A contratualização do transporte público de passageiros está longe de ser um processo encerrado e ainda representa muitos desafios.
“Os novos desafios da Contratualização” foi o tema de um dos painéis do Seminário de Transporte Rodoviário do TRANSPORTES & NEGÓCIOS, no caso organizado em parceria com a ABTROP. Foram oradores, Álvaro Costa, professor da FEUP e consultor da área dos transportes, e José Luís Esquível, jurista especializado no sector dos transportes.
A publicação do Regulamento (CE) n.º 1370/2007 do Parlamento Europeu, que depois foi transposto para a legislação nacional através da Lei 52/2015 que deu origem à criação do novo Regime Jurídico do Serviço Público de Transporte de Passageiros veio trazer uma nova realidade ao sector dos transportes rodoviários, passando para os municípios, comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas as competências relativas à organização dos sistemas de transportes, instituindo a criação de autoridades de transportes e exigindo o lançamento de concursos públicos para a contratualização dos serviços de transportes, suportados em obrigações de serviço público
No entanto, o processo de lançamento dos concursos – por parte das autoridades de transportes – que deveria ter ficado concluído em Dezembro de 2019, sofreu vários revezes, potenciados, posteriormente, pelo aparecimento da pandemia COVID-19.
Álvaro Costa apresentou um mapa onde mostrou o “estado da arte” da contratualização em Portugal, sendo que são muito poucas as regiões/municípios onde os processos de contratualização foram concluídos e as redes de transportes já estão a funcionar de acordo com as novas regras. Por outro lado, muitos concursos já foram adjudicados ou estão em via de ser adjudicados. No entanto, mais preocupante é o facto de existir uma grande parte de regiões/cidades onde não existe nenhum concurso a decorrer (ou que foram anulados).
De acordo com Álvaro Costa, “este é um mapa que muda quase todos os dias, mas importa referir que as autoridades estão em diferentes momentos do processo de contratualização. Há muitas autoridades, com realidades diferentes, que tutelam diversas redes, tornando o processo muito complexo, não só ao nível da partilha de receitas como das estruturas de custos e do financiamento. E as autarquias e as CIM não estavam preparadas para assumir esta responsabilidade, nem tinham capacidade para lançar os concursos. Por outro lado, acredito que as autoridades têm de ter mais liberdade e menos regulação. O Estado delegou competências nas CIM e nos municípios, mas depois manteve as leis. O caso mais claro é o do transporte a pedido, que é financiado pelo Estado, mas que tem por vezes regras bastante excessivas e que não estão de acordo com as necessidades das pessoas”.
Álvaro Costa adiantou que houve vários concursos que ficaram “vazios” porque “o preço-base foi mal feito e por isso não há interessados. Ou foram os consultores que o fizeram mal, porque não dominavam a estrutura de custos dos operadores ,ou então foram os próprios municípios a limitar o preço-base porque não querem pagar mais pelo serviço”.
Segundo o consultor da Trenmo, “se as redes passaram para os municípios têm de ser eles a fazer a sua gestão. Há uma capacidade de decisão dos políticos para dizerem aquilo que querem em termos de mobilidade. E volto a dizer que há regulação a mais, porque em muitos casos o desenho da rede é uma opção política e que tem um custo. Quem está capacitado para tomar essa decisão deve-o fazer. Acho que os contratos não podem ser muito longos ou então devem ter capacidade para mudar, portanto, volto a dizer que é uma opção política e não deve ser o Estado a dizer o que as Câmaras devem fazer, mas sim as Câmaras a decidirem o que querem”.
José Luís Esquível disse que “olhando para este mapa podemos ver que ainda há muita coisa por fazer e resolver. Esse é um dos grandes objectivos da contratualização. Recordem-se que já fizemos seminários na véspera do 3 de Dezembro de 2019, agora estamos a fazer perto do 3 de Dezembro de 2021 e acredito que iremos fazer outro a 3 de Dezembro de 2023. Isto por uma razão muito simples: a lei não consegue sempre enquadrar a realidade. Não é por enquadrar um determinado prazo que as coisas vão acontecer, principalmente se não atenderem à realidade do sector. E o que vemos é que as características deste sector são mais fortes que a própria lei. Temos de pensar como é que conseguimos ter uma dinâmica legislativa que nos permita acomodar a força da própria realidade”.
O jurista disse ainda que outro desafio é “a capacidade de ajustamento dos modelos contratuais. Estamos a ver que, fruto das vicissitudes deste sector – nomeadamente os custos da energia, mão-de-obra, matérias-primas – os pressupostos financeiros que são desenhados na base do modelo de contratualização sofrem alterações com o tempo que precisam de ser ajustados. Também durante a execução dos contratos assistimos a situações que vão, necessariamente, ser alvo de ajustamentos e que vão criar dificuldades”.
José Luís Esquível disse ainda que existem dificuldades para resolver os problemas jurídicos dos contratos, uma vez que a sua resolução está dependente dos Tribunais Administrativos e estes demoram cerca de três anos em primeira instância, dois em segunda instância e dois em terceira a tomar uma decisão definitiva: “portanto, demora mais tempo a resolver o problema em Tribunal do que o prazo de validade do contrato. Portanto, continuamos a remeter estes contratos para tribunais que nada resolvem. Se alguém tiver um problema grave, ou tem a arte de alterar as regras do contrato com a sua autoridade de transporte, ou vai aguentando e perde dinheiro, ou então vai vivendo até que o Tribunal decida alguma coisa”.
Também a garantia da sustentabilidade da contratualização foi abordada por José Luís Esquível: “Migrámos de um sistema em que a maior parte das autoridades não tinha quase despesa nenhuma, para um modelo em que são as autoridades que alimentam financeiramente todo o sistema. E estas, por um lado, só têm dinheiro se o Estado lhes der, mas há casos (CIM ou AM) em que são os próprios municípios que não querem dar dinheiro à autoridade. E este é um problema com o qual nos vamos debater no futuro e que não é de resolução simples, porque pode colocar em causa a sustentabilidade e o equilíbrio financeiro dos contratos e dos operadores”.
O jurista alertou ainda que existem outros desafios na contratualização, como o carácter dinâmico do serviço público, a nova interacção dos stakeholders e os desafios externos, como o ambiente, a tecnologia, energia, saúde, entre outros.