Nos manuais, os SERVIÇOS DE LINHA são definidos como serviços de transporte marítimo que operam numa rota regular de comércio, com itinerários predeterminados e anunciados publicamente, envolvendo diferentes portos de escala.
Martin Stopford, em “Maritime Economics”, utiliza a definição mais detalhada: “Um serviço de linha é constituído por uma frota de navios, com um mesmo proprietário ou gestor, que proporciona um serviço fixo, em intervalos regulares, entre portos pré-definidos, e que oferece transporte para qualquer tipo de mercadorias, na zona de influência comercial servida por esses portos, capaz de navegar nas datas prefixadas. Um itinerário pré-determinado, incluído no serviço regular, a obrigação de aceitar carga de todos os que pretendam aceder ao serviço, mantendo a viagem quer o navio esteja cheio ou não, numa data pré-definida num calendário anteriormente anunciado”.
Esta definição ficou quase totalmente ultrapassada nos últimos anos pelas estratégias (alianças) e táticas (operacionais) utilizadas pelos operadores de linhas internacionais. Assim, os serviços sofrem frequentes e rápidas alterações de itinerários, viagens são canceladas, escalas em portos são canceladas, os navios utilizados mudam com frequência, alguns carregadores viram recusados contratos de serviço (transitários em particular), etc..
Essas alterações profundas surgiram num contexto de crises sucessivas entre 2019 e 2022 (a guerra comercial China/EUA, a pandemia Covid-19 e a guerra na Ucrânia) mas, na realidade, resultaram de opções estratégicas dos operadores que tornaram os serviços de linhas regulares em:
- ligações marítimas entre regiões económicas à medida da procura de serviços de transporte em contentores, num dado momento, e em função da possibilidade de obter na sua exploração excedentes financeiros que permitam fazer investimentos na construção de redes multimodais globais, adquirir navios que cumpram com os requisitos da IMO para os próximos 25 anos e/ou adaptar os navios existentes de forma a prolongar a sua “vida útil ambiental”.
Em termos simples, se num dado momento não há tráfego entre duas regiões, com um volume aceitável, não é oferecido serviço. Esse “volume aceitável” é definido no quadro das alianças entre operadores, supostamente sem que exista concertação entre empresas, embora em algumas situações as autoridades da concorrência tenham considerado o contrário. O potencial futuro de tráfego (de comércio marítimo) deixou de justificar que o serviço se mantenha se o volume de tráfego for baixo.
O fim da Linha
Com a STANDARDIZAÇÃO e posterior DIGITALIZAÇÃO da gestão dos serviços e das operações, dos sistemas dos navios e dos terminais de contentores, a estratégica dos operadores atrás referida passou a ser possível, e nada indica que se volte ao “normal” mesmo que se recupere uma estabilidade no crescimento do comércio marítimo mundial. Sentados em frente a um painel de monitores, os gestores dos serviços tomam decisões, ou aceitam as alterações que os sistemas suportados na Inteligência Artificial (AI) lhes sugerem, mexem as peças de forma muito ágil (navios, portos, terminais, contentores, fretes e adicionais, etc.).
Não estamos perante uma “disrupção”, estamos perante um “novo normal” decorrente de estratégias dos operadores globais.
Esperemos que os académicos identifiquem e caracterizem um novo conceito porque chegámos ao fim da “Linha” e as análises empíricas são claramente insuficientes.
Comércio Regional
Para os países do continente Africano este “novo normal” está a tornar-se numa TRAGÉDIA que os governos têm dificuldade em entender pois vivem na ilusão de uma aparente “modernidade”, ficam satisfeitos quando os operadores investem em terminais de contentores junto aos grandes portos (normalmente capitais nacionais) e esquecem que a infraestrutura não é tudo.
A UNCTAD publica dois índices[i] de CONECTIVIDADE que permitem avaliar a dimensão da tragédia: o Liner Shipping Connectivity Index (LSCI), que permite comparações entre países ao longo do tempo, e o Liner Shipping Bilateral Connectivity Index (LSBCI), que permite avaliar a qualidade das ligações entre países com destaque para aquelas que são feitas com base em operações de transhipment (ligações indiretas).
O LSCI é construído com base em cinco componentes que são recolhidas anualmente:
- O número de serviços de linha que oferecem serviços no país.
- A capacidade do maior navio utilizado nesses serviços (em TEU).
- O número de serviços que ligam um país aos outros países.
- O número total de navios operados num país.
- A capacidade total desses navios (em TEU).
O LSBCI utiliza cinco indicadores:
- O número mínimo de operações de transhipment necessárias para ligar dois países (entre 0 e 3).
- O número de ligações diretas entre dois países (este indicador calcula todas as potenciais ligações entre dois países com apenas um transhipment; considera as ligações de cada um dos dois países com o resto do mundo, mesmo que os dois não sejam ligados por um serviço direto).
- A média geométrica do número de ligações diretas de cada um dos dois países.
- O número de empresas de serviços de linha que ligam ambos os países utilizando rotas diretas e indiretas
- A capacidade do maior navio utilizado no segmento mais “fino” do itinerário entre os dois países.
Como exemplo, no gráfico acima vemos como tem evoluído a Conetividade Marítima em Serviços de Linha dos países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Para os países do continente Africano este “novo normal” está a tornar-se numa TRAGÉDIA que os governos têm dificuldade em entender pois vivem na ilusão de uma aparente “modernidade”…
Verificamos que o valor do índice recuou de forma significativa em Angola, Moçambique e Cabo Verde e se mantém muito baixo nos restantes países (Portugal e Brasil são realidades distintas).
Angola
Ao contrário de países vizinhos, Angola não possui um terminal de contentores com dimensão e características que permitam aos operadores organizar serviços internacionais diretos. Os portos de Ponta Negra (Congo), Walvis Bay (Namíbia) e Ngqura (África do Sul) estão a servir de centros de distribuição das empresas que oferecem serviços para Angola. Assim, a conetividade do Porto de Luanda estabilizou ou baixou e o valor do índice para os portos do Lobito, Namibe, Cabinda e Soyo mostra uma situação de “isolamento internacional” que penaliza as províncias que são o seu “hinterland”.
Entre 2018 e 2022, a situação evoluiu negativamente. Temos situações em que um contentor oriundo da Europa para o Lobito ou Namibe sofre transhipment em dois portos e um deles é na África do Sul (viaja para o sul para depois vir por serviço feeder para o norte).
Em termos de comércio interno a situação é dramática: transportar por via marítima um contentor com carga nacional entre Luanda e Cabinda ou entre o Lobito e o Soyo é quase impossível ou tem um preço e um tempo em trânsito que inviabilizam o comércio. Em termos de comércio regional, exportar um contentor de Luanda para a República Democrática do Congo (Matadi) é uma operação com idêntico nível de dificuldade. São serviços que, no quadro acima descrito, não interessam aos operadores internacionais e para os quais não existe uma oferta nacional ou regional.
Moçambique
Também em Moçambique não existe um terminal de contentores com dimensão e características que permitam aos operadores organizar serviços internacionais diretos. Os portos de Port Louis (Maurícias), Port Reunion (França), Ngqura e Durban (África do Sul) são os centros de distribuição. Nos últimos anos os tempos em trânsito da Europa, da Ásia e das Américas aumentaram significativamente.
No entanto, perante a lógica dos corredores para os países sem acesso ao mar (Zimbabwe, Malawi, Zâmbia e Botsuana) a conectividade internacional, embora fraca, é semelhante entre os portos de Maputo, Beira e Nacala.
Mas o transporte marítimo nacional (cabotagem) está sem oferta e o comércio regional, em particular com o principal parceiro comercial, a África do Sul, é suportado maioritariamente nos modos rodoviário e ferroviário, sendo que existe uma única estrada Norte-Sul com fortes limitações para o comércio regular.
O porto de Quelimane, que tem como hinterland natural a província da Zambézia (com perto de 6 milhões de habitantes ou 20% da população nacional e um enorme potencial agrícola) está sem serviços de linha de contentores de qualquer tipo.
Regiões Insulares
Cabo Verde tem ligações diretas a Portugal, Espanha (Las Palmas e Algeciras), Senegal (Dakar) e Guiné-Bissau, mas perdeu conectividade nos últimos dois anos. Três operadores regionais servem Cabo Verde: a Transinsular, a GS Lines e a Boluda (Espanha). A Maersk oferece serviço com suporte no feeder do operador regional português GS Lines. Uma situação de privilégio se pensarmos na conectividade das Regiões Autónomas Portuguesas (que é zero em termos de ligações diretas internacionais).
Timor-Leste verá em breve a sua conectividade melhorada com a entrada em operações do porto de Tibar, concessionado ao grupo Boloré (França) por trinta anos.
Região Sul Africana
Em 2013, operadores como a Maersk, a MSC ou a CMA CGM recorriam a operadores nacionais ou regionais para serviços feeder ou operavam os seus próprios serviços costeiros. Os operadores regionais eram a OACL (África do Sul), a UAFL (Maurícias), Ignazio Messina (Itália/Quénia), a DAL (Holanda) e a Navique (Moçambique).
Entre 2019 e 2022, a OACL foi “engolida” pela Maersk, a Ignazio Messina pela MSC, a DAL pela Hapag-Lloyd, a Navique cessou atividade e a Boloré Africa – transitário com forte peso na região – foi adquirida pela MSC. Com exceção pouco significativa na África do Sul não existem operadores nacionais ou regionais na região sul-africana, isto é, não existem hoje serviços de linha regular de contentores que possam suportar o regular comércio regional.
Zona de Livre Comércio em África
O transporte marítimo em linhas regulares de contentores é fundamental para a concretização do African Continental Free Trade Area (AfCFTA), isto é, para a criação de uma Zona de Livre Comércio em África. Acordo entre países que entrou em vigor em 2019, e do qual se esperava aumentar o comércio intra-africano em 52%, possibilitando a industrialização mais acelerada do continente.
Os operadores globais não têm na sua missão o desenvolvimento do comércio regional, os seus interesses estratégicos estão associados ao comércio global e as suas operações centram-se em captar tráfego ligado ao comércio origem/destino na Ásia e na Europa.
Em reunião entre os países da costa oriental, realizada no passado dia 6 de outubro, o representante do Quénia referia: “A logística continua a ser um dos obstáculos, porque o transporte de mercadorias dentro do continente está a tornar-se um desafio. Acabei de saber que um contentor na exportação de chá de Nairobi (a 500 km do porto de Mombaça na costa leste) para o Gana levará seis semanas para chegar a Acra (porto no Golfo da Guiné na costa oeste). Seis semanas é muito tempo e, portanto, precisamos repensar as questões de infraestrutura e logística”.
Conclusão
O “novo normal” que atrás se procurou identificar para o setor de Container Liner Shipping não é favorável ao comércio regional em África. Embora os operadores internacionais estejam a apostar na construção em diversos países de novos terminais de contentores ou na ampliação dos existentes, tal visa, em primeiro lugar, captar tráfego de forma eficiente (permitir utilizar navios de maior porte e equipamentos de movimentação que reduzam o tempo em porto) para as grandes rotas Norte-Sul e Este-Oeste.
A oferta de serviços marítimos regionais em África tornou-se um vazio que tem de ser preenchido se o AfCFTA for de facto para por em prática.
[i] Os dois indicadores são muito utilizados em estudos sobre o comércio marítimo internacional e entre países mas devem ser interpretados com algumas cautelas, sobre este tema sugerimos consulta do link https://unctad.org/news/unctad-maritime-connectivity-indicators-review-critique-and-proposal.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos