Para o presente artigo gostaria de tomar como ponto de partida um artigo publicado no Diário de Notícias, a 19 de setembro de 2021, que me chamou alguma atenção. Vaticinou Daniel Deusdado: “Só que Alcochete demorará mais de uma década e elevará o patamar da dívida pública portuguesa a níveis ainda mais insustentáveis – a que se juntará a inevitável falência da TAP, cujo único trunfo é a possibilidade de se manter em Lisboa e afastar parte das low-cost para o lado de lá do Tejo”. (sublinhado meu)
Não é a primeira vez que Daniel Deusdado escreve sobre o tema do novo aeroporto e da TAP, sempre com um ponto de vista coerente e de forma meritória. Ao autor, os meus cumprimentos e antecipadas desculpas por, a partir da sua citação, partir na minha própria reflexão. Deixo, à laia de compensação e perdoe-se a publicidade, o link do texto integral convidando à sua leitura[1].
Resulta, da parte sublinhada, a ideia de que a falência da TAP é inevitável, exceto se se conseguir manter em Lisboa e afastar parte das low-cost para o lado de lá do Tejo. Ora, tal noção parece-me, em primeiro lugar, algo ousada, já que, atendendo à situação atual da TAP, i) não se pode afirmar que a falência do operador seja, de todo, inevitável, e ii) se assume que a divisão do tráfego em prejuízo dos outros operadores não só daria uma vantagem económica, como a classifica como decisiva.
…a expansão da capacidade [aeroportuária] tem de ser, em última análise, realizada independentemente da operação da TAP e como resposta às necessidades de tipo de tráfego do país, e não de um único operador.
A ideia de que alguns aeroportos valem mais do que outros, mesmo se integrados num único sistema aeroportuário está perfeitamente correta. Por outro lado, se a vantagem dada por uma possível distribuição em prejuízo de outros operadores é suficiente para salvar a TAP, a ideia não me surge como suficientemente fundamentada, embora, em defesa do autor do artigo, não seja esse o objetivo do mesmo. Diria apenas que, se se pode opinar, a salvação da TAP passa por exercícios lucrativos, como é exigível a qualquer outra empresa na atual realidade neoliberal.
Creio que são dois problemas diferentes que, embora passiveis de harmonização, têm de ser tratados de forma diferente. Em primeiro lugar, o de limite físico das infraestruturas existentes. Se impedem o crescimento do país e se se pretende esse crescimento, então avance-se com a criação de novas infraestruturas ou ampliação das existentes. Caso contrário, aceite-se o que existe como suficiente. Depois, se é necessário, faz sentido pensar que tipo de infraestrutura se quer, um aeroporto para quintas liberdades que sirva operadores como a TAP, ou uma infraestrutura desenhada para operações ponto a ponto, mais apelativa a operadores low cost que operem na Europa. Também aqui os modelos de previsão de volume e tipo de tráfego devem comandar, à frente da vontade política e do soundbyte.
Ou seja, a expansão da capacidade tem de ser, em última análise, realizada independentemente da operação da TAP e como resposta às necessidades de tipo de tráfego do país, e não de um único operador. Obviamente que a existência de um operador de sextas liberdades é condição essencial para a sobrevivência de um aeroporto. Veja-se Schiphol e o aeroporto de Bruxelas como exemplos opostos de um aeroporto desenhado para um operador de sextas liberdades e um aeroporto que, com a mesma capacidade, carece de um operador com essas características. A questão é se o mesmo tem de ser a TAP nos moldes atuais em que a empresa se encontra.
Thierry Ligonnière declarou que a concessionária do atual aeroporto visualiza um aeroporto complementar desenhado para tráfego ponto a ponto[2]. Ou seja, da perspetiva da concessionária, o novo aeroporto deverá ser um edifício que não considere a transferência de passageiros (condição essencial a operações de placa giratória) e manterá a pista pequena impedindo assim operações de maior curso. É essa a perspetiva da operadora do aeroporto e tem de ser enquadrada exclusivamente na perspetiva contratual que governa a relação da Vinci com o Estado Português, ou seja, não representa o interesse público, o que também não faz mal, na medida em que nunca foi apresentado como tal, representa o interesse da concessionária.
…qualquer decisão, por muito mascarada de generalidade, que resulte na exploração exclusiva ou preferencial do aeroporto da Portela pela TAP (…) será, assim, contrária ao direito comunitário
Não sei se o interesse da concessionária e o interesse público são idênticos, pois não tenho a competência técnica para fazer tal avaliação. De qualquer forma, a responsabilidade final está nas mãos dos decisores públicos precisamente por serem esses os guardiões do interesse público e aqueles que são democraticamente eleitos. Mas mais uma vez, a nova infraestrutura, que será propriedade do Estado Português, deve ser feita em consideração da necessidade de conectividade nacional, e não de acordo com a agenda do concessionário.
Por outro lado, um segundo tema diferente é a alocação de operadores entre as infraestruturas. Este é o mais simples, na medida em que não só não há nada a fazer, como o correto é precisamente nada fazer. De acordo com o Regulamento Comunitário (CE) n.º 1008/2008, datado de dia 24 de setembro, que veio substituir nesta matéria o antigo Regulamento n.º 2408/92, são proibidas medidas que, na prática, produzam, ainda que indiretamente, efeitos discriminatórios entre operadores. Por duas razões: primeiro, por ser ilegal, e segundo, porque não há que tentar regular aquilo que foi liberalizado.
No que concerne à legalidade, qualquer decisão que corresponda ao desvio de operadores aéreos para o novo aeroporto complementar ao existente, (uma solução “n+1”) em detrimento da Portela, é discriminatória para os operadores transferidos para a nova infraestrutura. Basicamente, o direito de prestação de serviços entre operadores aéreos comunitários inclui o direito dos operadores escolherem entre diferentes aeroportos pertencentes a um sistema aeroportuário, sem qualquer discriminação na nacionalidade ou identidade das transportadoras aéreas. Adicionalmente, recorde-se, na Decisão 95/259/CE a Comissão estabelece que o princípio da não discriminação é igualmente oponível a qualquer medida que, apesar de não fazer referência explícita à nacionalidade da transportadora ou à sua identidade, produza, ainda que indiretamente, um efeito discriminatório na prática.
Ora, qualquer decisão, por muito mascarada de generalidade, que resulte na exploração exclusiva ou preferencial do aeroporto da Portela pela TAP, quando este aeroporto manterá, tudo indica, a grande vantagem da sua localização geográfica dentro da cidade em relação ao “+1” será, assim, contrária ao direito comunitário na medida da vantagem comercial assim ganha. Diga-se, a título de curiosidade, que em 1998 a TAP, entre outras, apresentou queixa à Comissão contra as autoridades italianas por estas tentarem privilegiar a Alitalia na distribuição de tráfego entre os aeroportos de Linate e de Malpensa, em Milão. Não só a Comissão Europeia concordou com as queixosas como a matéria foi levada ao Tribunal de Justiça da União Europeia o qual confirmou a ilegalidade da prática do governo Italiano.[3]
Em segundo lugar, porque e como decorre do dito, são os operadores que decidem para onde operam e a capacidade é distribuída em igualdade de circunstâncias pelos operadores. Isto significa que o governo tem de aceitar a possibilidade dos operadores ponto a ponto se recusarem a operar exclusivamente para o novo aeroporto, o que, de acordo com as declarações proferidas sobre o tema, é o que acontecerá. Mais uma vez, adivinha-se um processo decisório sem a suficiente participação dos principais interessados, os operadores aéreos.
Se o plano de crescimento da TAP requer uma maior fatia da Portela ao seu serviço, a TAP terá de conquistar esse espaço como todos os outros operadores, nomeadamente através da troca de slots com outros operadores aéreos, o que não se afigura como barato. Poderá também operar, em igualdade concorrencial, com todos os restantes operadores na utilização do “n+1”. O que não se pode esperar ou muito menos exigir, é que as infraestruturas sejam alocadas para uso exclusivo, ou mesmo preferencial, de operadores. No passado, à laia de exemplo, recorde-se como o valor de sobretaxas de estacionamento na Portela aumentaram de forma dramática. Com a aprovação das sobretaxas estrangulou-se a operação dos restantes operadores privados nacionais, essencialmente dedicados ao transporte aéreo não regular, sem benefícios tangíveis para os operadores estatais.
Em conclusão, a maior preocupação de não se confundir o interesse nacional em infraestruturas e o que é o hipotético interesse das operadoras estatais ocorre precisamente nestes momentos. As decisões quanto ao investimento em infraestruturas têm de tomar em consideração o tipo de operações que se pretende fomentar, não operadores específicos. Pode parecer a mesma coisa, mas não é, e erros em infraestruturas, pela própria natureza do objeto em causa, pagam-se sempre caro.
[1] https://www.dn.pt/opiniao/aeroporto-lisboa-e-a-farsa-ambiental-14135600.html
[2] https://eco.sapo.pt/2018/10/09/aeroporto-do-montijo-nao-sera-low-cost-diz-ceo-da-ana/
[3] Veja-se o acórdão do TJUE que correu termos sob o número C-361/98, República Italiana vs. Comissão
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper