O CEO da Maersk anunciou que no 3º trimestre de 2022 a empresa atingiu os mais elevados lucros de sempre e que tem uma estratégia para os manter assim. A empresa passou a reagir a quebras na procura numa qualquer rota com a remoção imediata de capacidade (navios). Com essa orientação estratégica considera que vai manter as taxas de frete a um nível capaz de garantir uma boa rentabilidade do negócio.
A Maersk considera que o container shipping entrou numa nova era. O importante já não é conquistar quotas de mercado, mas sim ganhar posição no pacote de serviços logísticos onde os seus clientes despendem fortunas. Perante a expetativa de uma quebra no negócio de transporte marítimo em 2023, a Maersk espera compensar com crescimento na vertente da logística. Mas será possível um operador reduzir o nível de serviço no transporte marítimo (menos regularidade, menos frequência e mais tempos de trânsito) e… crescer na vertente de negócio da logística?
O cancelamento (blank sailing)
A viagem do navio X com 20.000 TEU’s de capacidade está programada para ser iniciada no porto Y, no dia Z, itinerário com 4 escalas, uma delas exclusivamente de transhipment. Umas horas antes da partida a previsão de embarque de contentores cheios durante a viagem era de 3.000 TEU’s. O sistema de otimização de resultados operacionais (dêmos-lhe o nome bonito de “liner results optimizer”) deteta que 3.000 é um valor que está muito abaixo do mínimo aceitável. De acordo com as orientações estratégicas e instruções operacionais delas decorrentes o gestor de linha cancela a viagem. Em breve pode até acontecer que seja o próprio sistema (com base em inteligência artificial) a desencadear o cancelamento, enviar alertas para o gestor, o navio, os clientes (incluindo parceiros de aliança) e os fornecedores, entre estes os terminais de contentores.
O cliente não sabe, mas a sua vida está nas mãos de um qualquer LRMS (liner results optimizer system) e não nas mãos de uma customer service team embora seja esta que lhe envia sms ou emails com muita informação, mas nenhuma solução.
Com o cancelamento da viagem o operador reduziu custos do serviço e evitou uma redução na margem unitária de exploração por contentor. Os 3.000 TEU’s são passados para a viagem seguinte do navio ou repartidos por outros navios no serviço (do mesmo ou de outro parceiro da aliança). Foi uma decisão “cost-effective” para o operador.
Com o cancelamento da viagem o cliente pode vir a receber os contentores alguns dias mais tarde, mas se a viagem seguinte for também cancelada ou se as ligações no terminal de transhipment correrem mal esses dias podem converter-se em muitas semanas. Foi uma decisão do operador que implicou perdas para o cliente.
O cliente não sabe, mas a sua vida está nas mãos de um qualquer LRMS (liner results optimizer system) e não nas mãos de uma customer service team embora seja esta que lhe envia sms ou emails com muita informação, mas nenhuma solução. Porque o LRMS é que decidiu. Se for um cliente premium ou com um SLA (service-level agreement) pode ter o privilégio de um contato humano e, nos casos mais graves, de uma compensação.
Para se ter uma ideia da situação generalizada a que se chegou pode consultar-se o “Weekly Cancelled Sailings Tracker” da Drewry, que permite ter uma visão geral dos cancelamentos (blank sailings) para cada Aliança.
Digitalização e tecnologias
É impressionante a facilidade com que é hoje possível, de um momento para o outro, reduzir a oferta num serviço de linha.
Não me refiro à postura comercial arrogante, isto é, de uma forma sistemática, aceitar num dia uma reserva para o transporte de um contentor com previsão de entrega no destino numa data e, passados alguns dias, informar o carregador de que a viagem ou a escala prevista no porto de origem ou de destino foi cancelada por decisão de gestão (não por mau tempo, congestionamento ou avaria) e que a entrega no destino final vai ocorrer com atraso significativo.
Refiro-me à complexidade da gestão de um cancelamento de viagem: manter um ou vários navios parados ou deslocá-los entre rotas/serviços, gerir com os diversos terminais portuários de contentores a alteração dos serviços programados, gerir os impactos nos stocks de contentores vazios, reprogramar abastecimentos de combustíveis, reprogramar intervenções técnicas nos navios, etc..
Tudo isso é hoje possível porque os CEO dos operadores têm vindo a colocar ao dispor dos gestores de linha um conjunto de ferramentas, como exemplos[i]: vessel scheduling systems, freight quotation management systems, container inventory and management systems, container track & trace, bunker management systems, etc.. Ferramentas que hoje podem estar mais ou menos integradas e que estão sempre a ser substituídas por outras mais avançadas.
Uma das ferramentas recentemente anunciada pela Lloyd’s List Intelligence, é o PREDICTIVE FLEET ANALYTICS[ii] que, utilizando inteligência artificial (IA) e interfaces de programação de aplicativos (API – Application Programming Interface), permite analisar de forma integrada os movimentos dos navios, os tempos de viagem, a situação nos portos de escala, etc.. Segundo o texto de promoção, o produto permite “reduzir a necessidade de os indivíduos de forma manual coligirem dados por conta própria, oferecendo informação rigorosa sobre previsão de movimentos e comportamentos dos navios”.
O predictive fleet analytics “fornece notificações oportunas sobre mudanças nos ETA aos clientes, aos agentes e aos fornecedores, ajudando a mitigar riscos financeiros e proporcionando uma visibilidade sobre as operações comerciais. Além disso, as informações sobre os ETB (estimated time to berth) e os ETD (estimated time of departure) permitem aos intervenientes fornecer aos seus clientes informações mais precisas”.
Outro caso é o seguimento em tempo real dos contentores. A Hapag Lloyd anunciou que até ao final de 2023 a larga maioria dos seus contentores estarão dotados de dispositivos de rastreamento que irão transmitir dados em tempo real de cada contentor: localização com base em GPS, medição da temperatura ambiente e monitorização de quaisquer impactos repentinos. Atendendo à redução de custos dos equipamentos e das comunicações, dentro de pouco tempo essa será uma situação generalizada a todos os operadores. O potencial de cada operador poder conhecer em tempo real a localização exata do contentor é enorme. Permite acabar com a dependência de informação oriunda de inúmeros intervenientes. E, claro, permitirá também, com base em provas irrefutáveis, penalizar em tempo útil clientes ou fornecedores que provoquem sobrestadias ou avarias nos contentores.
O que significa “controlar a oferta em tempo real”?
Percebemos pelas declarações do CEO da Maersk que a digitalização e a utilização de tecnologias permitem hoje controlar a oferta em tempo real, evitar que os operadores se digladiem por quotas de mercado e manter as taxas de frete a níveis que permitam aos acionistas obter lucros.
Mas não percebemos onde estão as vantagens para os clientes. É apenas a visibilidade?
Propomos que a APS e as Universidades e Institutos Politécnicos parceiros da Agenda Nexus utilizem nos próximos três anos os 59 milhões de Euros que lhes foram atribuídos no PRR para criarem áreas de estudo sobre transportes marítimos, logística marítima e gestão portuária.
Os clientes vão poder conhecer em tempo real que o contentor com as suas mercadorias vai chegar com algumas semanas de atraso em relação ao previsto? Que o contentor está algures a bordo de um navio ou num porto que não estavam programados? Que o preço final do serviço se alterou por um adicional não previsto, por exemplo para cobrir a taxa por emissão de carbono?
Com NEXUS, mas com Objetivos
Nos seminários e conferências somos deslumbrados com tecnologias que nos deixam de boca aberta[iii]. Elas são fruto de projetos de investimento em inovação, investigação e desenvolvimento que aplaudimos e elogiamos porque pelas narrativas em que eles são embrulhados somos levados a acreditar que tudo o que as empresas fazem é para benefício dos carregadores e dos consumidores.
Com a crescente concentração de operadores e aprofundamento das Alianças está muito longe de estar garantido que os benefícios da digitalização, das tecnologias e dos apoios estatais à I&D vão alguma vez parar às mãos dos consumidores. A preocupação dos Estados, e muito em particular da União Europeia, deveria ser intervir fortemente na regulação da concorrência nos transportes marítimos e criar ferramentas que nas instituições reguladoras e autoridades portuárias apoiem essa ação.
A Agenda Mobilizadora Nexus[iv], liderada pela Administração dos Portos de Sines e do Algarve (APS), anuncia como objetivo “a promoção de um ecossistema logístico de alta performance”, obter produtos que “são inovadores” porque “tiram partido de novas tecnologias, como inteligência artificial e algoritmos preditivos“, melhorando “a qualidade de decisão, antecipando alguns procedimentos, assim como a performance no que respeita à sustentabilidade ambiental“. Não considero que sejam verdadeiros objetivos, mas apenas frases-chave que serviram para posicionar o projeto na fase de candidatura.
Propomos que a APS e as Universidades e Institutos Politécnicos parceiros da Agenda Nexus utilizem nos próximos três anos os 59 milhões de Euros que lhes foram atribuídos no PRR para criarem áreas de estudo sobre transportes marítimos, logística marítima e gestão portuária. Onde os estudantes se venham a interessar por tecnologias e sistemas que permitam acompanhar e avaliar o modo de funcionamento das autênticas “caixas pretas” dos operadores globais de contentores. Por exemplo, a criação de um sistema de compensação financeira dos clientes em situações de prejuízo por alguns tipos de cancelamentos de viagens ou de escalas em serviços de contentores.
Os operadores globais de serviços de contentores e de terminais não precisam de apoios financeiros para desenvolver novas tecnologias. Pelo contrário, as instituições de regulação e de fiscalização não dispõem de meios técnicos, pouco mais têm do que leis e regulamentos.
[i] Ver em: www.solverminds.com ou em https://www.sap.com/products/scm/ocean-freight-software.html.
[ii] Ver em https://www.lloydslistintelligence.com/services/data-and-analytics/predictive-fleet-analytics
[iii] Sobre este tema recomendo o livro “Data Analysis in the Maritime Domain” disponível em https://wydawnictwo.ue.poznan.pl/books/978-83-8211-136-1/978-83-8211-136-1.pdf
[iv] Consórcio liderado pela APS – Administração dos Portos de Sines e do Algarve, que tem como objetivo “promover a transição digital e ecológica do setor dos transportes e da logística através do desenvolvimento de 28 novos produtos e serviços com elevado grau de inovação e diferenciação, em domínios como open data e IA – Inteligência Artificial aplicados às operações portuárias, dos transportes e da logística, 5G, Cibersegurança, bem como modelos e algoritmos preditivos para a gestão dos recursos energéticos”. Com um custo total de 91,9 milhões de euros, vai ser apoiado pelo PRR com um incentivo de 59 milhões de euros.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos
Parabéns pelo artigo! Esclarecedor!