De forma a encontrar um equilíbrio entre considerações de ordem económica e a proteção do ambiente para os seus nacionais e residentes no seu território, o governo neerlandês decidiu aprovar uma limitação à capacidade do Aeroporto de Schiphol em Amsterdão.
Entre as três medidas governamentais aprovadas, duas referem-se a restrições ao número de movimentos a realizar no aeroporto, justificadas pela necessidade de reduzir o nível de ruído produzido pelas aeronaves.
Contudo, decisões sobre limitações operacionais resultantes de ruído não são tomadas no vácuo. Restrições ao número de movimentos em aeroportos são aplicadas em respeito do direito internacional e do direito comunitário. Nesta matéria é especialmente importante o princípio de “abordagem equilibrada” (o “balanced approach”) o qual se materializa de forma diferente em cada caso, como resultado da aplicação de um procedimento e princípios específicos nesta matéria, valendo tanto para a redução de movimentos como para o seu aumento.
O quadro regulatório
A nível internacional, e como seria de esperar, esta matéria é tratada pelas SARPS à Convenção de Chicago, as quais preveem normas quanto a requisitos de ruído aplicáveis a aeronaves civis no anexo 16, volume I.
Sumariamente, as regras de certificação de ruído de aeronaves preveem a necessidade de contabilização total do ruído realizado por aeronave, incluindo motores e estrutura da aeronave. Os limites de ruído são contabilizados em três localizações diferentes. Primeiro, na pista durante o processo de descolagem, depois, durante o trajeto de voo em fase de subida após a descolagem e, finalmente, durante o trajeto de voo na fase de aterragem. Novas aeronaves requerem certificação de acordo com o capítulo 14 do referido Anexo 16, Volume I. Ao contrário dos capítulos 2 e 3, os limites de ruído para aeronaves são definidos em valores cumulativos idênticos à soma aritmética dos níveis de certificação em cada um dos três pontos de contabilização de ruído.
Ao longo dos anos, durante as sucessivas renovações do anexo 16, as normas têm-se tornado mais exigentes, refletindo assim o desenvolvimento tecnológico das aeronaves e motores, cada vez mais silenciosos, afetando uma área geográfica menor através do ruído causado. Porém, as melhorias técnicas são contrabalançadas pelo aumento do tráfego e o aumento do nível de urbanização nas zonas mais próximas aos aeroportos, o que tem mantido o número de pessoas afetadas por ruído de aeronaves numa tendência crescente.
Foi já no distante ano de 2001, na 33.ª sessão da assembleia da ICAO, que a “abordagem equilibrada” foi adotada como ferramenta de gestão das políticas relativas ao ruido de aeronaves. Esta SARPS, respeitando as enormes diferenças de cada Estado parte da Convenção, fornece uma ferramenta para auxiliar a gerir o ruído de aeronaves de uma forma eficaz e economicamente responsável. O funcionamento da abordagem equilibrada assenta num conjunto de instrumentos que devem ser utilizados de forma individual ou complementar de forma a gerir a exposição ao ruído em aeroportos, mas também na gestão do tema do ruídos dos aeroportos e no equilíbrios dos vários interesses em questão. Ou seja, em termos de metodologia, a abordagem equilibrada não sugere uma solução única mas um procedimento, que permite a integração de todos os atores relevantes e os coordena no âmbito de quatro categorias, ou pilares, de medidas, a saber:
Primeiro, a redução de ruído das aeronaves na fonte, o qual se centra primordialmente nas mãos dos fabricantes, embora o reconhecimento de que diferentes tipos de aeronaves produzem diferentes níveis de ruído seja um conceito essencial na aplicação, em especial, do terceiro e quarto pilar. Naturalmente, especial atenção tem de ser considerada se tais medidas não podem, sob um manto de proteção ambiental, concretizar-se em proibições concretas a determinados fabricantes de aeronaves, o que já poderia ser uma violação do princípio de não discriminação previsto no texto da própria Convenção e que já tem levantado, no passado, algumas questões referentes a tratamento entre fabricantes.
Segundo, zonamento e ordenamento dos terrenos aeroportuários e circundantes. Aqui, remete-se para a Resolução A40-17, Anexo F, a qual publica algumas sugestões que não se repetem aqui por falta de espaço. Em Portugal, se para o aeroporto existente a situação se encontra para lá da redenção, é com alguma curiosidade que se seguirá o ordenamento para o NAL.
Terceiro, procedimentos específicos operacionais para a redução de ruído pelas aeronaves, o que não deve ser confundido com o primeiro pilar que diz respeito prima facie, à construção de aeronaves. Abaixo daquilo que é a aeronave crítica de qualquer aeródromo, nada impede a aprovação de limitações a que determinados modelos de aeronaves sejam proibidos de operar em determinadas horas. Regras operacionais significam limites de ruído, horas proibidas para a operação de aeronaves, penalidades para o caso de ruído excessivo.
Em quarto lugar, note-se, apenas em quarto lugar, restrições às operações de aeronaves no aeródromo (como o ocorrido em Schiphol), com a redução no número total de movimentos permitidos.
Estas medidas, em especial as medidas respeitantes ao terceiro e quarto pilar, têm um impacto direto sobre a exploração económica, quer de um voo quando limitem, por exemplo, o peso máximo à descolagem da aeronave, quer de uma operação, ao reduzir a utilização de determinadas faixas horárias que sejam essenciais a uma operação específica.
Por esta razão, quando se analisam medidas operacionais aplicáveis a um aeroporto em busca de um ponto de equilíbrio entre a atividade comercial e as limitações operacionais, é essencial envolver todos os atores relevantes de forma a garantir interdependências entre os vários aspetos a proteger e minimizar os efeitos indesejáveis (a propalada “abordagem equilibrada”). Não bastam os princípios, é também necessário um processo de consulta.
A abordagem equilibrada não trata apenas do ponto de equilíbrio entre a liberdade dada a uma atividade económica e o ruído produzido enquanto externalidade dessa mesma atividade, mas em encontrar o ponto de equilíbrio entre todos os atores envolvidos no sistema aeroportuário, em especial, os operadores e residentes.
Por outro lado, a legislação comunitária não difere nos princípios de aplicação da abordagem equilibrada. Nos termos do Regulamento Comunitário aplicável, todos os Estados-Membros têm o dever de assegurar a adoção da abordagem equilibrada, na gestão das emissões sonoras das Aeronaves nos aeroportos onde seja identificado um problema de ruído.
Adicionalmente, o Regulamento em causa assenta a abordagem equilibrada nos mesmos quatro pilares previstos previamente pela ICAO de medidas aplicáveis. Concretamente, o Regulamento indica “o efeito previsível de uma redução na fonte do ruído das aeronaves”, “medidas de ordenamento e gestão do território”, “Procedimentos operacionais de redução do ruído”, e, naturalmente, em quarto lugar, “restrições de operação”.
Ao prometer-se um novo aeroporto, sem demasiada concretização quanto ao projeto, além do que pomposamente é chamado de “a decisão”, passou a qualificar-se todas as medidas referentes ao atual aeroporto como meramente transitórias, o que deveria, por uma lógica insuficientemente justificada, permitir que se classificassem como aceitáveis.
Contudo, reforça o sentido do quarto pilar como uma medida de último recurso. Note-se a formulação da norma em causa: “Não aplicar restrições de operação como primeiro recurso, mas só após ponderação das outras medidas da Abordagem Equilibrada”. Deixando expresso no texto como a redução do número de voos permitidos deve ser o último passo a ser tomado pelo aeroporto.
Não podemos deixar de salientar que, mais importante do que a concretização dos pilares de avaliação da abordagem equilibrada, é a aprovação da necessidade de avaliações métricas de ruído e a determinação de procedimentos de avaliação de Regras Gerais de Gestão de Ruído de Aeronaves.
É a determinação, justificada, de regras que permitem determinar o custo de implementação de medidas de redução de ruído, assim como analisar relações de custo-eficácia na sua implementação, permitir consultas transparentes às partes interessadas e, igualmente importante, estabelecer regras de mediação de litígios daí resultantes. Tudo se encontra previsto na legislação relevante como obrigação dos Estados-Membros.
Não sendo totalmente claro o cumprimento do princípio da abordagem equilibrada por parte do governo neerlandês no que concerne à escolha da medida de redução do número de movimentos, a existência da realização do procedimento legalmente previsto de consulta transparente é irrefutável, tendo tido um peso importante na defesa do Estado Neerlandês das acusações de incumprimento das normas de acesso a aeroportos.
O transitório inaceitável
Por outro lado, em Portugal, foi tomada uma decisão sobre um novo aeroporto para a região de Lisboa e, removido esse tema da agenda política e mediática (sendo que desde já se convida o quarto poder a não deixar cair o tema), passou, sob a cobertura do NAL, a subitamente tudo ser permitido quanto ao aeroporto existente sem qualquer justificação de pormaior.
Ao prometer-se um novo aeroporto, sem demasiada concretização quanto ao projeto, além do que pomposamente é chamado de “a decisão”, passou a qualificar-se todas as medidas referentes ao atual aeroporto como meramente transitórias, o que deveria, por uma lógica insuficientemente justificada, permitir que se classificassem como aceitáveis.
Aparentemente, faz escola que o incumprimento das obrigações do estado, independentemente do dano não quantificado, se torne “aceitável”, na medida em que sejam medidas “transitórias”, como se existisse uma equivalência entre estas medidas que, obviamente, não é verdade.
Refiro-me, concretamente, ao aumento do número de movimentos no atual aeroporto, aprovado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 67/2024 de 27 de Maio.
Nos termos desta Resolução, foi aprovado o aumento da capacidade portuária no aeroporto de Lisboa, em número de movimentos por hora, de 38 para 45. Note-se que, já atualmente, o número de movimentos por hora deverá andar, em média, entre os 41 e 42 movimentos. Adicionalmente, concretizando-se a proibição de aeronaves menores na Portela e a obrigatoriedade de uso do Aeródromo Municipal de Cascais, na prática, ocorrerá um incremento de aeronaves com maior capacidade de peso à descolagem, e mais ruidosas, no Aeroporto da Portela a acrescer ao número de movimentos.
Curiosamente, ou não, a dita resolução inicia-se exatamente com uma referência ao futuro aeroporto da região de Lisboa, desde logo paliativo à falta de transparência no processo decisório em causa. É a dita invocação da transitoriedade como medida de legitimação do que é uma decisão errada e provavelmente ilegal.
Curiosamente, ou não, não há qualquer referência na dita Resolução à adoção de medidas de abordagem equilibrada na análise do tema, nem provas do cumprimento do quadro legal aplicável.
Do lado da Câmara Municipal, a mudança de direção tem sido clara. Se em maio do presente ano, o edil do município era favorável ao aumento de voos na Portela, exigindo compensações financeiras em contrapartida, viu posteriormente ser aprovada pela Assembleia Municipal de Lisboa, com a qual, julgando pelas suas declarações, “se conformou” dentro da sua realidade de posição minoritária no órgão municipal, uma moção no sentido do governo “não aumentar o número de movimentos por hora do Aeroporto Humberto Delgado; estudar a retirada faseada do aeroporto de Lisboa, de forma a salvaguardar a saúde pública e a segurança das pessoas que vivem e trabalham em Lisboa e concelhos limítrofes; e introduzir medidas compensatórias às zonas circundantes do aeroporto que cubra inteiramente os custos de insonorização das habitações”, sendo que, já contra a vontade do presidente, a oposição na Câmara Municipal de Lisboa aprovou uma proposta que obriga os serviços municipais a avançar com uma queixa junto do Ministério Público pela possibilidade de aumento dos voos sobre a cidade, sem avaliação de impacte ambiental e uma ação judicial para obrigar a ANA – Aeroportos de Portugal, S.A. a cumprir o Plano de Ação do Ruído.
Os valores em confronto são óbvios e o tema encontra-se irremediavelmente politizado. Se quanto ao cumprimento do procedimento legal se guardam fundadas reservas, quanto à falta de transparência, o não dito, tudo diz.
Tanto em Portugal como nos Países Baixos a contestação encontra-se vocalizada. A diferença revela-se em dois aspetos, por um lado, o cumprimento do processo legalmente previsto de consulta transparente aos atores relevantes e o estudo dos custos das medidas alternativas apresentado em Schiphol, e, por outro, na preocupação da classe política na proteção dos seus nacionais e residentes.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial