A marinha mercante portuguesa, enquanto instrumento de projeção económica, política e simbólica, conheceu ao longo da história fases de expansão e declínio que acompanharam de perto as mutações do império e da economia nacional.
Este artigo propõe uma leitura em quatro grandes momentos: a era dos Descobrimentos; o século XIX após a perda do Brasil e o recuo na Índia; o século XX antes das independências africanas; e a contemporaneidade. Em cada um deles, a marinha mercante revela os limites e as ambições da presença portuguesa no mar.
A marinha mercante desenvolveu-se de forma drástica e ligada ao movimento de expansão ultramarina impulsionado pela dinastia de Avis. Sob o impulso do infante D. Henrique, da casa de Ceuta à descoberta do caminho marítimo para a Índia, Portugal desenvolveu uma rede logística e comercial assente em navios nacionais. As rotas de pimenta, ouro, especiarias e madeiras nobres alimentaram o porto de Lisboa como centro de redistribuição europeia.
A intervenção do Estado era determinante: as leis de D. Fernando (século XIV), descritas por Oliveira Martins, já estabeleciam incentivos à construção naval, seguros mútuos, subsídios à armação e isenções fiscais. D. Fernando criou um sistema de prémios e proteções para quem construísse navios com mais de 100 tonéis, incluindo o fornecimento gratuito de madeira das matas reais e isenção de direitos sobre ferro, cabos e outros materiais. Instituiu ainda bolsas de seguros mútuos em Lisboa e no Porto, obrigando os navios registados a contribuir com uma percentagem dos fretes para garantir a cobertura em caso de perda por tempestade ou pirataria.
Segundo Fernão Lopes, durante o reinado de D. Fernando, Lisboa recebia anualmente cerca de 12.000 tonéis de vinho para exportação e contava frequentemente com mais de 500 navios fundeados no Tejo, além de 100 a 150 em Sacavém e no Montijo. O movimento comercial era tal que as barcas de transporte não conseguiam circular entre os navios, obrigando a acostagens em Santos. Estima-se que o movimento marítimo anual do porto de Lisboa rondava as 250.000 a 300.000 toneladas, um volume impressionante para a época (Oliveira Martins, no livro Portugal nos Mares).
A marinha mercante e a marinha de guerra confundiam-se: os navios de comércio armavam-se em berços, roqueiras e lança-chamas, e os mestres e senhores de navios tinham obrigações militares quando requisitados pela Coroa. O próprio rei participava no comércio como armador e investidor, fomentando o tráfego sem concorrer diretamente com os mercadores. Esta política integrada permitiu o desenvolvimento de uma marinha robusta que, nos séculos XV e XVI, levaria os Portugueses à Índia, ao Brasil, a África e ao Extremo Oriente, transformando Lisboa num dos maiores entrepostos comerciais da Europa.
Com a independência do Brasil (1822) e a erosão do domínio na Índia, a marinha mercante portuguesa perdeu as suas rotas mais lucrativas. A navegação costeira e o tráfego com África passaram a dominar, muitas vezes por intermediação de navios estrangeiros. As grandes potências europeias, com frotas modernas e mercados protegidos, impuseram um novo ordenamento atlântico.
Nesta época, o número de navios com bandeira portuguesa declinava progressivamente. Segundo dados oficiais, entre 1850 e 1870 a frota mercante portuguesa passou de mais de 500 navios para menos de 200. O tipo predominante eram lugres, brigues e barcas de madeira à vela, desajustados face à nova era do vapor e do ferro.
A falta de uma política marítima moderna levou à obsolescência da frota. A concorrência com navios britânicos, com melhor capacidade e regularidade, forçou os poucos armadores portugueses a vender ou registar as suas embarcações noutras bandeiras. O Atlântico Sul, antes espaço vital da marinha lusa, era agora dominado por companhias estrangeiras, como a Royal Mail Steam Packet (uma das principais operadoras britânicas nas rotas atlânticas, incluindo o Atlântico Sul, onde estabeleceu ligações regulares entre o Reino Unido e a América do Sul (Brasil, Argentina e Uruguai), frequentemente com escalas nos arquipélagos portugueses).
Citam-se três frases de Oliveira Martins, retiradas de Portugal nos Mares, sobre a decadência da marinha mercante portuguesa no século XIX:
- “A nossa marinha desapareceu. A bandeira portuguesa sumiu-se dos mares.”
(Comentando o colapso da frota nacional perante a concorrência estrangeira e a falta de política marítima moderna.)
- “De Lisboa saem por ano vinte navios mercantes portugueses… e entram duzentos estrangeiros.”
(Frase ilustrativa da assimetria entre a presença nacional e a dependência de frotas estrangeiras, especialmente britânicas.)
- “Enquanto os outros povos construíam navios de ferro, movidos a vapor, nós ainda confiávamos aos ventos as caravelas apodrecidas de pinho.”
(Crítica contundente à incapacidade técnica e material da marinha mercante portuguesa face à revolução industrial naval.)
Apesar da decadência, persistiram iniciativas privadas de armadores regionais e pequenas empresas de cabotagem. Lisboa, ainda com alguma influência, viu as suas ligações às ilhas e à costa africana assumirem carácter marginal. Não se consolidou uma política marítima nacional, e o arsenal da marinha mercante tornou-se obsoleto, incapaz de competir com as marinhas industriais do Reino Unido ou da França.
Durante o Estado Novo, particularmente entre as décadas de 1940 e 1970, assistiu-se a uma revitalização limitada da marinha mercante, integrada numa estratégia colonial (Angola e Moçambique eram considerados destinos prioritários de exportação de maquinaria, produtos industriais e bens alimentares, bem como mercados para importação de produtos tropicais):
Estabelecimento de linhas regulares para as colónias africanas e ilhas atlânticas com contratos protegidos; Construção de infraestruturas emblemáticas, como as gares marítimas de passageiros (Rocha e Alcântara); Desenvolvimento de políticas industriais associadas, como estaleiros navais e escolas de formação marítima; Plano de Fomento que incluía investimentos em estaleiros e infraestruturas portuárias; Contratos de serviço público para as rotas com as colónias; Visão centralizada e estratégica do mar como “coluna vertebral do império”.
Em 1961, a marinha mercante portuguesa dispunha de uma frota de 223 navios, num total de 474.000 toneladas de arqueação bruta. Neste período, surgem companhias emblemáticas como a SOPONATA (Sociedade Portuguesa de Navios-Tanque), mas também a CNN (Companhia Nacional de Navegação), a CTM (Companhia de Transportes Marítimos), a Empresa Insulana de Navegação.
- SOPONATA – Sociedade Portuguesa de Navios-Tanques
Fundação: 13 de junho de 1947, por iniciativa do Ministro da Marinha, Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz.
Objetivo: Concentrar o transporte marítimo de combustíveis, reunindo os principais armadores e importadores de petróleo.
Frota: Operou navios-tanque modernos, como o Hermínios, primeiro petroleiro construído pela Kawasaki para uma empresa europeia.
Privatização: Privatizada em 1993 e vendida em 2004 à General Maritime.
- CNN – Companhia Nacional de Navegação
Origem: Criada em 1918, sucedendo à Empresa Nacional de Navegação a Vapor para a África Portugueza (fundada em 1880).
Atuação: Operou linhas para as colónias africanas e Brasil; destacou-se com navios como o Príncipe Perfeito.
Encerramento: Extinta em 1985.
- CTM – Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos
Formação: Resultado da fusão, em fevereiro de 1974, da Companhia Colonial de Navegação (CCN) com a Empresa Insulana de Navegação (EIN).
Nacionalização: Nacionalizada após a Revolução de 25 de Abril de 1974.
Encerramento: Extinta em 1985 e liquidada em 2001.
- Empresa Insulana de Navegação (EIN)
Fundação: 13 de dezembro de 1871, em Ponta Delgada, pelos Bensaúde e o Barão da Fonte Bela.
Serviço: Operou carreiras regulares entre Lisboa, Açores, Madeira e, ocasionalmente, América do Norte e África.
Fusão: Fundiu-se com a CCN em 1974, formando a CTM.
Estas empresas asseguravam ligações regulares com as colónias e arquipélagos, operando rotas transatlânticas e costeiras. A SOPONATA, especializada em transporte de combustíveis, possuía alguns dos maiores petroleiros da Europa em operação nos anos 70. A CTM e a CNN asseguravam linhas regulares com Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné, transportando carga, passageiros e tropas.
As gares marítimas da Rocha Conde de Óbidos e Alcântara, em Lisboa, simbolizavam esta política de projeção imperial. Os navios, que transportavam passageiros e carga para Luanda, Lourenço Marques, São Tomé ou Bissau, desempenhavam um papel fundamental na circulação de bens, funcionários coloniais e militares.
A marinha mercante portuguesa praticamente desapareceu com o fim do império. O período pós-1974 foi marcado pela liberalização, privatização e desmantelamento da maioria das companhias navais. A frota nacional reduziu-se aos nichos de abastecimento dos arquipélagos (Madeira e Açores) e ao transporte de combustíveis por parte da SOPONATA, hoje uma empresa de capital estrangeiro.
Em 2023, Portugal contava com apenas cerca de 80 navios registados sob bandeira nacional, dos quais menos de 30 operavam em tráfego regular, a maioria em segmentos de curta distância ou abastecimento insular. O registo convencional português foi praticamente esvaziado, e o Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR) atraiu navios estrangeiros com vantagens fiscais, mas sem impacto real na operação portuária nacional.
Um regime europeu que reservasse a cabotagem a navios de bandeira real europeia – com tripulações e operadores nacionais – permitiria não só proteger o abastecimento das regiões insulares, como relançar a formação marítima e a atividade armadora nacional, hoje reduzida a alguns nichos.
Portugal tornou-se dependente de operadores internacionais. O registo de navios deslocou-se para outras bandeiras (registos de conveniência), e a formação naval passou a servir armadores estrangeiros. É um tempo de silêncio portuário: os navios atracam, mas na maioria não são portugueses.
Atualmente, a marinha mercante portuguesa é composta por um número reduzido de armadores nacionais, refletindo a diminuição do setor nas últimas décadas, entre eles:
- Grupo Sousa: com sede na Madeira. Opera as empresas de navegação GS Lines e Porto Santo Line, além de atuar nas áreas de logística, operações portuárias, energia e turismo.
- Transinsular – Transportes Marítimos Insulares, S.A.: Especializada no transporte marítimo de carga para os arquipélagos da Madeira e dos Açores, bem como para outras regiões. Integra o Grupo ETE, que possui diversas atividades no setor marítimo-portuário.
- SACOR Marítima, S.A.: Empresa focada no transporte marítimo de produtos petrolíferos e químicos, com uma frota de navios-tanque operando em rotas nacionais e internacionais.
- SOFRENA – Sociedade de Afretamentos e Navegação, S.A.: Dedica-se ao afretamento de navios e à prestação de serviços de transporte marítimo, com operações em diversos portos nacionais.
- TSL – Tejo Shipping Lines, Lda.: Empresa que oferece serviços de transporte marítimo, incluindo operações de carga e logística, com foco na região do Tejo.
- Vieira & Silveira – Transportes Marítimos, S.A.: Armador com atividades no transporte marítimo de carga, operando em rotas nacionais e internacionais.
A possibilidade de maior concorrência futura do comércio marítimo com as ilhas, hoje assegurado por licenças de obrigação de serviço público, levanta questões sobre a continuidade de uma marinha nacional estável. O risco de entrada de operadores estrangeiros poderá levar à perda de controlo logístico de setores críticos para a coesão territorial e a soberania alimentar e energética das regiões insulares.
Neste contexto, emerge a necessidade de integrar Portugal numa estratégia marítima europeia que vise recuperar capacidade de transporte, autonomia logística e presença geoestratégica no Atlântico. A crescente instabilidade no Mar Vermelho, as tensões no Ártico e a questão das cadeias de abastecimento pós-pandemia reforçam a ideia de uma marinha mercante europeia.
Estudos recentes da Comissão Europeia destacam a importância de desenvolver uma frota europeia estratégica, apoiada em critérios de segurança, emprego marítimo e sustentabilidade. Porque não um “Jones Act Europeu” -inspirado no Jones Act dos EUA (1920)? Portugal poderá encontrar aqui uma oportunidade: promover uma nova geração de armadores nacionais, integrar plataformas logísticas europeias e valorizar os centros de formação marítima de excelência que o país ainda possui.
A criação de um “Jones Act Europeu” poderia representar um passo decisivo para reforçar a soberania marítima e a coesão territorial da União Europeia. Inspirado na legislação norte-americana que restringe o transporte marítimo interno a navios construídos, operados e tripulados por cidadãos dos EUA, este modelo europeu permitiria proteger as ligações marítimas essenciais, como as que unem o continente às regiões ultraperiféricas, e garantiria uma capacidade de resposta logística em cenários de crise – algo que a pandemia, a guerra na Ucrânia e os conflitos no Mar Vermelho vieram tornar evidente. Ao mesmo tempo, fomentaria o desenvolvimento da indústria marítima e dos estaleiros navais da UE, num momento em que os desafios da transição energética e ambientais exigem navios mais eficientes, modernos e controlados.
Portugal teria tudo a ganhar com uma medida deste tipo. A sua posição geográfica atlântica, a existência de portos estratégicos como Sines e Lisboa, os estaleiros de Setúbal e Viana do Castelo, os portos de Aveiro e Leixões, e a dependência das rotas para os Açores e Madeira tornam-no particularmente vulnerável à instabilidade dos operadores internacionais.
Um regime europeu que reservasse a cabotagem a navios de bandeira real europeia – com tripulações e operadores nacionais – permitiria não só proteger o abastecimento das regiões insulares, como relançar a formação marítima e a atividade armadora nacional, hoje reduzida a alguns nichos. A história marítima portuguesa, tantas vezes evocada, teria finalmente um reflexo contemporâneo estruturado e estratégico. Este protecionismo pode criar ineficiências, mas também oportunidades e resiliência militar e de abastecimento em caso de conflito ou pandemia. Há que refletir.
Contudo, esta proposta exige coragem política e uma revisão de princípios que regem o mercado interno europeu. A livre circulação de serviços e a concorrência entre operadores não podem continuar a servir de escudo para a dependência logística de frotas sob bandeiras de conveniência e jurisdições permissivas. Um “Jones Act Europeu” não seria um retrocesso protecionista, mas antes uma afirmação de autonomia, sustentabilidade e segurança no domínio marítimo. Num século marcado por choques externos e rivalidades geopolíticas, uma marinha mercante europeia, e portuguesa, estruturada poderá fazer a diferença entre vulnerabilidade e resiliência? Fará sentido? Poderia não ser uma proibição, mas a aplicação de taxas diferenciadas à entrada e operação por tipo de armador e origem das embarcações.
A marinha mercante portuguesa foi, em tempos, o traço mais visível da presença nacional no mundo. Hoje, sobrevive em pequenos circuitos, memórias industriais e relatos históricos. A sua reconstrução não passa por uma nostálgica reedição do passado, mas por uma reintegração numa política marítima europeia que valorize a autonomia, a segurança e a sustentabilidade. Nessa viagem, Portugal pode reencontrar um rumo atlântico e moderno, ligando novamente os portos ao destino da sua geografia e da sua história.
VÍTOR CALDEIRINHA
Professor
Entre muitas outras questões que poderia comentar, fico-me apenas por duas.
1) Não é mencionao o armador Mutualista Açoreana de Transportes Marítimos SA, que pertence ao Grupo Bensaúde e que opera na ligação do Continente com a Regiao Autónoma dos Açores, há mais de 100 anos.
Este armador foi o ÙNICO que se manteve sempre no registo convencional português, quando todos os outros alteraram o registo dos seus navios para o Registo Internacional da Madeira, tendo entretanto e recentemente alguns voltado ao registo convencional.
2) O Jones Act dos EUA tem como principal objetivo a segurança dos EUA, garantindo ao Governo dispor desses navios sempre e quando precisa deles por motivos essencialmente militares, sendo usados pelo MSC (Military Sealift Command).
Por isso os navios são construídos nos EUA e tripulados por nacionais dos EUA, o que, como se deve depreender tem custos e operação enormes e muito superiores a qualquer outra alternativa, e por isso têm a chamada proteção de tráfego para garantir a sua viabilidade financeira, praticando fretes exorbitantes nos serviços que praticam e pagos pelos seus utilizadores.
Os navios são construídos com características para servir o transporte de equipamentos militares em primeiro lugar e só depois se ajustam as necessidades de transporte de carga.
Desta forma o governo dos EUA tem à sua disposição uma frota para quando necessita, estando mantida e a funcionar durante os períodos em que dela necessita.
Tão simples quanto isso.
Quanto ao um Jones Act Europeu isso seria interessante se houvesse uma política que aposta-se no transporte intermodal de base marítima nos fluxos de carga intra-europeus, algo que nunca foi feito a sério nem algum dia será, porque tem sempre sucumbido ao lobby do transporte rodoviário.
Para além disso há um joker no baralho que é o feedering o qual se mistura com a carga intra-europeia e que dá sempre cabo da equação ao ter normalmente prioridade em relação às carga intra-europeias.
Esta ideia foi em tempos (há muito tempo) falada, mas como em tudo o que diz respeito ao transporte marítimo, foi levada pelo vento e pelas correntes marítimas para lá do horizonte.