003/96/CE (Diretiva sobre a Tributação da Energia, a “DTE”).
No âmbito da DTE, é importante discernir duas realidades diferentes. A taxação de voos domésticos e a taxação de voos intracomunitários.
Deixe-se já claro que, em sentido contrário do que é “achismo”, a DTE permite a taxação de combustíveis destinados à aviação para voos domésticos, sendo que existem hoje Estados-Membros a fazer uso desta permissão e tributando combustíveis utilizados em voos domésticos. Por outro lado, no que diz respeito a voos intracomunitários, a Diretiva permite a taxação de combustíveis utilizados quando a não isenção em causa se encontrar acordada bilateralmente pelos Estados respetivos.
Este problema agudiza-se especialmente no caso de Estados-Membros com menor força negocial perante mercados importantes que se oponham à aplicação de uma solução semelhante nos seus estados. Será sempre mais fácil, aos operadores, aplicarem práticas de tankering, abastecendo no território da contraparte, com prejuízo ambiental, social e económico para a indústria de transporte aéreo comunitária.
Finalmente, é na aviação comercial extracomunitária apenas que se encontra a isenta de tributação dos combustíveis.
Pelo que, em conclusão preliminar, a ideia de que a aviação “não paga impostos” está errada. No caso específico dos combustíveis, apenas a aviação comercial internacional extracomunitária se encontra legalmente isenta de tributação sobre os combustíveis, existindo base legal para a tributação de todos os restantes casos.
O quadro futuro
Dentro do pacote legislativo do “Objetivo 55”, pouco tem sido falado sobre a Diretiva que reestrutura o quadro da União de tributação dos produtos energéticos e da eletricidade, ou seja, a revisão da DTE. No quadro desta revisão, a isenção obrigatória aplicada à aviação comercial internacional será, simplesmente, removida no período temporal de dez anos. A metodologia é simples funcionando através da aplicação de aumentos decimais, à razão de uma décima por ano, até à harmonização da tributação da aviação extracomunitária com a aviação intracomunitária.
É também importante notar que esta aplicação da tributação sobre combustíveis se aplicará, cita-se diretamente da proposta, “sem prejuízo das obrigações internacionais dos Estados-Membros”, o que se refere, sem dúvida, à problemática das isenções acordadas em acordos de serviços aéreos entre Estados-Membros e estados terceiros.
Somos de crer, contudo, que é precisamente neste ponto que reside o problema. Como referido acima, a isenção sobre a tributação de combustíveis negociada em acordos de serviços aéreos, na sua larga maioria, apenas incide sobre as companhias designadas pela contraparte, não existindo um impedimento a práticas de discriminação positiva. Ora, desta forma, sendo os Estados-Membros obrigados a tributar as companhias aéreas que abasteçam no seu território encontrando-se apenas os operadores designados pela contraparte isentos, a discriminação positiva dos operadores designados pelos Estados-Membros torna-se inevitável.
A resposta da Comissão é, a nosso ver, preocupante e insuficiente. Consta da proposta um parágrafo exclusivamente dedicado a este problema, o qual indica: “No que diz respeito à aviação, a UE negociou, em nome da União e dos Estados-Membros, acordos horizontais de serviços aéreos e acordos globais de transporte aéreo com países terceiros. Além disso, os Estados-Membros celebraram também acordos bilaterais de serviços aéreos com países terceiros. Os acordos horizontais de serviços aéreos permitem à UE alterar uma série de disposições dos acordos bilaterais dos Estados-Membros”.
Não deixando de ser verdade a possibilidade de negociação de acordos horizontais de serviços aéreos, não pode deixar de ser referido que o sucesso da política de negociação de acordos horizontais pela Comissão se qualifica, no melhor cenário, como tímido. Por outro lado, se, crê a Comissão, a nova DTE levará os Estados-Membros a negociar alterações aos Acordos de Serviços Aéreos onde os acordos horizontais não chegam, dir-se-ia que não só a Comissão tem uma fé injustificada na sua capacidade de celebração de acordos horizontais como tem uma fé igualmente injustificada no poder negocial dos Estados-Membros em conseguir alterar os Acordos de Serviços Aéreos existentes.
Este problema agudiza-se especialmente no caso de Estados-Membros com menor força negocial perante mercados importantes que se oponham à aplicação de uma solução semelhante nos seus estados. Será sempre mais fácil, aos operadores, aplicarem práticas de tankering, abastecendo no território da contraparte, com prejuízo ambiental, social e económico para a indústria de transporte aéreo comunitária.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial
Como cidadão, agradeço as informações deste artigo que me parece pertinente, merecendo ampla divulgação.
Excelente artigo. Parabéns