Ao pensar em navios, provavelmente imaginamos vastos oceanos, horizontes sem fim e, claro, a icónica bandeira ao vento. Mas, e se a bandeira não representar realmente o país de origem do navio?
Tipicamente diz-se que existem quatro tipos de registos para embarcações: o Registo Tradicional, o Registo Aberto, o Registro Internacional, também conhecido como “Offshore Register” ou “Second Register”, e o Registo Duplo, também conhecido como “Bareboat”.
Abordamos, aqui, o tema das “bandeiras de conveniência” (FoC, do inglês ‘Flags of Convenience’): para alguns, pura perspicácia comercial; para outros, uma falha moral e regulatória que mancha a indústria naval.
De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), a maioria do transporte marítimo global opera sob estas bandeiras. A razão? Evitar uma série de padrões, regulamentos, controlos e, claro, impostos.
Nos navios registados em regime de bandeira de conveniência não há vínculo entre o armador, proprietário e o país do pavilhão arvorado – o beneficiário e o controlo do navio estão sediados em países diferentes do da bandeira que o navio arvora.
Há cerca de 75 anos, a Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes (ITF) atiçou o sinal de alerta contra esta prática. No entanto, ainda hoje, potências marítimas como a Libéria, o Panamá e as Ilhas Marshall dominam a cena, “ostentando” quase metade da frota mundial de navios mercantes. Com efeito, Panamá, Libéria e Ilhas Marshall representam conjuntamente 44,3% da capacidade global de carga em 2022. Em contraste, os navios mercantes registados na China, maior país exportador, abrangeram somente 5,2%. Seguem-se Malta e as Bahamas com 5,2% e 3,3%, respetivamente.
Então, por que razão esta prática persiste, mesmo sob o escrutínio de tantos?
Prós:
- Economia de Custos: ao registar navios sob FoCs os armadores podem usufruir de taxas de impostos reduzidas ou até inexistentes, bem como de regulamentações laborais mais flexíveis, o que se traduz em salários mais baixos;
- Flexibilidade: com menos burocracia e regulação, os armadores têm mais facilidade para operar globalmente, bem como permitem aceder a um regime regulatório mais indulgente, especialmente no que se refere a normas laborais e de segurança;
- Privacidade: As FoCs podem proporcionar um nível de anonimato para os armadores, o que pode ser desejável em transações ou operações complexas.
Contras:
- Segurança Marítima: A falta de regulamentação rigorosa sob algumas destas bandeiras pode comprometer a segurança da embarcação e da tripulação;
- Direitos dos Trabalhadores: Condições de trabalho precárias e salários mais baixos tornam-se um problema recorrente nos navios registados sob as FoC;
- Impacto Económico: Os países de origem dos proprietários dos navios perdem receitas fiscais e o investimento na indústria marítima doméstica.
A pandemia de Covid-19 trouxe à luz muitas das falhas deste sistema, revelando a fragilidade da nossa economia (e do transporte marítimo). Não nos devemos esquecer da quantidade de marítimos que ficaram retidos no mar, sem repatriamento, tendo visto negados os direitos mais fundamentais, como o acesso a cuidados médicos.
O debate sobre FoCs não é apenas uma questão de quem arvora qual bandeira. É uma reflexão mais profunda sobre as implicações laborais, de segurança, fiscais e económicas.
A mensagem da pandemia foi clara: a indústria marítima precisa de regulação. Afinal, os direitos dos marítimos não devem ser uma “casualidade” numa batalha global.
No coração deste debate situa-se a frágil balança entre economia e ética. De um lado, as FOCs oferecem vantagens económicas claras para os armadores. Do outro, as questões éticas e a necessidade de proteger os direitos dos trabalhadores marítimos.
Por outro lado, e enquanto a ITF continua o seu combate às FoC, há algo interessante a considerar: o segundo registo ou registo internacional, também conhecido como “Offshore Register”. É um conceito que se aproxima, de alguma forma, da bandeira de conveniência, e, às vezes, instala-se o debate sobre qual dos dois está realmente em prática, mas oferece mais garantias de segurança e laborais.
França tem o “Registre International Français”, a Alemanha conta com o “Internationales Seeschifffahrtsregister”, e a Espanha apresenta o “Registro Especial de Buques y Empresas Navieras”, situado nas Ilhas Canárias. E no Brasil, temos o “Registro Especial Brasileiro”.
Portugal não fica atrás, com o “MAR – Registo Internacional de Navios da Madeira”. Ligado ao Centro Internacional de Negócios da Madeira, este registo tem atraído grandes armadores europeus, particularmente alemães e gregos. Com quase 700 navios ostentando o pavilhão de Portugal, o MAR tem demonstrado o seu potencial competitivo (pese embora as críticas já feitas sobre a incapacidade deste registo de contribuir para a fixação de profissionais especializados no país).
Contudo, e como já dissemos, não está isento de controvérsias. Embora ofereça elevados padrões de segurança e laborais, este segundo registo foi incluído na lista de FoCs da ITF. Esta inclusão tem sido, todavia, combatida pelos sindicatos portugueses, que acreditam que esta inclusão nada se deve às razões normais, i.e., falta de condições e segurança laboral, mas deve-se, sim, ao crescente uso do pavilhão português por navios alemães e de alguma pressão dos si ndicatos daquele país.
O debate sobre FoCs não é apenas uma questão de quem arvora qual bandeira. É uma reflexão mais profunda sobre as implicações laborais, de segurança, fiscais e económicas. Afinal, no mundo de hoje, onde a transparência e a responsabilidade são cada vez mais valorizadas, é imperativo que a indústria marítima navegue com cautela, garantindo que os marítimos não fiquem à deriva na maré de regulamentações evasivas.
Mestre em Gestão Portuária pela ENIDH
Pós-graduada em “Maritime Law”, com especialização em “‘Oil and Chemical Pollution”, pela London Metropolitan University
Muito bom! Deveria servir para espoletar um debate sério sobre as políticas de Portugal sobre esta matéria. Já era altura.