Foi este mês publicada uma decisão extremamente interessante do Tribunal de Justiça da União Europeia[1] (o “TJUE”) relativa à responsabilidade contratual das transportadoras aéreas perante os seus passageiros, a qual merece, no meu entender, uma leitura cuidadosa.
Rapidamente sumarizando os factos, o Sr. “DB” viajou de Tel Aviv para Viena a bordo de uma aeronave da Austrian Airlines. Durante o voo, uma cafeteira com café quente caiu do carrinho de refeições e queimou o passageiro. Foram prestados primeiros socorros a bordo da aeronave pela tripulação, contudo, alegam os representantes do passageiro, os cuidados prestados foram inadequados. Consequentemente, apresentam um pedido de indemnização no montante de €10.196,00 (dez mil cento e noventa e seis euros). A ação foi colocada mais de dois anos após os factos, mas antes de terem decorrido três anos da data.
Ocorrendo a bordo de um voo internacional, a Convenção de Montreal de 1999 (a “Convenção”) é aplicável à presente situação[2]. Nos termos da Convenção, a transportadora é responsável até um determinado valor monetário, independentemente de culpa, por acidentes ocorridos a bordo da aeronave após o embarque e antes do desembarque do passageiro. Caso o passageiro demonstre que houve culpa por parte da operadora, os limites indemnizatórios que protegem a operadora já não são aplicáveis.
Relevante para o presente caso, importa referir duas regras importantes da Convenção. Por um lado, a Convenção prevê um limite de prescrição de dois anos (enquanto o direito nacional austríaco prevê um prazo de três) e, por outro lado, uma das mais discutidas normas da Convenção, esta prevê um regime de exclusividade. Ou seja, se a Convenção não se aplicar, não existe lugar a qualquer indemnização ao passageiro ainda que a mesma seja acautelada no direito nacional.
Desta forma, a defesa da operadora aérea assentou no seguinte raciocínio. Primeiro, que se trata de um “acidente” no âmbito da Convenção de Montreal, sendo esta aplicável. Consequentemente, tendo prescrito o direito do passageiro ao abrigo do regime de prescrição da Convenção, não há lugar ao pagamento de uma indemnização ao passageiro no âmbito da Convenção. Terceiro, em resultado da regra de exclusividade da Convenção, deve a operadora aérea ser absolvida independentemente do prazo de prescrição do direito nacional.
Por outro lado, os representantes do passageiro invocaram, em primeiro lugar, que a Austrian Airlines é responsável não só pela desatenção da tripulação que provocou a queda da cafeteira, mas também pela inadequação dos primeiros socorros prestados a bordo da aeronave para o tratamento das queimaduras sofridas. Logo, sendo a causa de pedir os maus socorros prestados a bordo, estes já não devem ser qualificados como “acidente” no âmbito da Convenção ao contrário da queda da cafeteira, pelo que a Convenção não é aplicável. Segundo, que não se aplicando a Convenção, o regime de exclusividade da Convenção é irrelevante, pelo que o passageiro tem direito a basear o seu pedido no direito nacional. De acordo com o direito nacional austríaco, o prazo de prescrição relevante é de três anos, devendo o tribunal austríaco decidir de acordo com o direito nacional, condenando a operadora.
O TJUE teve, assim, que decidir duas questões. Em primeiro lugar, se os factos correspondem a um “acidente” no âmbito da Convenção e, em caso de resposta negativa à primeira questão, se o alcance do regime de exclusividade da Convenção significa que uma ação pode ser tutelada pelo direito nacional quando a Convenção não é aplicável.
…é inevitável a sensação de existência de um desconforto quando o TJUE toma decisões sobre direitos de passageiros.
No que diz respeito à primeira questão, o caso é extremamente parecido com os famosos processos Fishman v. Delta Air Lines, Inc.[3], no qual um tripulante falhou em dar apoio ao passageiro, largando acidentalmente água a ferver sobre ele enquanto o ajudava com uma dor de tímpanos causada pela pressão da cabine, mas também o emblemático Husain vs. Olympic Airways[4], no qual um passageiro morreu na sequência de um ataque de asma após ter pedido para mudar de lugar na aeronave devido ao fumo passivo dos passageiros fumadores e ter visto o pedido recusado. Em ambos os processos, foi considerado que no âmbito da Convenção se considera que ocorreu um acidente quando o dano resulta de uma circunstância inapropriada ou não intencional durante a operação do voo, pelo que um dano que resulta da realização de uma assistência médica imprópria durante o voo, é considerado um acidente e se encontra previsto pela Convenção.
Sem quebrar com a unidade de decisões jurisprudenciais da Convenção, o TJUE considerou, e na nossa opinião bem, que o incidente em causa se qualifica no âmbito de acidente, sendo interpretada toda a situação como um único acidente. Para o efeito, após salientar a causalidade entre as duas situações, assumiu uma interpretação bastante lata da definição de acidente (veja-se o parágrafo 27 da decisão: “de facto, para efeitos da qualificação de «acidente», na aceção do artigo 17.°, n.° 1, da Convenção de Montreal, basta que o acontecimento tenha causado a morte ou a lesão corporal de um passageiro e que tenha ocorrido a bordo da aeronave ou durante as operações de embarque ou desembarque”). Argumentação semelhante encontra-se também em outro famoso acórdão na discussão do conceito de acidente, a decisão Air France vs. Saks[5], que indicou que qualquer acidente é o resultado de uma sucessão de eventos, ainda que, naturalmente, o Tribunal tenha optado por citar uma decisão que já havia previamente tomado no processo C-532/18, acórdão Niki Luftfahrt respeitador do acquis da Convenção.
Por outro lado, no tema da exclusividade de Convenção, o TJUE “esquivou-se” inteiramente ao tema, já que a questão foi colocada apenas em caso de resposta negativa à primeira questão.
Se é de lamentar que o TJUE não tenha tomado posição sobre o regime de exclusividade da Convenção, por outro lado, considerando o historial claramente a pendor dos passageiros que o TJUE tem tomado (em especial nos casos ao abrigo do Regulamento Comunitário (CE) n.º 216/2004), provavelmente terá sido melhor para a transportadora aérea que a situação tenha sido devolvida ao tribunal nacional. Também é de considerar se a questão, que é apresentada pelas partes ao tribunal nacional e não decidida pelo TJUE, não foi preparada de forma consequente a uma resposta negativa à primeira questão, precisamente para evitar uma decisão do TJUE que trouxesse uma interpretação contrária ao acquis jurisprudencial da Convenção.
Ou seja, o TJUE confirmou a aplicação da Convenção ao caso em apreço, o que desde logo permite ao juiz nacional considerar aplicável o prazo de prescrição de dois anos. Contudo, não encerrou o assunto por não determinar a não aplicabilidade do direito nacional em virtude do regime de exclusividade da Convenção. Compreende-se a sensibilidade do tema, mas perdeu-se a oportunidade de esclarecer a natural aplicabilidade de uma norma que, na verdade, já se encontrava aceite pela maioria, se não a totalidade, dos Estados-Membros quando ratificaram inicialmente a Convenção e que, por isso, já, enquanto estados independentes, haviam aceite a conformação do seu ordenamento nacional ao regime da Convenção. In casu, mesmo que a Áustria não fosse um Estado-membro, é parte contratante da Convenção de Montreal, pelo que a subordinação ao regime de exclusividade da Convenção vigora no direito austríaco independentemente da sua condição de estado-membro.
Desta perspetiva, o silêncio do TJUE cria-se dúvida de forma desnecessária.
Duas conclusões: primeiro, independentemente da escolha de apresentar a questão sobre a exclusividade da Convenção pela negativa ter sido ou não propositada, é inevitável a sensação de existência de um desconforto quando o TJUE toma decisões sobre direitos de passageiros. Um óbvio estilhaço da posição extremada que tem tomado na interpretação do Regulamento (EU) n.º 261/2004, por vezes até se substituindo ao legislador.
Em segundo lugar, um lembrete de como a litigância sobre direitos de passageiros merece sempre uma atenção redobrada de forma a evitarem-se as armadilhas da litigância incauta.
[1] Processo C-510/21, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62021CJ0510
[2] Aplicável nos termos do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 2027/97 do Conselho de 9 de outubro de 1997, relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas no transporte de passageiros e respetiva bagagem (JO 1997, L 285, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de maio de 2002 (JO L 140, p. 2)
[3] Ref. 132 F.3d 138, 142 (2d Cir.1998)
[4] Ref. 116 F.Supp.2d 1121 (N.D. Cal., 2000)
[5] Ref. 470 U.S. at 394, 105 S.Ct. 1338
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial