Uma das razões pelas quais trabalhar com a indústria aérea é tão desafiante é a assimetria de realidade entre as várias partes interessadas. Um transportador aéreo, pelo menos um cujo acionista não esteja preso nos anos oitenta, move-se num quadro regulatório e concorrencial marcado por dois paradigmas. Por um lado, a forte concorrência entre transportadores aéreos, por outro, a assimetria no enquadramento concorrencial dos transportadores aéreos em relação aos seus fornecedores de serviços, onde muitos se encontram em posições monopolistas ou, quando não monopolistas, de considerável força de mercado.
Caso concreto, quando pensamos em navegação aérea, um operador aéreo não tem condições de negociar com o Eurocontrol o pagamento de taxas de navegação em atraso sem arriscar a penhora de uma aeronave sua (mesmo quando se trate de dívidas de outro operador!). O Single European Sky tem também demonstrado de forma cabal como os interesses de alguns Estados no Conselho se sobrepõem ao interesse dos operadores, os quais, com pouca ou nenhuma voz, têm de aceitar aumentos de taxas de navegação não acompanhados de aumentos de desempenho por parte dos serviços.
Igualmente no que diz respeito a manutenção ou fornecimento de equipamento para operar, idem, não há um operador nacional que tenha força suficiente para se impor a um dos dois fabricantes de aeronaves de maior porte, mesmo aqueles apoiados nos ombros públicos. Da mesma forma, a escassez de slots de manutenção deixa operadores à mercê das MRO e a especificidade de serviço e determinados equipamentos de certos fornecedores como a Honeywell, entre muitos outros, deixam os operadores sem grandes possibilidades de negociar os termos comerciais destes arranjos, o que representa uma maior exigência de habilidade negocial.
Porém, há áreas onde este tema é de maior controvérsia, refiro-me a aeroportos e Autoridades de Aviação Civil. Quanto a Autoridades, algumas já entenderam que se encontram em concorrência na criação de um serviço atrativo para operadores, outras, mantêm uma postura autoritária que recordam o Inspetor Javert. Deixamos esse tema para outro dia.
Por fim, os aeroportos. Sempre defendemos que os aeroportos são monopólios naturais porquanto a localização geográfica é uma vantagem que não pode ser repetida noutros locais. Por outro lado, entidades como a ACI sempre fez um grande esforço para defender que os aeroportos vivem em ambiente concorrencial. Mantenho sérias reservas e não subscrevo inteiramente as posições da ACI, mas há que reconhecer que o tema é mais complexo do que uma resposta dicotómica sobre a existência, ou não, de concorrência entre aeroportos. Dependerá da sua localização, mas também do seu modelo de negócio. Faça-se uma pequena reflexão sobre o tema e alguns dos critérios a ponderar.
Localização geográfica
Não se pode analisar o posicionamento no mercado de um aeroporto sem considerar a sua localização geográfica. O aeroporto de transporte aéreo comercial mais próximo de Madrid é Valência, custa-me sacrificar a noção de monopólio natural em tal situação, pelo menos para transporte ponto a ponto. Por outro lado, 63% dos residentes na União Europeia vivem a duas horas de, pelo menos, dois aeroportos. Um residente em Viana do Castelo tem o aeroporto do Porto e o Aeroporto de Vigo à mesma distância. A disponibilidade para a utilização de um, ou outro, destes aeroportos, dependerá mais dos serviços oferecidos no aeroporto do que da localização do aeroporto.
Tipo de tráfego
Quando referimos os serviços oferecidos no aeroporto, referimo-nos aos operadores e rotas operadas a partir desse aeroporto. Para o passageiro, é mais relevante o voo do que o aeroporto em si. Para o aeroporto, o verdadeiro cliente é o operador aéreo. É este que lhe paga taxas pelo uso da infraestrutura e, cumulativamente, lhe traz passageiros, estes representam mais taxas e engordam as receitas dos concessionários do aeroporto em serviços acessórios. Sendo um aeroporto um negócio que assenta em custos fixos operacionais, variações negativas no volume de tráfego do aeroporto têm impacto nos resultados financeiros.
Desta forma, o caminho de sucesso para um aeroporto passa por um objetivo: aumentar o número de rotações a ocorrer no aeroporto com aumento de número de passageiros. Para o efeito, necessitam de conquistar novos operadores para a infraestrutura. Para modelização do presente artigo vamos dividir os operadores em dois tipos de tráfego. Operadores que trabalham primordialmente em sexta liberdade, e os que operam ponto a ponto. Obviamente qualquer modelo sacrifica a verdadeira complexidade da realidade. Não vamos considerar modelos de negócio como low-cost ou não, nem considerar voos regulares ou não regulares (embora estes últimos estejam incluídos enquanto operadores ponto a ponto em oposição a operadores em sexta liberdade), excluídos também negócios laterais, como trabalho aéreo, carga e aviação executiva. No caso da aviação executiva também seria sempre de considerar a existência de aeroportos que se mostram disponíveis para trabalhar exclusivamente em aviação executiva, como Tires em relação a Lisboa. Seria interessante saber a posição da tutela quanto a este tema.
Operadores em sexta liberdade
Transportadores aéreos que usam um aeroporto como placa giratória (ou hub para os lusófobos gramaticais) na realização de voos em sexta liberdade, criando uma base no aeroporto. Para a captação deste tipo de operadores, a localização geográfica do aeroporto é relativamente irrelevante para o passageiro. Veja-se o seguinte exemplo. Enquanto passageiro, fazer escala em Lisboa ou Madrid quando se voa do Rio de Janeiro para Munique, é irrelevante e muito provavelmente será a concorrência entre os transportadores aéreos, e não entre os aeroportos que determinará a escolha do passageiro. Mais uma vez, a escolha do transportador aéreo pelo passageiro será determinante, o local de escala, em comparação, irrelevante.
Por outro lado, para o turismo da região, o passageiro em trânsito é irrelevante. Este passageiro não contratará um hotel na cidade de escala e não será relevante para a promoção do turismo quando a transferência ocorra em Lisboa. Muitos dos leitores já terão feito escala no Dubai e, provavelmente, nunca saíram do aeroporto ou gastaram, sequer, dinheiro nos Emiratos. Isso tem repercussões na relação entre operadores e os agentes económicos que rodeiam o aeroporto. Compromissos, nem que seja de goodwill com a autarquia em criar um benefício de turismo para a edilidade, obriga um aeroporto a incluir operadores ponto a ponto no seu portfólio, pois passageiros em escala de pouco ou nada servem.
Se a localização geográfica destas placas giratórias é irrelevante para o passageiro, já não o será para o transportador aéreo, e aqui são os transportadores aéreos que podem influenciar o sucesso dos aeroportos.
Em abstrato, podem indicar-se três razões:
Em primeiro lugar, o crescimento dos aeroportos do médio oriente e das transportadoras do golfo apenas foi possível considerado o desenvolvimento tecnológico do equipamento utilizado. O problema é que esse desenvolvimento não parou. Cada vez mais assistimos ao incremento de rotas diretas sem utilização de placas giratórias graças a dois fatores:
i ) O aumento da autonomia das aeronaves reduz o número de voos em longo curso com paragens.
Por exemplo hoje a Qantas voa direta entre Londres e Perth não utilizando qualquer placa giratória. Ainda assim, mantém-se como regra geral a utilização de placas giratórias em voos de muito longa distância. A tendência de aumento do número de passageiros que transitam nos aeroportos da Turquia e restante médio oriente em relação aos aeroportos comunitários de maior destaque tem-se mantido nos anos mais recentes. Será sinal de concorrência aeroportuária ou consequência do aumento da importância do transporte aéreo no oriente e a deslocalização do centro do transporte aéreo do Atlântico Norte para o médio oriente? Depende do nosso entendimento do que é concorrência entre aeroportos e se ela realmente existe.
ii) O aumento da oferta de rotas diretas entre aeroportos secundários, normalmente por operadores low cost, o que consegue desviar tráfego de certas placas giratórias.
O aumento de ofertas diretas a partir de aeroportos de tamanho intermédio permite a aeroportos menores desviar tráfego de aeroportos maiores que apenas ofereçam o mesmo destino, mas com paragens intermédias. De novo, aqui também poderá não ser classificado como uma questão de concorrência entre aeroportos. São os transportadores aéreos que procuram fornecer um serviço sem escalas e com menor custo, que traz o interesse nas ligações ultra longas. Será um desafio para os aeroportos, mas não um fator concorrencial.
iii ) A utilização de múltiplas placas giratórias
A tendência de consolidação do mercado de transporte aéreo (que continuará nos próximos anos) tem possibilitado aos transportadores aéreos ter escala suficiente para operar com mais do que uma base. Isto permite aos transportadores aéreos uma maior força negocial dos operadores com os aeroportos, já que tornou possível a transferência entre operadores da sua base para outros aeroportos. Neste caso, cremos que sim, que se pode falar em concorrência entre aeroportos. Não é difícil de prever que o maior interesse dos transportadores aéreos em tais situações é conseguir contratar os custos mais baixos para a sua operação, o que coloca pressão nos aeroportos para baixar as taxas que cobram aos seus utilizadores sob risco de perderem negócio. Contudo, também aqui não pode ser ignorado que a mudança de uma base para um operador, mesmo um que tenha várias bases, também tem um custo para o transportador aéreo. Como sempre, as economias de escala importam para ambos os lados; um aeroporto pode ver-se refém de um transportador aéreo se lhe permitir uma presença dominante, mas um transportador aéreo de menor dimensão também não poderá mudar de base sem custos significativos.
Operadores ponto a ponto
Há vinte anos, discutia-se a importância de existir uma companhia aérea forte baseada num aeroporto para garantir a sua sobrevivência. O melhor exemplo era Bruxelas, transformada em deserto após a saída da Sabena. Com a preferência por operadores como a Ryanair e a Easyjet por aeroportos secundários e a centralização dos operadores regulares em três operadores (representados nas três alianças, uma fusão de pobres), sobejavam dúvidas sobre o que ia acontecer aos restantes aeroportos. Grande parte da solução para estes aeroportos foi a ocupação do espaço deixado em vazio por transportadores ponto a ponto (sendo que não devem existir dúvidas que o mesmo ocorreria, ou ocorrerá em Lisboa). A conetividade sobreviveu em detrimento do transportador aéreo, a rota sobrevive em detrimento do terminal. Para remate do exemplo, a partir de Bruxelas, hoje, a Ryanair opera vinte rotas, adicionalmente à sua clássica posição em Charleroi. Em Frankfurt, 39, mantendo também a posição em Frankfurt-am-Hahn.
Adicionalmente, os maiores operadores também aumentaram a sua presença em aeroportos mais talhados para voos ponto a ponto e, como escrevemos há uns meses, também vão experimentando com voos low cost em longo curso, o que demonstra que os transportadores aéreos encontram sempre utilidade, ainda que marginal, para os aeroportos existentes. Aeroportos servem potenciais clientes dos transportadores aéreos.
A questão que se coloca é se isto cria um quadro de concorrência entre aeroportos mais pequenos ou mais periféricos e aeroportos tradicionalmente de maior porte? Continuamos a manter que não.
A possibilidade de uma subsidiária da British Airways operar em longo curso a partir de Barcelona (falo da Level) não faz de Barcelona um concorrente de Heathrow. Isto porque, ao contrário do transporte em sexta liberdade, o elemento geográfico é importante e marca a diferenciação de produto que o transportador oferece. A expansão do portfólio dos produtos oferecidos pelos transportadores aéreos não é sinal de concorrência entre diferentes tipos de aeroportos. Será, no limite, representativa da concorrência entre transportadores aéreos. O sucesso de uma rota para o transportador aéreo funciona em benefício de ambos, e o insucesso para prejuízo de ambos, fazendo do transportador aéreo e do aeroporto, quanto mais, parceiros de negócio. Nunca será indiferente para o transportador aéreo mudar de destino para um aeroporto que ofereça taxas inferiores, excepto quando os aeroportos sirvam a mesma área. Voltamos ao exemplo de Madrid. Tendo outro aeroporto internacional apenas em Valência, não basta a Valência oferecer taxas mais baixas a um transportador aéreo para que este mude a sua base de Madrid para Valência; terão de cooperar no desenvolvimento de uma nova rota, que por sua vez competirá com a rota anterior. No final, a concorrência é entre operadores, sendo o aeroporto responsável por tornar a sua alternativa atrativa, mas esse nunca será o elemento determinante.
Em conclusão, mantemos que os aeroportos são monopólios naturais, e dizemo-lo com base no seguinte:
- os aeroportos sentem os efeitos da concorrência entre transportadores aéreos, mas como resultado da consolidação dos transportadores aéreos nos grandes cinco (os três grupos, a Ryanair e a Easyjet) que tem dado aos últimos maior poder negocial perante os aeroportos e afetado negativamente os aeroportos. Barcelona não negoceia com a Level, negoceia com o grupo IAG. Logo, são os transportadores aéreos que melhoraram a sua posição negocial, não se trata de uma questão de concorrência entre aeroportos.
- A capacidade dos transportadores aéreos em encontrarem alternativas às suas bases continua limitada, embora menos em resultado da sua consolidação, e isso tem permitido, apenas na medida em que existam aeroportos com produtos comparáveis, a substituição ou a ameaça de substituição. Isto será especialmente verdade para operadores em sexta liberdade, onde a localização é menos relevante, mas também é válido para transportadores aéreos com número plural de bases. Mais uma vez, são os transportadores aéreos que, ao reduzir os custos de deslocalização da operação, reduziram a sua independência; não é uma questão de concorrência entre aeroportos.
- A necessidade dos aeroportos em procurar transportadores aéreos que sirvam o seu aeroporto em detrimento de outros aeroportos para aumento da sua receita não é qualificável como concorrência entre aeroportos, porquanto as taxas aeroportuárias não são o único fator na escolha de rotas pelos transportadores aéreos. O que os aeroportos necessitam fazer é mostrar-se como parceiros comerciais dos transportadores aéreos na criação de rotas aéreas rentáveis que traga para o seu aeroporto transportadores aéreos e novas rotas. É desenvolvimento de negócio, mas não concorrência entre aeroportos.
- No final, nada substitui a localização de um aeroporto, tanto em relação a aeroportos alternativos como na caracterização da zona que serve, tanto em população como em poder de compra desta. Pois é este o reverso da moeda da sua posição monopolista. São-no em relação à localização onde se encontram, não podendo, ao contrário dos transportadores aéreos, mudar geograficamente o local da sua operação. Isto faz com que uns tenham de correr mais do que outros, sem nunca poder mudar de lugar.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Pipe