Dedicamos este texto aos profissionais de transportes, em particular aos motoristas, dando a conhecer parcialmente a matéria de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho sofridos, bem como duas decisões dos nossos Tribunais nesta matéria, por haver situações concretas em que não foi linear qualificar ou não determinados eventos como acidente de trabalho.
Em primeiro lugar, alertamos que, em Portugal, a matéria de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais consta do mesmo diploma (Lei 98/2009, de 4 de setembro – doravante Lei dos Acidentes de Trabalho), mas enquanto a reparação dos acidentes de trabalho obriga as entidades empregadoras à contratação de um seguro, a reparação das doenças profissionais fica, em princípio (e referimos em princípio porque há exceções, nomeadamente nos casos de doenças profissionais resultantes de situação de assédio laboral), a cargo da Segurança Social (Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social).
Nem sempre é fácil distinguir o acidente de trabalho da doença profissional, e por vezes nem mesmo da doença natural, designadamente porque o regime legal prevê a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional mesmo nos casos de predisposição patológica (causa patente ou oculta que prepara o organismo para, em prazo mais ou menos longo e segundo graus de várias intensidades, poder vir a sofrer determinadas doenças, funcionando nestes casos o acidente de trabalho como agente ou causa próxima desencadeadora da doença ou lesão[i]).
Há cerca de um ano (5 de junho de 2023), foi proferido um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto[ii] relativamente a um motorista de serviço internacional, que, na Suíça (Estado da Basileia), pretendia proceder à descarga do veículo com a mercadoria que havia de transportar para Portugal, para depois poder proceder à carga, quando, em momento não concretamente apurado, se sentiu mal, foi conduzido ao hospital e foi-lhe diagnosticado um acidente vascular cerebral hemorrágico (AVCH), tendo sofrido um episódio de sangramento espontâneo resultante da rutura de pequenas artérias cerebrais (logo, não hemorragia traumática), tendo sido operado de urgência, o que o Tribunal considerou escasso para se dizer ter sido demonstrada a ocorrência de acidente de trabalho. Verificadas as principais etiologias associadas ao AVCH, e verificado que os hematomas espontâneos geralmente estão associados à fragilidade vascular e a fatores de risco, e que o motorista havia sofrido esta alteração do seu estado de saúde por causas naturais, determinada pela sua condição física (sofria de Hipertensão Arterial e fibrilação auricular, tomava medicação e estava hipocoagulado, o que são fatores de risco para uma hemorragia intracerebral espontânea ou AVCH, sem necessidade de qualquer fator externo – físico ou psicológico – que a desencadeie), o Tribunal afastou, neste caso concreto, o conceito e a reparação de acidente de trabalho. Concluindo mesmo que neste caso se provou que o sinistrado sofreu um episódio hemorragia intracerebral espontânea (AVC), não se provando que o AVC foi subsequente a traumatismo decorrente de queda, não sendo bastante para se poder concluir em sentido diverso a circunstância de ser pacífico ter ocorrido quando no local e no tempo de trabalho.
De todo o modo, importa atentar que o regime legal tem um conceito bastante lato do que é local e tempo de trabalho para efeitos de acidente de trabalho, de tal modo que, o mesmo Tribunal (Relação do Porto) no ano anterior (junho de 2022), decidiu que é acidente de trabalho o sofrido por motorista de pesados que, encontrando-se em período de descanso no camião por já ter esgotado o tempo de condução legalmente previsto, durante a noite se levanta e acaba por cair do camião[iii].
Nem sempre é fácil distinguir o acidente de trabalho da doença profissional, e por vezes nem mesmo da doença natural…
Efetivamente, a Lei dos Acidentes de Trabalho define como tempo de trabalho, além do período normal de trabalho, o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho. No caso concreto, o motorista encontrava-se no concelho de Cantanhede, no interior do veículo de pesados pertencente à sua entidade empregadora, onde pernoitaria, até que no dia seguinte fizesse um outro transporte a partir desse local, e encontrava-se naquele local porque lhe tinha sido ordenado pela sua entidade empregadora que naquela semana faria o transporte de estilha desde o Porto de Leixões, em Matosinhos, para a Figueira da Foz e que, ao final do dia, não regressaria a casa, mas antes pernoitaria num local que se situasse no percurso do trajeto que lhe havia sido incumbido, de forma a rentabilizar o transporte de carga e consequente aumento de produtividade/rendimento da entidade empregadora. Depois de jantar, o trabalhador recolheu-se a dormir no camião, pois iria retomar o trabalho e a viagem pelas 6 horas da manhã do dia seguinte. Pelas 00h30m do dia 28/12/2017, acordou e abriu a porta do camião para urinar colocando uma perna de fora da cabine no degrau, acabando por se desequilibrar dando uma queda de cerca de 2 m, sofrendo lesões corporais. Concluiu o Tribunal que, se o motorista pernoitasse em casa, pretendendo deslocar-se à casa de banho, não teria de descer de um camião (nem subir ou descer escadas). A própria Lei prevê situações que equipara a “tempo e lugar de trabalho”, desde logo as “interrupções normais ou forçosas de trabalho” e as “deslocações de ida e regresso do trabalho” e que, ocorrendo o acidente fora do horário de trabalho, importa ainda assim ver se o trabalhador tinha ou não recuperado a sua independência em relação à missão profissional. Tendo o motorista de veículo pesado, esgotado o tempo de condução diária, e, por estar afastado da sua residência, ter pernoitado no camião que conduzia para no dia seguinte prosseguir a tarefa que lhe estava adstrita pela empregadora (o transporte da mercadoria/levar o camião ao destino), levou que o Tribunal considerasse que este “descanso forçado naquele local” o sujeitasse, ainda que indiretamente, ao controlo/direção da empregadora; e por isso é de qualificar a queda que sofreu, da qual resultou incapacidade para o trabalho, quando a dado momento da noite, durante a pernoita no camião, se levantou para urinar, como acidente de trabalho.
[i] Parte do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08 de maio de 2023 [consultável em www.dgsi.pt, Processo nº 1162/18.6T8PNF.P1].
[ii] Processo: 661/18.4T8PNF.P1[consultável em www.dgsi.pt].
[iii] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de junho de 2022, Processo judicial n.º 1345/18.9T8VNF.P1[consultável em www.dgsi.pt].
JOANA CARNEIRO
Advogada, sócia da JPAB – José Pedro Aguiar-Branco Advogados