No mercado das fusões e aquisições são múltiplos os tipos de negócio que permitem a transmissão de atividades comerciais. Geralmente, estes negócios dividem-se em share deals – i.e., transmissão de participações sociais de sociedades – ou asset deals.
O asset deal mais expressivo consiste no trespasse, i.e., na transmissão de um estabelecimento comercial, geralmente composto por todo o seu ativo e passivo. No entanto, existem outros asset deals – pensamos, por exemplo, em compras de ativos nas quais o comprador seleciona apenas alguns ativos que considera atrativos – cuja qualificação, ou não, como trespasse ou transmissão de estabelecimento pode ser duvidosa.
O tecido empresarial português demonstra, ainda, algum desconhecimento sobre o regime aplicável à transmissão de estabelecimentos comerciais e quanto ao significado jurídico de estabelecimento comercial – que é o objeto do negócio do trespasse. A própria doutrina jurídica ainda teoriza de diferentes formas a definição de estabelecimento comercial.
O estabelecimento comercial, ao contrário da sociedade que é uma pessoa coletiva, é um bem jurídico complexo unitário, composto por vários bens, que podem incluir exemplificadamente:
- Coisas corpóreas: propriedade de bens imóveis, máquinas ou mobiliário;
- Coisas incorpóreas: propriedade intelectual, v.g. propriedade ou licenciamento de software, marcas, desenhos ou modelos, patentes, know-how, e segredos de negócio, mas, também, a posição contratual, v.g. em contratos de trabalho ou contratos de mútuo, direitos sobre imóveis e, ainda, obrigações – sejam de pagamento ou de prestação.
Quanto ao negócio propriamente dito – de uma forma geral –, o contrato que tenha por objeto a aquisição de estabelecimento pode não inventariar os bens, elementos, direitos e obrigações a serem transmitidos, o que implicará a venda ou a transmissão da posição contratual, a favor do comprador, de todos os bens, direitos e obrigações que compõem o estabelecimento comercial e que permitem o prosseguimento da sua atividade comercial. Consequentemente, e de acordo com a vontade das partes, este negócio será qualificado como transmissão de estabelecimento, ou seja, trespasse.
Por outro lado, o contrato que tenha por objeto a aquisição de apenas alguns dos bens, elementos, direitos ou obrigações não essenciais do estabelecimento comercial – e que, consequentemente, não são fundamentais ao prosseguimento da atividade comercial primária do estabelecimento –, já não será qualificado como transmissão de estabelecimento, mas como uma simples aquisição de ativos e ou passivos.
Acontece que, muitas vezes, o comprador está não só a fazer “cherry picking” dos ativos que pretende comprar, mas também das normas jurídicas que quer ver aplicadas.
De facto, a transmissão de estabelecimento, ou a qualificação de um negócio como transmissão de estabelecimento, produz efeitos jurídicos específicos, tais como fiscais, laborais – que implicam, por exemplo, a transmissão da posição de empregador nos contratos com trabalhadores; a assunção de dívidas à Segurança Social; o adquirente passar a estar afetado por eventuais contraordenações laborais já aplicadas –, e ainda, efeitos em matéria de arrendamento, com destaque em particular para o direito de preferência do senhorio.
Desta forma, perante um asset deal, é necessário analisar, em concreto, se o negócio se deverá qualificar como transmissão de estabelecimento, devendo as partes estar cientes dos efeitos que podem advir dessa qualificação.
Acresce que os critérios para a qualificação de um determinado negócio como trespasse ou transmissão de estabelecimento nem sempre são coincidentes em todos os ramos do direito.
Para além disto, também os tribunais portugueses e europeus, se têm debruçado há muitos anos sobre esta matéria.
Destaca-se, neste ponto, a jurisprudência aplicável em matéria laboral. A própria lei, em particular o Código de Trabalho, no n.º 1 do art. 285.º, veio alargar a aplicabilidade deste regime – ao contrário do previsto na Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001[i] (a “Diretiva”) que apresenta uma aplicabilidade mais restrita –, enquadrando os casos de transmissão “por qualquer título” da titularidade de empresa, de estabelecimento ou, ainda, de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica como transmissão de estabelecimento.
A expressão “por qualquer título” abrange, portanto, situações múltiplas como, no que toca aos asset deals, o trespasse e, por remissão do n.º 2 do mencionado art. 285.º, as situações de cessão ou reversão da exploração de empresa, estabelecimento ou unidade económica.
Por outro lado, importa atentar ainda ao teor da Diretiva, sendo que esta considera também como transmissão de estabelecimento, a transmissão de unidade económica – que no contexto da atividade do transmissário –, mantém a sua autonomia e identidade e que se entende como um “[c]onjunto de meios organizados com o objetivo de exercer uma atividade económica, principal ou acessória” (Considerando v. e art. 1.º, n.º 1, al. b) da Diretiva).
Em sentido idêntico vai a jurisprudência portuguesa quando considera que há transmissão de estabelecimento sempre que há uma “transferência de uma unidade económica que mantém a sua identidade, entendida esta como um conjunto de meios organizados, com o [objetivo] de prosseguir uma [atividade] económica, seja ela essencial ou acessória” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no proc. 3071/18.0T8CBR.C1, de 10.07.2020[ii]).
O que daqui resulta é que, com vista à proteção dos trabalhadores, o legislador europeu e português acaba por colocar o investidor perante uma certa incerteza, já que a noção de transmissão de estabelecimento é algo abstrata e não reúne consenso no que toca à sua definição nos diversos diplomas que versam sobre estas matérias, dando azo a diversas interpretações, o que pode até colocar em causa a solvibilidade do transmissário.
Para exemplificar esta problemática no setor dos transportes, vejamos alguns acórdãos proferidos pela jurisprudência nacional e europeia.
No acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), Oy Liikenne Ab vs. Pekka Liskojärvi and Pentti Juntunen, de 25 de janeiro de 2001[iii], estava em causa a Comunidade de Helsínquia ter lançado um concurso público para adjudicação da exploração de linhas de autocarros. Tendo a adjudicatária cessante perdido o concurso público, a Comunidade de Helsínquia adjudicou a referida exploração à sociedade Oy Liikenne Ab, mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços, que passou a ser a nova adjudicatária.
Apesar de possuir os seus próprios autocarros, a Oy Liikenne Ab admitiu a maioria dos trabalhadores da adjudicatária cessante em termos menos favoráveis e adquiriu, à adjudicatária cessante, alguns dos equipamentos necessários para exercício das funções destes trabalhadores.
Perante o exposto, os trabalhadores admitidos na Oy Liikenne Ab intentaram uma ação junto do tribunal competente, peticionando a continuação da aplicação das condições de trabalho que vigoravam no tempo em que a adjudicatária cessante era a sua entidade empregadora, fundamentado este pedido no regime da transmissão de estabelecimento previsto na Diretiva.
O tribunal competente da primeira instância considerou procedente o pedido dos trabalhadores, tendo a nova adjudicatária recorrido para a segunda instância, a qual decidiu a condenação da recorrente. No entanto, dada a incerteza quanto à aplicação das normas da Diretiva, o Tribunal Supremo da Finlândia reenviou a questão prejudicial para o TJUE.
Já no âmbito do processo que corria então os seus termos no TJUE, a nova adjudicatária alegou a ausência de transmissão de estabelecimento na aceção da Diretiva, porquanto, entre outros argumentos, i) não tinha relação contratual com a adjudicatária cessante; ii) uma linha ou um grupo de linhas de autocarros não constitui(em) uma unidade económica; iii) a nova adjudicatária não retomou os ativos da adjudicatária cessante necessários para a exploração das linhas; iv) os trabalhadores foram contratados pela nova adjudicatária após apresentação da candidatura dos trabalhadores e, não menos discutível; v) a aplicação da Diretiva deveria ser afastada no âmbito de adjudicações de serviços de transportes rodoviários, a qual desincentiva as empresas de concorrerem, dada a potencial assunção de obrigações desconhecidas.
O TJUE decidiu que no sentido da Diretiva, o critério essencial para estabelecer a existência de uma transmissão de estabelecimento é o de saber se o estabelecimento mantém a sua identidade.
Neste contexto, os juízes europeus clarificaram que (a) a Diretiva é aplicável às relações contratuais decorrentes de adjudicações de contratos públicos, e, entre outros argumentos, apresentou que (b) a ausência de relação contratual, i.e., de compra e venda de ativos, pode constituir um indício da ausência de transmissão, mas não permite, de forma automática, a exclusão da qualificação como transmissão de estabelecimento, por fim, (c) entendeu que a transmissão deve ter como objeto a entidade económica organizada, ou seja, um conjunto organizado de pessoas e elementos que permitem o exercício de uma atividade económica.
Assim, o TJUE entendeu que o simples facto de a nova adjudicatária ter celebrado um contrato de prestação de serviços semelhante ao contrato de prestação de serviços inicialmente celebrado pela adjudicatária cessante, não permite a qualificação de transmissão de estabelecimento, devendo a identidade do estabelecimento ser apreciada de forma mais abrangente.
Além do exposto, dado o setor dos transportes rodoviários, ao contrário, por exemplo, de setores dependentes da mão-de-obra, a transmissão de estabelecimento exige “material e instalações importantes”, pelo que, no caso concreto, a ausência de compra e venda de ativos, i.e., de autocarros, deve ser um indício da ausência de transmissão de estabelecimento, pelo que o TJUE considerou que não havia transmissão de estabelecimento.
…enquanto as diferentes legislações não proporcionarem a segurança jurídica necessária, os investidores deverão estar cientes dos riscos, essencialmente, financeiros, que a aplicabilidade do regime da transmissão de estabelecimento aos negócios sobre ativos pode importar
No acórdão do TJUE, João Filipe Ferreira da Silva e Brito e o./Estado português[iv], no âmbito da conhecida dissolução da Air Atlantis (AIA), que exercia atividade no setor dos voos charter, estava em causa o despedimento coletivo da maioria dos seus trabalhadores, tudo, decidido pela sua acionista maioritária, a TAP.
Após dissolução desta sua subsidiária, a TAP assumiu, entre outros ativos, a posição contratual da AIA em contratos que tinham por objeto os voos contratados até o final do ano de 1993, retomou a posição contratual da AIA em contratos de leasing de aviões e reintegrou trabalhadores que havia destacado na AIA para exercício das mesmas funções e outras semelhantes.
A TAP, que ainda antes da dissolução da sua subsidiária tinha capacidade para realização de voos charter – ainda que pontuais –, passou, após a mencionada dissolução, a assumir as rotas exploradas outrora pela AIA.
À primeira vista, conclui-se que a TAP, player no setor da aviação ainda antes da dissolução desta sua subsidiária, não destacou uma nova atividade resultante da celebração dos negócios acima mencionados. Ao contrário, a atividade resultante da celebração destes negócios confundiu-se com a atividade já exercida pela TAP. Em virtude da ausência do critério da manutenção da autonomia de identidade da unidade de negócio, cai por terra a possível transmissão de estabelecimento e, assim, a assunção, pela TAP, do passivo da AIA.
Não foi, porém, este o entendimento dos trabalhadores da AIA abrangidos pelo despedimento coletivo, tendo intentado uma ação junto do Tribunal do Trabalho de Lisboa, na qual impugnaram o despedimento coletivo, peticionaram a reintegração na TAP e o pagamento de créditos laborais em dívida.
Apesar de a primeira instância ter julgado a favor da reintegração dos trabalhadores na TAP e do pagamento dos créditos laborais em dívida pela TAP, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela licitude do despedimento coletivo. Esta decisão do STJ fundamentou-se, essencialmente, na ausência de transmissão do estabelecimento, constatando que se tratou de uma liquidação do património e transmissão de elementos desconexos do seu estabelecimento, não bastando a “simples prossecução” da atividade, faltando, no entendimento do STJ, a conservação da identidade da AIA.
Após uma tentativa de reenvio prejudicial para o TJUE impedida pelo STJ, os trabalhadores intentaram, junto das antigas Varas Cíveis do Tribunal de Lisboa, uma ação de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado português. Os trabalhadores alegaram, entre outros argumentos, a manifesta ilegalidade do acórdão do STJ e a errónea interpretação do conceito de “transmissão de estabelecimento” na aceção da Diretiva.
Em face do exposto, os juízes europeus decidiram que, no setor dos transportes aéreos, a transmissão de ativos corpóreos (i.e., os aviões) e ainda que realizada mediante a retoma da posição da AIA nos contratos de leasing, deve ser considerada como um elemento essencial para determinar a transferência de estabelecimento. Foi, ainda, assinalado que a TAP retomou, também, a posição da AIA no âmbito de contratos que tinham por objeto voos charter contratados para a AIA, o que demonstra a retoma das rotas exploradas pela AIA e da clientela da AIA. Além disso, ainda que de forma praticamente irrelevante dada o número de trabalhadores coletivamente despedidos, a TAP reintegrou trabalhadores que haviam sido destacados na AIA, para exercício de funções idênticas às exercidas e outras semelhantes.
Considerou o TJUE que a TAP recebeu elementos necessários à continuidade do exercício da atividade que vinha sendo exercida por esta sua subsidiária dissolvida, decidindo, pois, em sentido contrário à que havia sido a posição do STJ, pelo que admitiu que pela transferência dos referidos elementos, houve transmissão de estabelecimento, isto, apesar de não se destacar ou identificar a unidade económica da AIA, estando, todavia, mantida a sua identidade.
Noutros termos, o critério da manutenção da identidade exigido pela Diretiva não implica que a unidade económica transferida deva manter a sua autonomia na estrutura organizativa da transmissária, mas um simples nexo funcional entre ativos e ou passivos transmitidos e atividade exercida.
Assim, enquanto as diferentes legislações não proporcionarem a segurança jurídica necessária, os investidores deverão estar cientes dos riscos, essencialmente, financeiros, que a aplicabilidade do regime da transmissão de estabelecimento aos negócios sobre ativos pode importar.
[i] Diretiva disponível em: https://op.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/41905bd3-15dc-4d03-b8a1-762092683ce0
[ii] Acórdão disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/05946aa23dbd3af5802585d6004ca4a0?OpenDocument
[iii] Acórdão disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61999CJ0172.
[iv] Acórdão disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/PDF/?uri=uriserv%3AOJ.C_.2015.363.01.0014.01.POR
MARISA DE SOUSA RAZÃO
Associada da JPAB em Societário e M&A