O Governo Regional dos Açores prometeu “um estudo sobre o transporte marítimo de mercadorias na Região Autónoma dos Açores, que permitirá alavancar a criação de um verdadeiro mercado interno, através da definição de soluções para os problemas apontados ao modelo atual e do estudo de modelos alternativos”. O consultor refere na introdução do estudo entregue ao GRA que não trabalhou em modelos alternativos, mas numa recolha de opiniões entre os stakeholders e que utilizou como pressuposto as infraestruturas e a frota de navios existente, isto é, não cumpriu com a orientação recebida.
Análise da situação atual
A análise é empírica, efetuada com base em escalas e itinerários dos navios anunciados e não os efetivamente realizados e com base num único mês de 2023.
Em estudos internacionais similares são hoje utilizadas as bases de dados de AIS (Automatic Identification System), sistema que segue os navios 24 horas por dia permitindo identificar tempos reais de viagem, de operação ou imobilização em portos, motivos de quebras nas operações, taxas de ocupação da frota, etc.. Veja-se, por exemplo, em www.marinetraffic.com onde se oferece esse tipo de serviços sob a designação Analytics for Ports & Terminals.
A análise desses dados de AIS permitiria tornar transparente o modelo operacional atual e avaliar o seu verdadeiro desempenho ao longo de um período longo, em lugar de uma análise empírica com base em itinerários anunciados pelos armadores, que todos os agentes económicos sabem não serem cumpridos. A análise de AIS iria permitir que os armadores e os seus clientes se pronunciassem sobre dados exatos e não sobre “sensações” ou “opiniões” sobre o modelo de gestão atual.
A análise da situação atual carece de informações que, nos termos dos artigos 7.º (Informação) e 8.º (Observatório de Informação) do Decreto Lei n.º 7/2006, deviam estar disponíveis para o Governo Regional e para o Governo da República. Se não estão disponíveis é por desleixo e desinteresse de ambos.
Nestas condições, para os consultores não podem ser disponibilizadas pelo GRA estatísticas de tráfego por navio (detalhadas por viagem) mas apenas estatísticas portuárias globais da Portos dos Açores. O estudo não apresenta sequer matrizes de tráfego com todas as origens e todos os destinos, por escala, por tipo de contentor, cheios e vazios, etc.. Para estudos de modelos de tráfego, existe uma diferença significativa entre “tráfego de transportes marítimos de mercadorias” e “movimentação de carga nos portos”.
Não estando o disposto Decreto Lei n.º 7/2006 a ser cumprido, os consultores também não tiveram acesso à estrutura de custos dos serviços explorados pelos armadores e referem que utilizaram estimativas próprias, valores médios determinados com base em análises ou fontes não reveladas. Mas na ausência desses dados reais o consultor poderia ter construído contas de exploração com base em viagens tipo, isto é, com todos os pressupostos em cima da mesa, em lugar de uma recolha de opiniões.
Aspetos específicos
a ) Afirma-se que o Decreto-Lei n.º 7/2006 “transpôs” para a legislação Portuguesa o regime Comunitário aplicável aos serviços de cabotagem marítima, mas não se refere que as Obrigações de Serviço Público foram aprovadas pelo Governo da República, ouvidos o GRA e os Armadores. Nesse decreto-lei são definidas competências do IPTM relativamente à cabotagem insular que não estão hoje a ser exercidas pela AMT (Autoridade da Mobilidade e Transportes) desde que foi criada em 2014. Isto é, não existe Regulação num mercado que não está liberalizado conforme determinado pelo Regulamento CEE de 1999, está sim totalmente condicionado por obrigações de serviço público (OSP) que os consultores tomaram como pressuposto e não como alvo de avaliação para mudança. Como o modelo é centrado nas OSP é evidente que do estudo não podem resultar alternativas.
b) Os consultores não atendem a que idade média da frota de navios a operar atualmente é de 24 anos, sendo que um dos navios tem 29 anos, isto é, alguns navios estão no fim da sua vida útil para um serviço de linha regular com requisitos particulares: operacionais, de garantia de serviço e segurança. Construíram cenários pressupondo que os navios atualmente em operações estarão disponíveis no futuro, o que é impossível.
c) Foi apenas analisado um mês de operações, o que é claramente insuficiente. Para mais sendo maio um mês em que as operações estão sob menor pressão: não é pico de tráfego e as condições de navegação são favoráveis.
Estudo sobre transportes marítimos parte do pressuposto que o quadro legal, a frota de navios e as infraestruturas portuárias futuras serão iguais às atuais
d) Os consultores identificaram que “para cumprimento das obrigações de serviço público de escala uma vez a cada quinze dias, os armadores recorrem à subcontratação (slots) entre si, referentes aos portos da Horta, Pico, Velas, V. Porto, Graciosa, Flores e Corvo”. Não se detalha e analisa esta subcontratação ao abrigo do enquadramento legal e as consequências que tem para os clientes do ponto de vista da concorrência. Esta transação de espaço em navios entre as três empresas, embora inevitável face às OSP, mostra que não existe concorrência no mercado.
e) Relativamente aos preços (fretes), não foram avaliados os diversos Adicionais ao Frete e a Fatura Final para o carregador em cada uma das ilhas. Os fretes de tabela são iguais para cumprir a lei. Os descontos comerciais e financeiros fazem a diferença por carregador (recebedor). Os grandes carregadores (por exemplo, o setor da distribuição a retalho) têm fretes líquidos mais baixos do que o carregador comum que tem reduzido volume de cargas, como é o caso da generalidade dos carregadores das pequenas ilhas. A igualdade de fretes entre as ilhas é uma ficção, e não foi analisada.
f) Sobre o transporte de gado vivo teria interesse analisar as práticas atuais (dias em viagem), decorrentes das OSP e do modelo de transporte marítimo, e não a regulamentação (que não é cumprida).
g) Sem qualquer análise operacional ou comercial, refere-se que “a existência, no porto de Lisboa, de um terminal comum a todos os armadores de cabotagem insular é um fator de sucesso para a implementação dos cenários anteriormente apresentados”. Um terminal dedicado à cabotagem insular, com reduzido tráfego, teria custos por contentor movimentado mais elevados que qualquer outro terminal internacional em Lisboa. Nada foi estudado, trata-se de opiniões não fundamentadas.
h) Os consultores referem que “não estão disponíveis dados detalhados, por armador, quanto às receitas individualizados da operação entre o continente e a RA” e que não tiveram “acesso aos custos dos armadores”. Não se refere se esses elementos foram solicitados às empresas.
i) Os consultores referem que “existe uma discrepância entre as receitas e a procura. As receitas do segmento continente – Açores têm um peso (83%) muito superior ao peso relativo da procura (57%). O peso das receitas do segmento Açores – continente (12%) é quase 1/3 do peso da procura neste segmento (30%)”. Não se trata de uma discrepância, mas de um erro de avaliação; as receitas continente – Açores determinadas pelo consultor são as brutas e não as líquidas, no segmento Açores – Continente não existem descontos significativos face à tabela.
Problemas e desafios
No capítulo “problemas e desafios” confundem-se opiniões com conclusões e fazem-se conclusões que nada têm a ver com a análise da situação atual.
O alvo de benchmarking escolhido, as Canárias, é um sistema de transporte marítimo com dimensão, tipo de operações e tipo de navios totalmente desadequado a uma análise comparativa. Mas mesmo assim o consultor podia ter identificado que nas Canárias, o armador Boluda Shipping tem um serviço de linha de contentores designado por “Daily Canarias”, um serviço em que o navio(s) roda(m) num mesmo itinerário de forma consecutiva sem paragens em portos que não sejam para embarcar e desembarcar contentores. Um serviço orientado para a exportação de produtos perecíveis para portos do continente. Algo que valeria a pena analisar em detalhe.
Cenários analisados
Os oito cenários não são na realidade cenários (estratégicos), mas sim variantes dentro do modelo atual.
Por exemplo, refere-se em relação a um deles que “não existe unanimidade quanto à sua viabilidade: alguns armadores consideram este modelo viável, enquanto que outros consideram-no inviável”. E então?
Outro exemplo, no relativo à velha questão da participação dos operadores de tráfego local na distribuição de contentores entre as ilhas conclui-se que “a opção pela subcontratação de serviços de tráfego local para a realização de serviços de transporte de contentores para as ilhas mais pequenas tem que ser competitiva e vantajosa face à alternativa de realização destes serviços através de navios de cabotagem insular. Caso contrário, os armadores de cabotagem insular não terão qualquer incentivo em alterar o atual modelo”. E então?
Não vejo que o Governo Regional dos Açores possa tirar algum partido deste tipo de avaliações.
Foi nomeada para se pronunciar sobre as conclusões do estudo uma comissão presidida por um ex-administrador de um dos armadores, ex-presidente da associação de armadores e também ex-presidente da AMT. Alguém responsável por anos de total falta de transparência nas relações entre os armadores e o GRA com a cobertura política de diferentes Governos da República.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos