A criação de uma companhia aérea portuguesa para voos fretados, os chamados “charter”, começou a ser seriamente pensada há 40 anos, em 1983, quando o então Ministro do Equipamento Social criou uma Comissão com o objetivo de estudar a viabilidade de uma empresa charter subsidiária da TAP.
No regime jurídico vigente nos anos 80, o transporte aéreo regular era extremamente regulado e, na prática, estava legalmente limitado às companhias ditas de “bandeira”.
As companhias “charter” – isto é, aquelas que vendiam o lugar de avião obrigatoriamente associado a um pacote de férias – escapavam a esta legislação rígida e permitiam deslocar os turistas em voos diretos para destinos balneares. Isto significava também que estes voos “charter” não eram acessíveis aos residentes locais, nem a pessoas interessadas em comprar apenas o bilhete de avião. A venda destes voos era exclusiva para turistas oriundos dos mercados emissores.
Quando o grupo de trabalho da TAP começou a estudar a viabilidade de uma futura empresa do grupo para este sector, encontrou dois desafios: a grande sazonalidade da operação do mercado turístico nacional, que entenderam colmatar com a distribuição da frota entre a Madeira (no Inverno) e o Algarve (no Verão); a enorme concorrência de companhias já há muito estabelecidas, todas elas entretanto falidas ou consolidadas em grandes grupos: a LTU, Condor e Hapag Lloyd na Alemanha; a Britannia e Monarch no Reino Unido; a Martinair nos Países Baixos; a Balair e TEA na Suíça; a Scanair e Sterling na Escandinávia; a Spantax em Espanha, entre tantas outras e todas elas ligadas a operadores turísticos líderes nos seus mercados respetivos, fazendo-se beneficiar com a verticalidade do negócio. Mas o objetivo político do governo e da TAP era mesmo esse: o de não deixar o transporte aéreo dos turistas nas mãos de companhias “estrangeiras” e o de criar a primeira companhia de voos “charter” em Portugal.
Apesar de a TAP dar prejuízos, a decisão política foi a de financiar a criação da Air Atlantis S.A., companhia subsidiária da TAP para voos não regulares, a 8 de Março de 1985. O primeiro voo da companhia descolou de Faro para Birmingham a 1 de Maio desse ano. A frota consistia em dois aviões ex-TAP: um Boeing 737-200 e um Boeing 707 que, já na altura, estavam bastante ultrapassados. O balanço de seis meses de operação foi: 25 mil contos de prejuízo (125 mil euros) e 372 mil passageiros transportados.
Se inicialmente os aviões ostentavam a pintura básica da TAP com uma alteração na cauda e no nome na fuselagem, mais tarde passaram a contar com uma pintura própria com as riscas horizontais da TAP invertidas (preponderância do verde sobre o vermelho). Os nomes dos seus aviões refletiam bem o seu ADN balnear e/ou algarvio: “Ponta de Sagres”, “Praia da Rocha”, “Monte Gordo”, “Costa Verde” ou “Porto Santo”.
Na sua curta história, a Air Atlantis chegou a ser parcialmente privatizada no final de 1988, ano de lucros recorde com 381 mil contos (o equivalente a 1,7 milhões de euros), através de uma operação de aumento de capital que incluiu 25% destinados a subscrição pública, permitindo a entrada da ITI – Sociedade de Investimentos Turísticos da Ilha da Madeira (Grupo Pestana), da Trissagis Holding., da Império (seguros) e de outros pequenos acionistas. Esta nova estrutura acionista levou a novos membros no Conselho de Administração, nomeadamente Dionísio Pestana (substituído, mais tarde, por Tomaz Metello, ambos fundadores da Air Zarco-EuroAtlantic).
A estratégia da empresa passou igualmente por deter participações em operadores turísticos nacionais (como a Munditours) e internacionais (como a John Hill, da Irlanda) de modo a estar em pé de igualdade com as suas congéneres europeias em termos de preferência contratual.
O aumento exacerbado dos custos associado à renovação da frota, a perda de contratos no Reino Unido (principal mercado) e a desregulamentação no espaço aéreo europeu foram alguns dos fatores que levaram o Grupo Pestana a propor a entrada da companhia no mercado de voos regulares à partida da Madeira e de Faro, algo que foi contrariado pela TAP, acionista principal, sentindo-se ameaçada na sua própria atividade de voos regulares. A verdade é que, já nessa altura, a ilha da Madeira e o Algarve necessitavam de transporte aéreo eficiente que não estava a ser garantido pela TAP, empurrando os turistas para outros destinos, em particular para Espanha.
Por que é que a Irlanda, país mais pequeno, menos turístico e, nesse tempo, quase tão pobre como Portugal, “deu” a Ryanair à Europa e Portugal deixou as suas “caravelas” em terra?
As relações entre os sócios TAP e Grupo Pestana sofreram com esta divergência e a 19 de fevereiro de 1993, a TAP, acionista maioritário, propõe e confirma, em assembleia geral extradordinária, a extinção da companhia, passando a frota e os contratos de fretamento para a TAP. A maior parte dos trabalhadores foi alvo de despedimento coletivo, dando origem a um processo litigioso que só ficou resolvido 22 anos depois, em 2015, quando o Tribunal Europeu de Justiça (TEJ) condenou Portugal a indemnizar os 97 funcionários da Air Atlantis. O TEJ reiterou a análise anteriormente efetuada pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa de que tinha havido “uma transmissão de estabelecimento” da Air Atlantis para a TAP e não um verdadeiro fecho, pelo que não havia base jurídica para despedir coletivamente os trabalhadores.
O último voo da companhia ocorreu a 30 de abril, há 30 anos, e ligou Amesterdão a Faro, onde o voo AIA 363 aterrou às 23h05.
Nasceu tarde de mais, morreu antes do tempo
Em 7 anos viveu (quase) tudo: criação pública justificada pela vontade de transportar turistas, privatização parcial, lucros, desavença entre privado minoritário e Estado-acionista, expansão de frota demasiado acelerada, tentativa de adaptação do negócio aos tempos modernos, extinção por impulso protecionista do acionista, despedimento coletivo injustificado que deu lugar a indemnização judicial. Soa familiar?
A Air Atlantis foi a resposta que a TAP e o Governo da época quiseram dar para atender as necessidades das regiões que, em termos de percentagem do PIB, mais dependem do turismo: Madeira e Algarve. A empresa chegou tarde de mais para o negócio dos voos “charter”, primeira grande vítima da desregulamentação aérea na Europa. As companhias de baixo custo entretanto criadas tinham dificuldade em aceder às rotas principais por falta de “slots” nos aeroportos o que as obrigou a procurar alternativas e a concorrer diretamente com as companhias charter, propondo uma forma mais barata, dinâmica e independente de viajar com o incentivo à criação de pacotes à medida feitos pelas próprias pessoas. Os preços económicos dos bilhetes de avião encorajaram também um novo tipo de férias mais curtas e mais frequentes, por oposição aos tradicionais “pacotes de férias anuais das famílias”.
A esmagadora maioria das companhias charter europeias não resistiu a esta mudança: faliu, foi absorvida por outros grupos ou converteu o seu modelo de negócio. A conversão pretendida por Dionísio Pestana era visionária. Teria colocado a Air Atlantis como uma resposta precoce da TAP às low-cost estrangeiras que, atualmente, com ou sem bases operacionais, dominam os aeroportos nacionais, com exceção de Lisboa e Ponta Delgada.
O que poderia ter sido a Air Atlantis de hoje?
Com custos operacionais menores do que os da TAP, a A Air Atlantlis de hoje ter-se-ia convertido certamente no braço “low cost” da TAP, à imagem do que é a Eurowings para a Lufthansa, a Transavia na Air France-KLM ou a Vueling na Iberia. Na verdade, estas empresas associadas às companhias ditas de “bandeira” só surgiram verdadeiramente há pouco mais de 10 anos e não em 1985, como a Air Atlantis. É através dessas marcas que estes grupos asseguram hoje uma presença muito forte nas várias cidades e aeroportos dos seus respetivos países, com voos diretos para todo o continente europeu. É também através delas que o Grupo Lufthansa se estabelece com bases no estrangeiro, como em Praga ou Estocolmo ou a Vueling em Paris ou Roma, imitando assim as suas concorrentes easyJet, Ryanair e Wizzair que têm bases operacionais nos mais diversos países e aeroportos.
A Air Atlantis de hoje teria certamente os custos operacionais e o “branding” certos para operar de bases próprias em Faro, Funchal, Porto ou Beja, de onde voaria diretamente e sem passar por Lisboa para vários destinos europeus e de África, garantindo a competitividade do Grupo TAP à partida dessas cidades.
Quem sabe, se a Air Atlantis não se teria transformado numa empresa com bases no estrangeiro, à semelhança das suas congéneres. O fenómeno “low cost” foi igual para todos, mas passou totalmente ao lado de Portugal enquanto país incubador de companhias aéreas.
Por que é que a Irlanda, país mais pequeno, menos turístico e, nesse tempo, quase tão pobre como Portugal, “deu” a Ryanair à Europa e Portugal deixou as suas “caravelas” em terra?
PEDRO CASTRO
Diretor SkyExpert Consulting
Resumo muito bom do que foi a Air Atlantis. Mas apesar de o TEJ ter condenado o estado português a indemnizar os trabalhadores pelo despedimento ilegal, tal nunca ocorreu. O estado recorreu da sentença e uma juíza acabou por dar razão ao estado, após uma análise sumária das centenas de volumes de documentos que se avisaram durante décadas. E agora estão outra vez os trabalhadores a recorrer dessa sentença, para reenvidicarem o que o TEJ já tinha confirmado. Muitos desses trabalhadores desistiram e não se associaram ao recurso e outros já morreram. A palavra “justiça”, em Portugal, escreve-se com letras muito pequenas.
Acerca da parte da “justiça à portuguesa”, apenas se confirma ser este, um “estado de direito” com um jogo de cintura traiçoeiro.
As companhias aéreas denominadas de baixo custo “low cost”, mais tarde por iniciativa das mesmas atualizado para “low fare” surgiram muitos anos antes, o que era absolutamente previsível. Como igualmente previsível era a quota de mercado que iriam (continuadamente) alcançar. O modelo de negócio, bem ao jeito do consumidor – critério do baixo preço, a que se aliou outros factores como a pontualidade, aviões novos e rotas novas, a isso conduziu. De recordar que a British Airways quando “deixou” surgir a Easyjet, no dia imediatamente seguinte apercebeu-se do erro e tentou recomprá-la… tarde de mais. A Ryanair é um fenómeno á parte dentro das low fare e sem comparação. Aliás são as alegadas “concorrentes” da mesma que dizem não concorrer com ela, mas com as Air France, Lufthansa, British Airways, Iberia … . O fenómeno vai continuar a crescer e a expandir-se nos próximos anos.