Em artigo anterior no TRANSPORTES & NEGÓCIOS, publicado em meados de março, abordei a questão das comunidades portuárias energéticas, no contexto do pacote Fit for 55, da iniciativa da União Europeia. Nesse artigo afirmei que os portos terão de deixar de ser apenas um nó da cadeia logística, tanto na perspetiva do hinterland como do foreland, para passarem a liderar processos de sustentabilidade ambiental e a recentrarem o seu papel numa perspetiva de valor para as comunidades locais, sendo-lhes exigido um papel de liderança em processos de sustentabilidade ambiental, com destaque para a eficiência energética e a partilha de energia.
Longe de esgotado, o tema merece mais alguma atenção e desenvolvimento. Questões sobre como poderão os portos desenvolver agendas de sustentabilidade e de transição energética, como poderão as administrações portuárias evoluir futuramente em termos de modelo de negócio para a acomodação de mais esta componente estratégica ou qual o papel que poderá estar reservado para as comunidades portuárias nos próximos anos apresentam-se com alguma naturalidade. Estas questões enquadram-se ainda na lógica de uma crescente visibilidade para a economia azul e para a sustentabilidade das políticas ligadas ao mar.
Todas estas questões e o papel dos diversos intervenientes no desenvolvimento de soluções integradas poderão enquadrar-se no âmbito de um curioso modelo desenvolvido há já quase duas décadas por Peter De Langen, um profícuo economista marítimo. O modelo é relativamente simples, com apenas quatro entradas, resultantes da combinação de duas variáveis. As variáveis são as interações e as atitudes entre stakeholders, de cuja qualidade e intensidade resulta a seguinte matriz:
Da leitura da figura acima resulta que, no caso da tentativa de construção de uma comunidade portuária energética, a probabilidade da sua dinamização aumenta exponencialmente com o número de interações (o eixo vertical) e da existência de atitudes cooperativas por parte da generalidade dos seus elementos (o eixo horizontal). A combinação de interações frequentes e atitudes cooperativas, constante do quadrante 4, é claramente a mais vantajosa solução para a dinamização de tais comunidades portuárias. Em oposição, a combinação de interações limitadas e atitudes não cooperativas (quadrante 2) resultará numa solução pouco recomendável para o porto, geradora de um futuro incerto para este e todos os seus stakeholders. Este último tipo de solução é, tradicionalmente, uma solução típica em pequenos portos insulares como, por exemplo, os de algumas ilhas das Caraíbas e do Pacífico, onde prevalecem modelos atualmente ultrapassados como o service port, em que a administração portuária desempenha todo o leque de atividades e são relativamente recorrentes problemas laborais que decorrem do excesso de mão-de-obra portuária e da inexistência de reformas setoriais profundas, com efeitos muito penalizantes em termos de ineficiência portuária. Nos portos portugueses, observam-se também alguns casos relativamente similares a este, como por exemplo na Região Autónoma dos Açores, em que a dependência face a políticas governamentais é muito significativa, e com um predomínio de relações ditadas pela combinação entre interações limitadas e atitudes não cooperativas, típicas do quadrante 2. Sobressai ainda a inexistência de conselhos portuários ou de comunidades portuárias legalmente formadas.
…torna[-se] indispensável a adoção de modelos de governação portuária mais colaborativos e interativos, de que o modelo desenvolvido no norte da Europa, herdeiro da Liga Henseática, é a matriz para a generalidade dos portos modernos e em que o modelo espanhol, por exemplo, apresenta condições mais promissoras e resilientes do que o nacional.
Em portos de maior dimensão e outros níveis de desenvolvimento, o papel das administrações portuárias, enquanto elementos das respetivas comunidades portuárias dotados do maior volume de meios, tanto materiais como financeiros, e preponderância, é, mais uma vez, fundamental. O exemplo de liderança da Administração do Porto de Sines na Agenda NEXUS é um bom exemplo desta liderança. Para além disto, neste novo paradigma, novos players perspetivam-se para integrarem a composição de comunidades portuárias, podendo mesmo reconfigurar parcialmente tais comunidades e ampliá-las.
Decorre desta preponderância que, quanto mais desigual for o peso relativo dos diferentes stakeholders, possivelmente mais distorcidas se tornam as relações no interior da comunidade portuária em termos de interações, e mais provavelmente os relacionamentos se tornam do género não cooperativo. Daqui depreende-se acerca da delicadeza do papel da administração portuária e da sua importância na construção dos incentivos mais adequados para a prossecução de objetivos coletivos, como é o caso das comunidades portuárias energéticas.
Significa isto que a mudança para as comunidades energéticas necessita de um paradigma de relações entre stakeholders do tipo interações frequentes e atitudes cooperativas (quadrante 4). Sem este tipo de solução, a mudança tornar-se-á menos dinâmica e provável.
É por isto que se torna indispensável a adoção de modelos de governação portuária mais colaborativos e interativos, de que o modelo desenvolvido no norte da Europa, herdeiro da Liga Henseática, é a matriz para a generalidade dos portos modernos e em que o modelo espanhol, por exemplo, apresenta condições mais promissoras e resilientes do que o nacional.
Para além disto, em Portugal, as administrações portuárias estão demasiado dependentes da intervenção do Estado, com o seu conjunto de incentivos, muitas vezes erróneo e titubeante, com efeitos por vezes dececionantes para os próprios portos. A lógica estatal, de teor extrativo, prevalece, dando os sinais errados para as comunidades portuárias e fazendo prever resultados como os do famoso Dilema do Prisioneiro[1], em que ninguém ganha. De facto, de acordo com este dilema, o ponto crítico são os incentivos, sendo que estes induzem mais à traição do que à cooperação.
Em suma, e como em tantos outros assuntos, a intervenção do Estado em termos de políticas portuárias é determinante. A matriz da estrutura marítimo-portuária nacional remonta à década de 90 do século XX, aproximando-se já dos 30 anos de idade. Entretanto, o mundo mudou, sobrevindo novos paradigmas e desafios. Esperemos que, neste assunto, como em tantos outros, não aconteça o mesmo que com o aeroporto de Lisboa, com decisões por tomar e atrasadas em décadas e ainda que as anunciadas reformas para o setor portuário não sejam apenas cosmética numa face enrugada.
[1] O dilema do prisioneiro apresenta a história de dois prisioneiros e do dilema entre trair e cooperar. Este jogo representa várias situações da vida quotidiana ou empresarial em que, embora a colaboração entre os prisioneiros (jogadores, pessoas) proporcione resultados melhores, individualmente a melhor escolha é trair, prejudicando todos.
LUÍS MACAHADO DA LUZ
Assessor na empresa Portos dos Açores, S.A.
Doutorando do Programa Doutoral em Sistemas de Transporte, pela Universidade de Coimbra