Da análise do Pilar Europeu de Direitos Sociais adotado pela Comissão Europeia em 2017 e as respetivas medidas aplicáveis ao transporte aéreo, é de destacar o aviso dado pela Comissão aos operadores aéreos e tripulações no seguinte parágrafo: “garantir que os sistemas de gestão de segurança operacional tomam em consideração todas as formas de emprego e de contratação, incluindo pessoal contratado através de empresas intermediárias e aqueles que trabalham por conta própria.[1]”
É uma constatação óbvia para os operadores mais avisados, mas que não pode ser ignorada por operadores aéreos que pretendam estar no mercado na próxima década (nem por tripulantes que planeiem estar no ativo na próxima década). A gestão de segurança operacional de uma companhia aérea comunitária terá de integrar, mais tarde ou mais cedo, os atuais modelos de gestão das companhias aéreas, os quais já abandonaram as estruturas pré-históricas do mercado não liberalizado pré-1992 e que se adaptam à chamada uberização das relações laborais na forma em que esta se aplica ao transporte aéreo.
Contudo, importa concretizar este novo cenário e a razão pela qual estes forçam mudanças nas relações laborais.
Concretamente, o que se assistiu nos últimos anos na indústria de transporte aéreo, com tendência para se intensificar, corresponde a:
- Aumento no número de operadores com um número plural de Certificados de Operador Aéreo em várias jurisdições.
- Aumento da concorrência entre operadores no mercado interno com aumento da relevância das economias de escala.
- Manutenção das tendências de partilha de recursos entre operadores na medida das vantagens de escala produzidas.
- Aumento da consolidação entre operadores aéreos, o que, por sua vez, conduz ao aumento do número de operadores com um número plural de Certificados de Operador Aéreo.
Como consequência destes fatores, na indústria temos assistido aos seguintes fenómenos nas relações laborais que representam a importação de modelos de uberização da relação laboral, ou seja, cada vez mais focados na decentralização da relação laboral, com o recurso a formas de contratação mais baseadas na contratação de serviços com pagamentos de remuneração mais variáveis e com exigência de maior flexibilidade das tripulações:
- Aumento nas formas de contratação atípicas.
- Mais flexibilidade na contratação de operadores, com aumento de contratos a termo certo e incerto.
- Maior interoperabilidade de tripulações entre duas ou mais companhias, dentro de grupo ou fora de grupo.
- Maior mobilidade das tripulações.
- Aumento dos esquemas de “pay to fly”.
- Aumento dos casos de contratação através de agências temporárias.
O desafio é fazer com que a uberização da relação laboral entre o operador aéreo e os tripulantes não reduza a segurança operacional,
Como consequência destas novas formas de contratação atípicas elencadas, importa refletir sobre os seguintes pontos:
Em primeiro lugar, a relação entre as tripulações e os operadores tem sofrido alterações profundas que requerem a adaptação dos programas de segurança operacional e a própria gestão das tripulações. Em alternativa à contratação direta pela companhia aérea, hoje é comum encontrar em operadores aéreos rentáveis a partilha de vários tipos de situações contratuais entre tripulações, nomeadamente:
- Tripulações diretamente contratadas pelo operador aéreo (situação que se tem vindo a tornar residual por imperativo de concorrência de mercado entre operadores aéreos e a dificuldade, ou impossibilidade, em manter os respetivos custos de pessoal perante a redução das margens da indústria).
- Tripulações disponibilizadas através de empresas de trabalho temporário (sendo que nos referimos a empresas de trabalho temporário qualificáveis como tal nos termos da alínea b) do artigo 3.º da Diretiva 2008/104/CE).
- Tripulações que trabalham como trabalhadores independentes, ou seja, prestadores de serviços às companhias aéreas.
Em segundo lugar, a interoperabilidade e maior mobilidade de tripulações requer uma atenção especial no que diz respeito ao treino e adaptação dos tripulantes aos procedimentos de mais de um operador aéreo, o que por si deve ser considerado a nível de segurança. Por interoperabilidade, dizemos os casos em que uma empresa ou SGPS pretende uniformizar operações entre vários operadores licenciados em vários Estados-Membros, com a respetiva transferência de aeronaves e tripulantes entre ambos de acordo com as necessidades operacionais. Na medida em que os procedimentos e manuais de operações de cada operador são aprovados pela autoridade do respetivo estado de licenciamento, mesmo quando se tratam de vários operadores sob a égide da EASA, é um tema que requer especial cautela.
Em terceiro lugar, a interoperabilidade tem igualmente consequências a nível da determinação da base do operador e, consequentemente, na base do tripulante. No que diz respeito ao tema da base dos tripulantes e efeitos da lei aplicável na base ao tripulante, há três vertentes a considerar, todas, por si, dignas de uma análise mais profunda que este nosso espaço. Além das considerações laborais e de segurança social, a nível de segurança já aqui escrevemos anteriormente sobre o tema das limitações de tempo de voo (Regulamento Comunitário (EU) 83/2014), para o qual remetemos e cujas conclusões se mantêm, a nosso ver, válidas à presente data.
Finalmente, como a EASA recentemente chamou a atenção, a circulação de tripulações entre vários operadores levanta dificuldades aos operadores em garantir o treino de tripulações, em especial os treinos recorrentes (veja-se a norma ORO-FC.230).
Em conclusão, não pretendemos aqui fazer uma defesa do turbo-capitalismo comunitário, ao qual já várias vezes tecemos profundas críticas, chamamos apenas a atenção para o facto de que a expansão das relações de trabalho descentralizadas na economia capitalista global também chega (como poderia não ter chegado) às relações laborais entre operadores aéreos e as suas tripulações, trazendo consigo o inerente risco da ampliação das situações de controlo indireto do processo de trabalho.
O desafio é fazer com que a uberização da relação laboral entre o operador aéreo e os tripulantes não reduza a segurança operacional, da mesma forma que o aumento do recurso à locação esporádica de aeronaves pelos operadores foi sujeito a regulamentação especifica para garantir a manutenção da segurança operacional apesar do menor controlo do operador aéreo locador do serviço.
Para o efeito, as ferramentas de fatores humanos e sistemas de gestão de segurança operacional (vulgo, para os mais distraídos, “SMS”) têm se adaptar de forma a se preparar para os novos desafios colocados aos tripulantes enquanto, simultaneamente, cabe aos tripulantes aceitar a inevitabilidade dos novos modelos de gestão de tripulações sob o risco de serem os únicos disponíveis no final da presente década.
[1] https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/economy-works-people/jobs-growth-and-investment/european-pillar-social-rights_en
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Pipe