O transporte aéreo comercial internacional é regulado por acordos de serviços de transporte aéreo acordados entre Estados, habitualmente de forma bilateral.
O processo de desregulamentação do transporte aéreo regular e não regular no espaço europeu conduziu à troca multilateral de direitos entre os Estados-Membros e, num momento histórico posterior, à partilha de competências entre os Estados-Membros e a Comissão Europeia na negociação de acordos com países terceiros. Criou-se, assim, um mercado único de aviação que levou a uma realidade de concorrência entre operadores, à expansão de operações ponto a ponto e a uma redução das tarifas de transporte aéreo. Desde então temos assistindo a um processo de consolidação dos operadores, à imagem do que ocorreu no mercado norte-americano.
Com o final do período de transição a 31 de Dezembro de 2020, o Reino Unido, e as suas operadoras, deixam de poder usufruir do mercado comunitário de aviação como operadores comunitários sendo, desde o dia 1 de Janeiro de 2021, o acordo de comércio entre o Reino Unido e a União Europeia o documento relevante para a determinação dos direitos de exercício da actividade de transporte aéreo no território do Reino Unido pelos operadores comunitários e pelos operadores Britânicos no território dos Estados membros da União.
O conteúdo do acordo
No que diz respeito a liberdades do ar, o acordo prevê apenas a troca de terceiras e quartas liberdades para passageiros (carga pode ser transportada em quinta liberdade), ou seja, adicionalmente às duas liberdades operacionais, o acordo prevê a liberdade de transporte de passageiros de um ponto no Reino Unido para um ponto na União Europeia. Adicionalmente, estas liberdades podem ser realizadas sem limites de capacidade ou frequência. Tarifas mantêm-se sob alçada de normas concorrenciais, mas fora os limites impostos por estas são de livre determinação pelos operadores. Esta solução é especialmente interessante para os operadores que voem ponto a ponto, habitualmente as low-cost. Por outro lado, são excluídas as quintas liberdades, que geralmente interessam menos aos operadores low-cost, e direitos de cabotagem (ou seja, o direito de voar entre dois destinos dentro do mesmo estado). Contudo, os direitos de cabotagem estavam já excluídos no acordo de transição e os operadores comunitários com interesse em operar direitos de cabotagem no Reino Unido tiveram dois anos para contornar a limitação através da obtenção de Certificados de Operador Aéreo no Reino Unido, o que nos leva ao tema da propriedade e controlo.
As cláusulas de propriedade e controlo encontram-se previstas no acordos de serviços aéreos e, ao fazer o acesso ao mercado depender da nacionalidade dos proprietários das transportadoras são, por si, o maior entrave à fusão entre operadores aéreos numa indústria que apresenta todas as características necessárias para beneficiar da criação de economias de escala.
O acordo em causa apresenta uma assimetria assinalável no que diz respeito a direitos de propriedade e controlo efectivo. As transportadoras do Reino Unido que sejam detidas maioritariamente por nacionais do Reino Unido e por nacionais comunitários à data de entrada em vigor do acordo, ou seja, no passado dia 1 de Janeiro, são considerados operadores do Reino Unido. Por outro lado, as regras de propriedade e controlo da União Europeia mantêm-se idênticas, ou seja, um operador comunitário não pode ser maioritariamente detido ou controlado por nacionais do Reino Unido. A falta de reciprocidade em causa explica-se com o facto da IAG, detentora da British Airways, ser igualmente proprietária da Iberia, Aer Lingus, Air Nostrum, Vueling e Level e ter de se manter qualificada como uma sociedade comunitária de forma a poder manter a sua estrutura actual. A solução em causa permite igualmente que a Easyet mantenha um certificado de operador aéreo no Reino Unido, “EasyJet UK” em simultâneo com o seu certificado europeu “EasyJetEurope”.
Consequências a acompanhar
Há alguma curiosidade sobre as consequências do acordo a médio e longo prazo. Uma antiga anedota contava que a capa do Daily Mail no dia a seguir à abertura do túnel da Mancha apresentava as paragonas: “Finalmente, Europa livre do isolamento”. Não deixo de recordar esse título quando vejo o “lado inglês” referir-se ao acordo de forma optimista.
o acordo de comércio entre o Reino Unido e a União Europeia garante não só que os serviços aéreos actualmente operados se mantêm, como garante que os principais operadores Britânicos e comunitários ficam salvaguardados nos termos em que operavam antes do Brexit ou após o ajuste de operações realizado durante o período de transição.
Passado o “efeito covid”, creio que se tornará inevitável constatar a quebra no transporte aéreo do Reino Unido que resultará da saída da União Europeia e algum desvio do tráfego atlântico norte de Londres para outros destinos europeus. Por outro lado, é pouco credível que as operações do Reino Unido não se tornem secundarizadas em operadores como a Wizzair ou a EasyJet, já que, o modelo low-cost prospera apenas em mercados desregulamentados como o mercado europeu. Nos casos do grupo IAG e da British Airways será interessante observar se as novas estruturas accionistas, mais descentralizadas de forma a cumprir com os requisitos de propriedade, alterarão a apetência dos investidores em apoiar o grupo e os termos em esse investimento ocorrerá. Adicionalmente, como referido acima, o mercado Europeu está condenado a um processo de consolidação que nos últimos anos tem centralizado os operadores em torno dos três grandes grupos correspondentes aos três maiores Estados da União. Não é coincidência a centralização na Lufthansa, IAG e AF/KLM e a nova posição do grupo IAG será certamente objecto de reavaliação pelos investidores.
Adicionalmente, não podemos também ignorar os efeitos resultantes da saída do Reino Unido da EASA e a necessidade de processos de importação e exportação de equipamento. O Reino Unido tem historicamente um papel forte no fabrico de componentes aeronáuticos exportados para a União e a saída do mercado aduaneiro comum poderá levantar dificuldades à exportação de equipamento e componentes por duas razões, em primeiro lugar por uma questão de divergência regulatória na certificação do equipamento, que obrigará à validação de certificados que não sejam originalmente emitidos como certificados EASA, e, em segundo lugar, pela demora nos processos administrativos de importação de equipamento.
Na indústria de manutenção aeronáutica, horas no fornecimento de equipamento podem acarretar elevados custos e a preterição de um fornecedor por outro. No que diz respeito a taxas de importação, o Reino Unido continua a ser parte da Organização Mundial de Comércio e do acordo da OMC sobre comércio de equipamento aeronáutico, pelo que não será de esperar qualquer aplicação de taxas ou encargos aduaneiros.
Por último, um tema importante em Portugal atendendo aos operadores nacionais privados, na área do wet-leasing, os operadores europeus podem fornecer serviços no mercado Britânico embora os operadores Britânicos não tenham a mesma liberdade no fornecimento de serviços a operadores comunitários.
Em conclusão, o acordo de comércio entre o Reino Unido e a União Europeia garante não só que os serviços aéreos actualmente operados se mantêm, como garante que os principais operadores Britânicos e comunitários ficam salvaguardados nos termos em que operavam antes do Brexit ou após o ajuste de operações realizado durante o período de transição.
Esta tarefa está a ser bastante auxiliada pela situação de pandemia. Não temos dúvidas que a principal variável independente que justifica a actual quebra de actividade se prende com a pandemia. Quando a situação regularizar e os níveis de transporte aéreo regressarem a valores pré-2020, será possível avaliar o peso da saída do Reino Unido no transporte aéreo comunitário e as dificuldades daí resultantes para os operadores Britânicos. Será o abandono do acquis communautaire uma aposta ganha pelos operadores Britânicos, ou afastará os operadores britânicos do processo de consolidação do transporte aéreo comunitário?
Por fim, será o acordo suficientemente dinâmico de forma a trazer toda a regulamentação aplicável aos operadores comunitários aos operadores britânicos, ou os direitos hoje dados de forma histórica permitirão um regime de excepcionalidade que não ajudará todos os operadores por igual? Apenas o tempo o dirá.
FRANCISCO ALVES DIAS
DLA Piper ABBC