O importante é que foi este mês publicado mais um relatório da DNV da série “Energy Transition Outlook”, “Maritime Forecast to 2050 – A deep dive into shipping’s decarbonization journey”[i], que considero conter informação rigorosa e independente sobre o tema, algo que é muito necessário e difícil de encontrar nos dias que correm.
Para qualquer leitor, seja ele especialista de transportes ou de energia, é necessário dispor de um glossário para ultrapassar os termos técnicos, as siglas e o jargão. Mas no anexo do relatório tem esse glossário[ii] bem como referências aos mais atuais estudos e artigos.
Da leitura do relatório concluo que o shipping não pode contar apenas com “combustíveis alternativos” para poder atingir os objetivos de redução de emissões de carbono estabelecidas pela IMO e pela UE.
No website da Galp encontramos uma “amável” definição de FUELÓLEO: “um produto que resulta da destilação do petróleo, dando origem a um combustível em estado líquido. Sendo um produto derivado do petróleo, apresenta um alto poder calorífico. No entanto, tem também todas as contrapartidas ambientais atribuídas aos combustíveis fósseis. O fuelóleo destaca-se como um combustível de performance estável, mesmo nas condições mais exigentes, sendo um combustível seguro e fiável. A sua capacidade de produção de calor ajuda a aumentar o rendimento das indústrias onde é utilizado.”
Destaca-se a qualificação de ESTÁVEL, SEGURO, FIÁVEL e com ALTO PODER CALORÍFICO.
De entre os combustíveis que se indicam como “alternativos” para a descarbonização no transporte marítimo nenhum reunirá até 2050, em simultâneo, todas aquelas características e nenhum dá sinais de poder vir a estar DISPONÍVEL em quantidade e com a COBERTURA GEOGRÁFICA que tem hoje a oferta do fuelóleo (que nos vários tipos é hoje o combustível para 93,5% dos navios em operações a nível mundial e 48,7% das novas encomendas).
De entre as “alternativas” temos:
a) Continuar a utilizar o Fuelóleo e o Gás Natural Líquido, mas CAPTURAR e ARMAZENAR o CARBONO emitido não só durante a utilização no navio, mas em todo o ciclo de vida do combustível. Estão em curso investigações para aplicar ou adaptar a tecnologia dos scrubbers a bordo dos navios para parte do processo de captura de CO2. O CO2 pode ser armazenado a bordo e transferido para terra ou no offshore. Subsistem várias incógnitas, uma delas é a eficácia do processo: é necessária energia para capturar carbono e isso implica consumir mais combustível.
b) Utilizar BIODIESEL nos motores de combustão interna existentes. Mas as matérias primas dominantes na sua produção em larga escala são as mesmas utilizadas na indústria alimentar (por exemplo, a soja). Por outro lado, o biodiesel degrada-se duas vezes mais rápido que o diesel comum, o que obriga a que o seu consumo tenha de ser rápido após o abastecimento. Também tem menor poder calorífico.
c) Utilizar METANOL, também chamado de álcool metílico. É um líquido leve, volátil, incolor e inflamável. É hoje utilizado na indústria, mas a sua produção é feita com recurso a carvão ou gás natural. A produção verde necessita de uma forte procura potencial para se tornar economicamente sustentável. Já existem motores marítimos que podem queimar metanol. Os custos de produção do BIOMETANOL (produzido a partir da biomassa ou resíduos orgânicos por meio de processos de conversão química, como gaseificação ou fermentação) e do E-METANOL (derivado do hidrogénio verde e do CO2 capturado) são elevados.
d) Utilizar BIOMETANO (biogás que foi purificado e tratado para atingir padrões de qualidade similares ao gás natural convencional), BIO-GNL (versão liquefeita do biometano), E-METANO (forma de gás natural sintético e renovável) ou e-GNL (tipo de GNL produzido através do uso de eletricidade renovável durante o processo de liquefação). Permitem utilizar a infraestrutura de GNL existente para armazenamento e abastecimento a navios. São considerados combustíveis de baixo carbono.
e) Utilizar HIDROGÉNIO AZUL ou VERDE, produzido a partir de fontes de energia renovável, como energia solar, eólica, hidroelétrica ou biomassa, através de um processo de eletrólise da água. Esse processo envolve separar as moléculas de água em hidrogénio e oxigénio utilizando eletricidade. Tem problemas de armazenamento e manipulação (segurança) porque é altamente volátil. Os navios têm espaço limitado para colocar tanques de hidrogénio, o que pode restringir a autonomia. Implica construir de raiz uma infraestrutura de abastecimento nos portos, um elevado investimento.
A avaliação rigorosa das emissões de cada “combustível alternativo” numa base “well-to-wake”, isto é, “desde o poço (extração) até à hélice do navio” ou, melhor dizendo, durante o ciclo de vida completo do combustível, está por fazer e pode trazer SURPRESAS desagradáveis…
f) Utilizar AMÓNIA (comumente conhecida como amoníaco), um composto que se obtém por um processo químico que envolve a reação de nitrogénio e hidrogénio sob condições específicas de temperatura e pressão. A amónia é formada como gás, mas pode ser liquefeita sob pressões moderadamente elevadas e temperaturas relativamente baixas. É tóxica, e por conseguinte fugas e segurança em geral são uma grande preocupação. Não estão ainda disponíveis motores a consumir amónia. A combustão de amónia pode criar óxido nitroso, um GEE mais potente que o CO2. Como alternativas, a E-AMÓNIA (derivada de hidrogénio e nitrogénio verdes extraídos da atmosfera) e a AMÓNIA AZUL (produzida através do hidrogénio azul ou por reforma de metano a vapor com captura e armazenamento de carbono e nitrogénio retirado da atmosfera). Conseguir custos de produção competitivos não é considerada tarefa fácil.
g) Utilizar ENERGIA NUCLEAR, com alta eficiência energética, grande autonomia (30 anos a navegar sem necessidade de reabastecimento), capacidade de operação contínua e sem emissões de gases de efeito estufa. Com os reatores de sal fundido (em desenvolvimento) será possível nos próximos 10 anos superar as questões de aceitação ambiental, regulação, economia e impacto social para ser adotada em escala no transporte marítimo.
Estas “alternativas” ao Fuelóleo não são dignas desse nome porque nenhum dos combustíveis é ao mesmo tempo ESTÁVEL, SEGURO, FIÁVEL, DISPONÍVEL e com ALTO PODER CALORÍFICO.
Grande parte dos analistas considera um cenário de MULTI-COMBUSTÍVEIS, mas tal pode significar investir em várias frentes sem atingir em nenhuma delas a escala necessária para a sustentabilidade económica. Este cenário não está explícito no relatório da DNV. Pelo contrário, no relatório dedica-se atenção particular à CAPTURA DE CARBONO e ao NUCLEAR, apresentando uma análise de viabilidade para um navio porta-contentores de 15.000 TEU.
Outras SOLUÇÕES com potencial para reduzir as emissões de GEE envolvem três áreas:
- LOGÍSTICA e DIGITALIZAÇÃO – redução da velocidade dos navios, utilização mais eficaz dos navios nas operações de transporte, gestão em tempo real de rotas alternativas, etc..
- HIDRODINÂMICA – otimização do desenho dos cascos, novos materiais de proteção dos cascos, injeção de ar nos cascos durante a navegação (air lubrification), sistemas de limpeza dos cascos, etc..
- MÁQUINAS – melhorias de eficiência, recuperação de calor, utilização de células de combustível, utilização de baterias mais eficientes, propulsão assistida pelo vento, etc.
Cada uma destas soluções conseguem reduções de emissões entre 5% e 20%.
Emissões de GEE em 2050
No capítulo 6. do relatório refere-se que “descarbonizar a cadeia de abastecimento de combustível levará tempo. Não esperamos que a maioria dos combustíveis fornecidos ao shipping seja totalmente neutra em carbono antes de 2050. Além disso, também haverá emissões de metano e óxido nitroso – ambos potentes GEE – durante a utilização a bordo, que é necessário ter em conta”.
A avaliação rigorosa das emissões de cada “combustível alternativo” numa base “well-to-wake”, isto é, “desde o poço (extração) até à hélice do navio” ou, melhor dizendo, durante o ciclo de vida completo do combustível, está por fazer e pode trazer SURPRESAS desagradáveis como há alguns anos aconteceu com a produção em larga escala de biocombustíveis (concorrência com a utilização de terras para produzir alimentos) ou com a utilização dominante de GNL no shipping (libertação de metano no abastecimento, nos motores, etc.).
Mudança a sério ou “faz de conta”
Se os diversos atores da economia mundial e do comércio internacional continuarem a solicitar ao shipping operações como, por exemplo, transportar minério de ferro entre o Brasil e a China em navios de 400.000 toneladas, não se pode esperar milagres. Para fazer deslocar navios desse porte é necessária energia – a utilização de combustíveis de fraco valor calorífico não é uma alternativa. Por conseguinte, para longas distâncias e navios de grande porte, aqueles atores (governos, indústria e traders de matérias primas) estão a atirar o shipping das mãos do FUELÒLEO para as mãos do NUCLEAR.
Mas é imprescindível transportar matérias primas pesadas em grandes volumes e a grandes distâncias? Não é possível produzir alguns produtos (por exemplo, baterias elétricas) nos países onde existem cobre, cobalto, lítio e outros minerais críticos, por exemplo em África ou na América da Sul, transportando apenas o produto final de forma menos agressiva para o ambiente (em contentores)?
A generalidade dos governos está a tomar decisões (investimento em tecnologia e apoios às empresas) e a definir objetivos (metas para redução de emissões GEE) sem informar as populações das vantagens e desvantagens para a sua vida quotidiana de cada alternativa. Os “combustíveis alternativos” no transporte marítimo são apenas uma gota de água nesse contexto.
Não sabemos para onde nos estão a levar, mas sabemos que estamos a ser tratados como pouco inteligentes.
[ii] https://www.ipcc.ch/sr15/chapter/glossary/
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos