O Governo Regional dos Açores está em vias de adiar, sem prazo, uma decisão sobre possíveis alterações ao sistema[i] dos transportes marítimos que é um dos principais pilares da Economia da Região. O fundamento é que não pretende qualquer cenário de DISRUPÇÃO.
Acontece que a frota de sete navios que suporta o sistema tem uma idade média de 25 anos, e dois deles estão com quase 30 anos. Estão no fim da vida útil comercial, isto é, a idade máxima com que um navio pode efetuar operações de forma eficiente, sem frequentes avarias que perturbem a normalidade do serviço de linha e afetem o nível dos serviços prestados bem como os resultados de exploração do armador.
Uma DISRUPÇÃO no sistema de transportes marítimos não é um cenário teórico. Na minha opinião, ela vai acontecer nos próximos dois a três anos se não for injetado CAPITAL, privado e/ou público, que permita renovar a frota.
Para renovar a frota com 7 navios, novas construções, encomendados “à medida”, isto é, com características (comprimento, boca, calado, velocidade e capacidade de carga) ajustadas ao tráfego e aos portos dos Açores, será necessário um plano de investimento em 5 anos que, aos mais baixos preços atuais no mercado, envolverá um valor não inferior a 150 milhões de Euros.
Podem acontecer vários cenários nos próximos três anos:
- Os armadores podem decidir adquirir NOVAS CONSTRUÇÕES (individualmente ou em associação). Para isso necessitam de algum capital próprio, de financiamento de instituições financeiras especializadas, ou de uma parceria com algum grande armador que esteja disponível para assumir o risco de investimento. Um cenário possível se os armadores nacionais tiverem uma estratégia, capacidade de a operacionalizar e uma envolvente internacional, nacional e regional que a favoreça.
- Os armadores podem optar por AFRETAR NAVIOS no mercado internacional (a casco nu ou a tempo) para substituir os atuais. Os navios utilizados atualmente têm o seu custo de aquisição amortizado há vários anos e um custo de capital relativamente baixo. As taxas de frete no mercado de afretamento estão muito elevadas e os navios disponíveis do tipo indicado são escassos e não reúnem as características atrás referidas.
- Os armadores podem optar por PROLONGAR por mais alguns anos a vida dos atuais navios. Na realidade, existem navios com mais de 30 anos a operar em mercados recuados, nomeadamente no tráfego costeiro em África. Os custos de classificação de cada um dos navios atuais nunca será inferior a 700.000 Euros e podem ser duas a três vezes superiores se for necessário substituir aço ou efetuar grandes intervenções nas máquinas ou nas gruas. Esse valor é sustentável para os armadores, mas para o sistema representa caminhar para a rotura.
- Os armadores podem combinar os cenários II e III.
O cenário III (prolongar a vida do navio até ao limite de segurança) é o mais provável e aquele que dará origem à DISRUPÇÃO no sistema. Avarias frequentes vão levar a imobilizações que podem ser prolongadas, atrasos, não disponibilidade de gruas de bordo, dificuldades de manobra em portos, redução na velocidade, etc..
Uma DISRUPÇÃO no sistema de transportes marítimos não é um cenário teórico. Na minha opinião, ela vai acontecer nos próximos dois a três anos se não for injetado CAPITAL, privado e/ou público, que permita renovar a frota.
O sistema atual ou qualquer modelo do mesmo será impossível de estudar com base na frota atual.
De acordo com Regulamento N.º 3577/92 (Aplicação do Princípio da Livre Prestação de Serviços aos transportes marítimos internos nos Estados Membros) numa situação de DISRUPÇAO, designada no texto por PERTURBAÇÃO GRAVE (artigo 5.º), o Estado Português pode solicitar à Comissão Europeia a adoção de medidas de salvaguarda, que em situação de emergência serão unilaterais.
No Cenário III, o Estado Português (Assembleia Regional, Assembleia da República, Governo Regional e Governo da República) pode tomar a seu cargo um Plano de Investimento a 5 anos, adquirir os navios e colocar a concurso público internacional a sua exploração num Modelo de Gestão a definir de forma detalhada num caderno de encargos (contrato de concessão por um período a definir).
É um cenário extremo, mas existem outros, intermédios, dentro do mesmo fundamento – uma perturbação grave – uma situação em que os operadores instalados não conseguem assegurar o comércio marítimo na RAA.
Os cenários I e II implicam que as empresas possam obter financiamento junto de instituições financeiras especializadas na compra e venda de navios. A capacidade de conseguir esse financiamento com uma percentagem reduzida de capital próprio e taxas de juro favoráveis depende de uma avaliação de risco.
Se o Governo Regional dos Açores não decidir qual o Sistema de Gestão dos Transportes Marítimos, mas continuar a afirmar apenas que ele irá mudar talvez no curto, talvez no médio, ou talvez no longo prazo está a criar um contexto do negócio (privado ou público) que não é nada propício para atrair financiadores porque gera INCERTEZA e conduz a uma avaliação de risco desfavorável.
O QUE TEM DE FICAR CLARO SOBRE O SISTEMA ATUAL
O sistema atual decorre de 30 anos de pensamento, ação e muito “lobbying” por parte de armadores que estão hoje no mercado e outros que já não estão, sendo que um deles, ao longo deste período, já pertenceu a diferentes grupos económicos nacionais e estrangeiros (recordo que foi uma empresa belga, seu acionista, que decidiu e apoiou a operação financeira que levou à aquisição dos navios que são ainda hoje o pilar central do sistema).
O sistema atual não tem um quadro legal onde os Governos Regionais da Madeira e dos Açores tenham tido uma intervenção decisiva. Basta ler com atenção os Considerandos do Regulamento 3577/92 e vários artigos do Decreto-lei n.º 7/2006 para se perceber que os “BENEFICIÁRIOS” objetivos deste quadro são os armadores.
O modelo atual tem várias e importantes limitações. Os aspetos em baixo referidos não são uma opinião pessoal, são uma recolha de opiniões de clientes dos serviços:
- O sistema atual não favorece o desenvolvimento das EXPORTAÇÕES. Pelo contrário, é uma barreira. Nenhuma das obrigações de serviço público está orientada para as necessidades do setor exportador (para o continente e para o mercado internacional). Os exportadores de produtos perecíveis necessitam de garantia de tempos em trânsito inferiores a 5 a 6 dias (qualquer ilha). O sistema está orientado para as necessidades dos importadores, em particular do comércio a retalho (supermercados).
- O sistema atual não favorece o COMÉRCIO INTERNO. Terá mesmo contribuído decisivamente para a sua destruição. O sistema está virado para a importação. As frutas vêm do Algarve e da Andaluzia, os produtores da Graciosa há muito desistiram de lutar contra as barreiras do sistema de transporte marítimo.[ii]
- O sistema atual não é resiliente em situações de CRISE ou EMERGÊNCIA (condições meteorológicas extremas, crises sísmicas e vulcânicas ou outro tipo de desastres naturais). Nessas situações sempre foi necessário trazer e fixar navios na RAA (último exemplo foi o furacão Lorenzo).
- O sistema atual conduz a TAXAS DE UTILIZAÇÃO DOS NAVIOS MUITO BAIXAS. Elevados períodos de imobilização em portos a aguardar a viagem seguinte. Em média, em 25% dos dias do mês os navios estão parados em porto a aguardar o dia de saída para a viagem seguinte. Os navios, como os aviões, representam um elevado custo de capital, vê-los parados parte o coração dos clientes e dos contribuintes.
- O sistema está esgotado do ponto de vista da possibilidade de REDUZIR PREÇOS, taxas de frete e adicionais. Nas ilhas “pequenas” os clientes não podem beneficiar de descontos de quantidade que se possam comparar com as ilhas “grandes” porque o seu volume de carga é muito reduzido. As tabelas de fretes publicadas pelos armadores são iguais para todas ilhas, mas os descontos de quantidade e os descontos financeiros são DISCRIMINATÓRIOS, só os grandes carregadores (que estão nas “ilhas grandes”) podem beneficiar deles. Os descontos são confidenciais, concedidos fora da fatura através de notas de crédito. Estas práticas podem levantar dúvidas de legalidade. “Praticar o mesmo frete para a mesma mercadoria, independentemente do porto ou ilha a que se destine” é uma obrigação de serviço público de alcance prático muito limitado e de alcance político sobrevalorizado.
- O sistema não permite CONCORRÊNCIA significativa entre os armadores. Para cumprir com as obrigações de serviço público os armadores partilham espaço nos navios uns dos outros. O recurso à subcontratação está suportado na lei, mas leva a que os armadores se sentem à mesa para negociar custos. Situação muito propícia a que nesse momento também se fale dos clientes. Na Madeira, onde operam apenas dois armadores, um deles controla hoje 70% do mercado e os dois em consórcio são concessionários do terminal portuário onde operam no porto de Lisboa. No passado, a Autoridade da Concorrência identificou situações de concertação mais do que evidentes. Nos Açores, a Autoridade da Concorrência nunca efetuou semelhante análise que seria justificável pelas questões atrás colocadas.
A Autoridade da Concorrência[iii] propôs que:
“o atual regime especial dos transportes regulares de carga geral ou contentorizada entre o Continente e as Regiões Autónomas seja objeto de UMA REAVALIAÇÃO PELO LEGISLADOR, em conjunto com os Governos Regionais, a DGRM, o IMT, I.P. e a AMT, tendo como objetivo a identificação e avaliação de modelos alternativos de regulação do mercado de serviço público, com vista a dotar o legislador de informação que possibilite a escolha do modelo mais adequado, que promova a eficiência e minimize as distorções da concorrência. São necessários ESTUDOS ECONÓMICOS APROFUNDADOS que podem ser feitos por cada um dos agentes económicos e políticos intervenientes, mas que no final têm de ser EFICAZES PARA SUPORTAR UMA DECISÃO ao nível da Assembleia da República”.
Estou totalmente de acordo com a Autoridade da Concorrência.
[i] É necessário precisar a diferença entre sistema e modelo: “um sistema é todo e qualquer objeto sobre o qual se pretende realizar um determinado estudo, enquanto um modelo é uma qualquer representação desse objeto na qual se irá, efetivamente, executar tal estudo.” Noutras palavras, “um sistema é o objeto de estudo, enquanto um modelo é uma ferramenta usada para entender ou interagir com esse objeto de estudo. Os modelos são usados para representar sistemas de uma maneira que seja mais fácil de manipular, analisar e compreender”. Fonte: ChatGPT.
[ii] Ver, por exemplo, declarações recentes do Presidente da Associação de Agricultores da Ilha Graciosa.
[iii] Parecer da AdC ao Projeto de Lei nº324/XV/1.ª (PSD) de 24 de novembro de 2022.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos