Um universo sem mudança, não existe
A indústria da aviação já experienciou várias crises de diferentes causas, todavia é provável que nenhuma tenha tido o mesmo impacto na redução de número de voos realizados como a atual pandemia resultante do Covid-19.
Perante a situação sanitária que se viveu, os Estados responderam de forma desagregada, com a imposição de medidas unilaterais de redução, ou mesmo proibição, de transporte aéreo internacional de forma a evitar a circulação de pessoas entre jurisdições. A aviação ficou reduzida ao essencial.
Neste cenário de pandemia, a ICAO realizou um excelente trabalho na preparação de guias rápidos para os Estados-Membros, os “Quick reference Guides – QRG’s” com medidas concretas de facilitação sugeridas com a finalidade de ajudar os Estados-Membros a garantir a segurança das suas operações sem impossibilitar a sua realização. Adicionalmente, publicou o Documento número 10144 ”ICAO handbook for CAAs on the Management of Aviation Safety Risks related to Covid-19”, o qual forneceu indicações valiosas para a gestão de risco, tanto a nível nacional como a nível regional e internacional. Por fim, não podemos deixar de referir a publicação dos pacotes de implementação de iniciativas de resposta à pandemia de Covid-19, os “iPacks”, focados em áreas prioritárias de intervenção para os Estados e para a indústria.
Porém, o trabalho realizado não se limitou a ações de gestão de risco; a limitação de danos inclui igualmente a preparação da retoma na aviação. Simultaneamente com a publicação dos iPacks, o Conselho da ICAO criou uma força de intervenção para a recuperação da aviação civil (“CART – Council Aviation Recovery Taskforce”), a qual, no passado dia 5 de outubro, emitiu a mais recente atualização dos dez princípios básicos e vinte recomendações por si publicadas na quarta edição do “Take-off: Guidance for Air Travel through the COVID-19 Public Health Crisis”.
Adicionalmente, a ICAO não só utilizou esta situação para trabalhar na revisão do Anexo 9 da Convenção de Chicago, o anexo dedicado ao tema da facilitação, como preparou o trabalho de fundo para uma revisão profunda do Anexo e material associado. Por fim, importa também referir o trabalho já previamente realizado no âmbito da CAPSCA (“Collaborative Arrangement for the Prevention and Management of Public Health Events in Civil Aviation”) antes de se adivinhar a presente pandemia e que se revelou de enorme utilidade nos últimos dois anos, como, por exemplo, a revisão das recomendações da Organização Mundial de Saúde sobre a desinfeção de aeronaves, aprovadas em 2018 e colocadas a teste em 2019.
Foi, assim, com trabalho feito mas também a preparar o futuro, que a ICAO realizou nos passados dias 12 a 22 de outubro uma conferência de alto nível sobre os efeitos atuais e futuros do Covid-19, com o objetivo de tentar alcançar um consenso global numa abordagem multilateral apoiada pelos Estados para uma recuperação segura e eficiente do transporte aéreo, assim como lançar as bases de uma aviação mais resiliente e sustentável.
A conferência contou com a participação de 129 Estados e 38 organizações internacionais, tendo sido submetidos 158 documentos no total, dos quais resultou um total de 74 ações recomendadas aos Estados e um total de 73 ações atribuídas à ICAO.
Não podemos ignorar que a ICAO, sozinha, não pode resolver os problemas causados à indústria pela situação de pandemia que ainda vivemos e que causou uma demorada reflexão sobre muitos e variados aspetos da nossa vida em sociedade.
A agenda da reunião dividiu-se em dez tópicos, os primeiros cinco dedicados a segurança operacional e os restantes ao tema da facilitação. Será impossível referir aqui a totalidade de temas discutidos e ideias ventiladas nas duas áreas (embora o material se encontre integralmente publicado no sítio da ICAO para consulta, sendo sempre aconselhável a sua visita aos interessados), mas vale a pena focar, na área da segurança operacional, trabalhos na revisão de medidas operacionais relacionadas com a pandemia, múltiplas propostas de medidas de standardização, a iniciativa global para fortalecimento e desenho de um novo quadro regulatório para a atividade de assistência em escala, o ajuste, com o adiamento, das datas de aplicabilidade das SARPS, assim como o reajuste dos programas de formação considerando a situação sofrida pela indústria dos últimos dois anos.
Por outro lado, no campo da facilitação, é de salientar o trabalho realizado no âmbito de medidas concretas relacionadas com o Covid-19, as propostas relativas à cooperação e coordenação entre os vários órgãos nacionais de facilitação e a área específica, mas sempre mais importante, referente à partilha de dados digitais dos passageiros.
Em conclusão, se as áreas de facilitação e segurança operacional foram aquelas que mais foram testadas na atual pandemia, é de salientar que não se discutiu apenas as medidas necessárias a sobreviver o momento, mas ofereceu-se também uma ideia das tendências que podemos assistir na indústria nos próximos anos, e essa é a área que merece maior reflexão no presente momento.
Para essa reflexão, não podemos deixar de salientar a declaração final da ICAO, apresentada no encerramento da conferência, com o título “One vision for Aviation Recovery, Resilience and Sustainability beyond the Global Pandemic”[i]. Sendo uma declaração com catorze pontos, para mim, sobressaem como mais interessantes as seguintes ideias:
- Encorajar a harmonização das estratégias de gestão de risco dos Estados de forma a restaurar a conetividade internacional e apoiar a retoma da economia global enquanto passo crítico para a melhoria da sustentabilidade económica, ambiental e sustentabilidade da aviação;
- Facilitar o transporte aéreo de vacinas, pessoal e equipamento médico para apoio global do combate à pandemia de COVID-19, em especial para países em vias de desenvolvimento;
- Garantir a interoperabilidade e reconhecimento mútuo, e acesso a aplicações digitais, transmissão e validação segura de testes e certificados relativos à pandemia com proteção de dados pessoais;
- Apoiar a criação, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde, de corredores de saúde pública, bilaterais ou multilaterais, em especial com medidas de mitigação de risco;
Finalmente, como último ponto, de forma conclusiva, “Assumimos o compromisso de nos unir para reconstruir o setor da aviação após a pandemia do Covid-19 assim que possível.”
Não podemos ignorar que a ICAO, sozinha, não pode resolver os problemas causados à indústria pela situação de pandemia que ainda vivemos e que causou uma demorada reflexão sobre muitos e variados aspetos da nossa vida em sociedade. É, contudo, essencial refletir um pouco sobre as notas finais da ICAO nos temas de segurança operacional e facilitação, em especial, aquelas referências da ICAO que olham para o futuro e apontam tendências da indústria e, indiretamente, tendências do mundo que aí virá. Estas encerram vários desafios e, quiçá, aparentes contradições. Note-se,
Primeiro desafio: O incremento de informação pessoal dos passageiros referentes à sua saúde pública que circulará quando estes realizarem contratos de transporte e a suficiência das medidas para proteção destes dados.
Adicionaríamos aqui a importância na sensibilização dos operadores quanto à informação que hoje transportam consigo dos seus passageiros. Por muito necessária que aparente ser, a realidade é que hoje os passageiros são obrigados a transferir informação sobre a sua condição médica antes de voar e isso exige redobrados cuidados na manutenção e proteção dessa informação. Adicionalmente, assistimos a um período de aumento de importância dos departamentos de compliance com a privatização da obrigação de recolha de determinadas informações relevantes para processos de investigação criminal. Esta deve ser uma matéria de ponderada análise e sensibilização entre operadores, autoridades e, porque não, passageiros.
Segundo desafio: Em crises semelhantes que venham a ocorrer no futuro, a incapacidade do setor da aviação em manter a sua atividade quando não existem regras coordenadas e harmonizadas sobre permissões de entrada nos vários Estados irá repetir-se se mantida a atual falta de harmonização das regras de saúde.
A aviação pode ter sido pioneira na aprovação do Anexo 9, tendo este servido de forte inspiração à Convenção FAL no transporte marítimo. Contudo, nos últimos dois anos os Estados atuaram de forma unilateral no encerramento das suas fronteiras e na relutância na criação de corredores de transporte. Atendendo à probabilidade de futuras ocorrências semelhantes à atual crise do Covid-19, não é claro quantos operadores podem sobreviver a idênticos comportamentos governamentais.
Terceiro Desafio: Não se conseguirá ultrapassar a presente crise pandémica sem medidas concretas de apoio aos países em vias de desenvolvimento. A globalização da indústria assim o exige.
Quando a ICAO recorda a disponibilidade do transporte aéreo para auxiliar os países em vias de desenvolvimento, está a sublinhar a limitação das medidas tomadas sem uma intervenção profunda a nível global na solução do problema. O transporte aéreo dedica-se, essencialmente, ao transporte de pessoas, e enquanto se continuar a tentar cercar os países com menos recursos para combater a pandemia, esta continuará em curso. Não cabe à aviação resolver os problemas de desigualdade no mundo, mas pode a assimetria social que já existia antes da crise manter-se, agora também numa faceta sanitária de relevo?
Quarto desafio: Corredores aéreos, uma solução temporária que se pretende eternizar
A aviação é paradoxal, já o escrevi várias vezes. A indústria mais global do mundo, profundamente carente de capital, tem importantes limitações às aquisições internacionais e à circulação de capital de investimento. A referência à criação de corredores sanitários nas declarações finais da ICAO recorda que os mesmos, sejam em forma de corredor ou de bolhas, parecem querer ficar na realidade pós pandemia. Devemos recordar-nos que a tendência de criação de blocos regionais já está presente na indústria há alguns anos (a zona de aviação europeia comum, a ASEAN, etc…), mas a criação de corredores, mesmo multilaterais, parece apontar para uma ainda maior fragmentação do espaço aéreo mundial. Se associado à falta de ação no apoio aos países em vias de desenvolvimento, é fácil visualizar o aumento de desigualdade no acesso a transporte aéreo que daí pode resultar.
[i] Consultável na integra no website da ICAO em: https://www.icao.int/Meetings/HLCC2021/Documents/Reference%20Documents/Ministerial_Declaration_en.pdf
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper