Se há sigla que virá a abalar a aviação no futuro próximo é esta: “eMCO”. eMCO significa “extended minimum-crew operations”, e pressupõe a operação de aeronaves em voos comerciais com apenas um tripulante durante a fase de cruzeiro do voo, podendo entrar em vigor algures entre 2027 e 2030.
De uma perspetiva regulatória, nos termos do regulamento EU-OPS, voos IFR ou noturnos com uma tripulação de apenas um membro, apenas são permitidos em aeronaves turboprop com uma configuração máxima operacional de nove ou menos passageiros. Logo, todas as restantes operações comerciais, em voos noturnos ou IFR, com aeronaves que apresentem uma configuração máxima operacional acima de nove passageiros, ou operações comerciais realizadas por aeronaves movidas a jato (ou seja a larga maioria das operações aéreas) requerem dois pilotos nos controlos da aeronave.
O que a implementação do eMCO permitirá é a redução do número de tripulantes durante parte do voo em voos comerciais onde hoje são necessários dois pilotos. A colocação em prática do eMCO irá, naturalmente, reduzir o número de pilotos necessários ao operador e, como seria de esperar, é uma proposta já criticada pelos sindicatos do sector.
Ainda de uma perspetiva regulatória, a implementação do eMCO pela EASA está em curso, havendo já um grupo de trabalho que visa identificar e acautelar os seguintes pontos a fim de avaliar a alteração do regulamento:
- Segurança Operacional na transição de operações MCO (multi-crew) para operações eMCO;
- Identificação de riscos, nomeadamente riscos relativos a situações de incapacitação do piloto, saúde mental, etc.;
- Ajuste das normas operacionais do Eu-Ops;
- Desenvolvimento dos adequados procedimentos operacionais (gestão de carga de trabalho, procedimentos de emergência, comunicações com o controlo de tráfego aéreo);
- Harmonização com as SARPS;
- Revisão dos procedimentos e requisitos de treino das tripulações.
Adicionalmente, no que diz respeito a especificações de certificação de aeronaves com capacidade de operação com eMCO, é de prever que a EASA venha a publicar já um SC na primeira metade do presente ano.
De forma a acautelar a reação social e sindical que o tema obviamente traz, encontra-se em curso um estudo sobre os riscos de implementação do eMCO com vista a identificar a sua aplicabilidade. Torna-se claro dos documentos de trabalho da EASA que, assegurada a segurança operacional, nada há a obstar à implementação do eMCO.
A ausência do debate social e porque é que isso interessa
Sendo um trabalho de investigação por parte da agência de segurança europeia, o estudo em curso é essencialmente de cariz técnico, sem qualquer preocupação social. Como tal é um excelente exemplo daquilo que tem sido o desenvolvimento de políticas no sector aeronáutico de forma descoordenada entre o avanço técnico e o lado social da indústria.
…no caso concreto do eMCO, a questão não é já se queremos a operação de aeronaves com tripulações reduzidas, mas sim a eficácia e profundidade da alteração de normas técnicas para que essa realidade se concretize em prol da competitividade dos operadores aéreos, independentemente das consequências sociais que daí possam advir.
Partindo de uma leitura mais abrangente do período atual, do qual o eMCO é um excelente exemplo, uma das históricas características do liberalismo é a autonomização dos valores de mercado dos valores sociais. Por seu lado, o que encontramos no neoliberalismo atual é uma ainda maior separação, diga-se abandono, de qualquer relação compromissória entre a economia e políticas sociais, sejam estas de empregabilidade ou outras.
Já antes defendi, mormente no tema dos tempos de voos das tripulações, que o papel das agências técnicas (como a EASA) se prende com a dimensão neoliberal que faz parte da própria estrutura da União Europeia e que agrava este processo.
Um dos elementos do estado neoliberal é a sua capacidade de “governo à distância”. Ou seja, um dos elementos de concretização do neoliberalismo apoia-se na existência de múltiplos elementos de administração indireta e autónoma, com capacidade de emanação de regulamentação de cariz meramente técnico, que no seu mandato se encontram separados da esfera social e económica da organização social.
Ora, através de um processo de criação de normas técnicas assistimos nas últimas décadas a uma reconstrução do papel do estado e do ambiente económico e social onde vivemos, que espelha e reforça a imagem e os princípios do mercado concorrencial puro (o que em parte se justifica pela própria conversão da gestão dos serviços de gestão pública através da implementação de modelos empresariais, fruto da promoção de estratégias de competitividade nacional que não fará sentido aqui discutir).
Neste contexto, e no caso concreto do eMCO, a questão não é já se queremos a operação de aeronaves com tripulações reduzidas, mas sim a eficácia e profundidade da alteração de normas técnicas para que essa realidade se concretize em prol da competitividade dos operadores aéreos, independentemente das consequências sociais que daí possam advir.
Se faz sentido que não se coloque a discussão do cariz social dessa medida no espectro decisório da EASA, que enquanto órgão técnico não tem estrutura, competências ou atribuições para discutir os efeitos sociais de uma medida desta dimensão, então a questão devia ser invertida, retirando-se da EASA a capacidade decisória, remetendo-se o seu papel à preparação da análise técnica da exequibilidade da medida (independentemente de ser fácil antecipar o resultado desta, até porque o tema não é, em si, novo).
Pode sempre dizer-se que, como a implementação exige a revisão de um Regulamento Comunitário, existirá sempre um controlo do legislador comunitário do resultado final podendo então inverter-se a forma de discussão do projeto. Contudo, será sempre tarde de mais para reverter a qualificação do tema como questão técnica e de segurança operacional, quando é muito mais do que isso.
O que é (ou era) preciso é inverter, a jusante, o enquadramento do tema, transportando-o para o fórum correto, mas para isso era necessário os interessados estarem atentos.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial
Dr Excelente artigo. Abraço
Questões pertinentes e com muita relevância.