Por muito que todos queiramos, com maior ou menor intensidade, deixar os turbulentos períodos de pandemia para o passado, o facto é que o escrutínio por autoridades e tribunais nacionais e comunitários aos variados apoios estatais atribuídos aos operadores aéreos nos anus horribilis de 2019 e 2020 continua a ser tema para longas e variadas discussões.
A auxiliar, ou talvez se possa dizer complexificar, o escrutínio das decisões nesta matéria, importa recordar que nem todos os apoios atribuídos em 2019 e 2020 às transportadoras aéreas comunitárias foram necessariamente atribuídos para ajudar a suportar os enormes prejuízos resultantes das restrições de voo aprovadas no quadro de combate à pandemia. Destarte, vários estados aproveitaram a oportunidade para capitalizar operadores aéreos que traziam, já desde trás, enormes prejuízos e dificuldades de tesouraria, que se viram, por esta forma, escondidos sob as costas largas de um pequeno vírus.
Felizmente, autoridades e tribunais, e em especial o Tribunal de Justiça da União Europeia tem-se mostrado atento ao problema e positivamente inflexível no controlo da aplicação das ajudas aos operadores, contrastando, ou porventura justificado por, uma atitude algo perdulária da Comissão Europeia na definição dos requisitos para a atribuição de apoios às companhias aéreas no período em análise, especialmente quando comparado com os requisitos de apoio no pós 11 de setembro (o que já previamente aqui comentámos em outros tempos).
Recentemente, a Comissão, emitiu uma decisão sobre o auxílio prestado pelo governo italiano, em 2019, à transportadora aérea Alitalia (disponível aqui[1]) no montante de 400 milhões de euros, declarando o apoio contrário às regras comunitárias de concorrência e determinando a devolução ao estado transalpino da totalidade do montante acrescido de juros. Este auxílio, clarifique-se, não se inclui no pacote de ajuda prestado pelo governo italiano no âmbito da pandemia, servindo, contudo, para recordar que não se podem confundir apoios no quadro da pandemia com apoios a companhias em dificuldades financeiras que precediam a pandemia em si.
…vários estados aproveitaram a oportunidade para capitalizar operadores aéreos que traziam, já desde trás, enormes prejuízos e dificuldades de tesouraria, que se viram, por esta forma, escondidos sob as costas largas de um pequeno vírus.
Na verdade, a Alitalia beneficiou de variados apoios ao longo dos anos, o que não a impediu de vir a ser declarada insolvente em maio de 2017. De forma a garantir a continuidade das operações da companhia, o estado italiano realizou dois empréstimos, um primeiro de 900 milhões de euros em 2017 e um segundo de 400 milhões de euros em 2019.
O primeiro empréstimo viria a ser considerado ilegal em 2021, o segundo empréstimo apenas este ano teve resposta do tribunal, ainda que a decisão em muito se assemelhe à decisão de 2021 referente ao primeiro empréstimo. Em ambos os casos, a Comissão determinou que o governo italiano não procedeu como um investidor privado deveria ter atuado, na medida em que não realizou uma análise prévia da probabilidade do empréstimo, e respetivos juros, serem pagos pela companhia aérea ao estado, o que aparentemente nunca devia deixar de ser tema independentemente do estado. O objetivo do estado, enquanto investidor, conclui a Comissão, não era realizar um investimento que porventura pudesse dar lucro, mas apenas garantir a continuidade da prestação dos serviços aéreos. Como esclarece de forma cabal o parágrafo 39 da decisão, transladando o pensamento da decisão sobre o apoio de 2017 para o apoio de 2019: “a Comissão estabeleceu que, de acordo com a jurisprudência dos tribunais da União, para que se considere que um Estado-Membro agiu como um investidor privado, este deve demonstrar que efetuou, prévia ou simultaneamente à decisão de conceder uma vantagem económica a uma empresa, uma avaliação da rendibilidade da medida. Embora a Itália tenha fornecido vários documentos relacionados com a situação financeira da Alitalia SAI antes da concessão dos empréstimos, as autoridades italianas não conseguiram apresentar elementos de prova de que tinham efetuado uma avaliação ex ante da rendibilidade, da probabilidade de reembolso dos empréstimos ou da adequação dos valores dos empréstimos de 2017. Nestas condições, a Comissão concluiu que a Itália agiu como poder público e não como operador numa economia de mercado”.
Adicionalmente, considerou a Comissão que o apoio em causa também não se pode qualificar no âmbito dos auxílios de emergência e à reestruturação, não apenas porque, tendo existindo um primeiro apoio em 2017 (mesmo que incompatível), este novo apoio violaria o princípio do auxilio único (o bem conhecido “one time, last time”), como nunca foi apresentado um plano de reestruturação, tendo concluído: “Por conseguinte, o empréstimo de 2019 é incompatível, uma vez que a Itália não só já tinha concedido dois empréstimos à Alitalia em 2017 como também nunca apresentou um plano de reestruturação para o empréstimo de 2019 à Alitalia. Tal como demonstrado (…) relativamente aos empréstimos de 2017, para os quais a Itália também não apresentou um plano de reestruturação, o programa de administração extraordinária não pode ser considerado um plano de reestruturação de grande envergadura, exequível e coerente para restabelecer a viabilidade da Alitalia, nos termos da secção 3.1.2 das Orientações relativas aos auxílios de emergência e à reestruturação. Com efeito, este programa visava manter a empresa em funcionamento enquanto decorria a venda dos seus ativos (…) não tendo os administradores extraordinários previsto, em 2019, medidas financeiras ou económicas para reorganizar ou racionalizar as atividades da Alitalia nem desenvolvido um projeto industrial para a tornar novamente competitiva e viável”.
A história da Alitalia vai, infelizmente, longa e muito além destes dois empréstimos incompatíveis com o mercado comum. É uma história que deve ser vista aos olhos de uma perspetiva evolutiva. Da evolução de uma indústria e do insucesso financeiro daqueles que se recusam a adaptar a uma outra realidade. O mercado comum de aviação tem muitas falhas, entre o SES e os monopólios naturais de muitos dos fornecedores de companhias aéreas, ao ponto de muitos profissionais do sector, onde me incluo, considerarem que se trata de um processo de liberalização imperfeito em várias áreas a jusante dos operadores. Não bastam essas falhas?
[1] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=OJ:L_202302160
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial