Quando me estava a debater com o tema a apresentar no artigo deste mês não conseguia afastar-me das questões energéticas que a atual conjuntura, particularmente instável e com grande dose de incerteza, faz pairar sobre todos nós.
Em plena (e terrível) crise pandémica já eram por demais evidentes os sinais de uma nova ameaça no horizonte: uma crise energética, agora confirmada e agravada com o conflito militar entre a Rússia e a Ucrânia.
A minha visão enviesada para questões relativas ao transporte de mercadorias perigosas leva-me a pensar os novos desafios logísticos e de segurança que se apresentam face aos cenários emergentes, que terão implicações em muitas das nossas atividades.
A primeira preocupação (e mais premente) tem a ver com a nossa dependência de hidrocarbonetos e de gás natural, cuja entrada em território nacional se dá maioritariamente por via marítima, que ficou ainda mais acentuada com o encerramento do gasoduto Magrebe-Europa, no final do ano passado, fruto do escalar da tensão entre a Argélia e Marrocos.
Mesmo mantendo os abastecimentos provenientes da Argélia, com o aumento da capacidade pelo gasoduto Medgaz (que não passa por Marrocos), não há capacidade para o abastecimento à Península Ibérica por esta via e o recurso ao transporte marítimo passou a ser uma inevitabilidade, ainda que com custos e perca de segurança acrescidos…
Pede-se, por isso, uma visão integrada, contemplando ameaças e oportunidades, pois muitas das vezes o custo maior de uma qualquer infraestrutura não está na sua construção mas sim na sua exploração.
Agora, com o escalar da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o problema do transporte marítimo acentua-se, pois para além Rússia ser um dos mais importantes exportadores de hidrocarbonetos e gás natural por via marítima para terras lusas, a concorrência mundial (em especial por parte de países mais ricos) procurando alternativas no fornecimento de gás natural liquefeito, afigura-se como crítica com a busca de novas origens e o mais que provável aumento do número de navios necessários (e das viagens potencialmente mais longas).
Ainda que não resolva a questão imediata, muito se fala do hidrogénio como alternativa energética (em especial pela necessidade de diminuição da pegada de carbono, a que agora podemos acrescentar a independência energética) e neste caso é importante que os projetos que venham a ser desenvolvidos não esqueçam algo tão básico e fundamental como as questões logísticas que têm que ser garantidas na distribuição capilar. Esta é, de momento, outra das minhas preocupações no domínio da energia, transporte e segurança…
Se o hidrogénio for, efetivamente, uma das fontes principais para a substituição do petróleo na produção de energia, temos desde já que começar a pensar que o seu transporte é mais complexo e perigoso, levando à necessidade de equipamentos cisterna com características especiais.
Logo à partida, é definir se a distribuição será como hidrogénio comprimido ou hidrogénio liquefeito refrigerado, mas dadas as especificidades deste tipo de cisterna (veículos-bateria ou contentores para gás de elementos múltiplos, no caso do hidrogénio comprimido, ou cisternas criogénicas para o caso do hidrogénio liquefeito refrigerado), não será fácil encontrar no mercado (mesmo de aluguer) este tipo de equipamento de transporte.
A indústria metalúrgica e metalomecânica nacional poderia ter aqui um papel importante e potenciar a sua oferta. Para tal, esta questão deveria ser enquadrada numa estratégia nacional ou supranacional que permitisse alguma liderança neste domínio à indústria portuguesa, antes do mercado ser totalmente dominado/absorvido pelos grandes fabricantes mundiais.
Pede-se, por isso, uma visão integrada, contemplando ameaças e oportunidades, pois muitas das vezes o custo maior de uma qualquer infraestrutura não está na sua construção mas sim na sua exploração. Veja-se, por exemplo, o custo associado à construção das estradas no primeiro plano rodoviário nacional. A solução mais barata (e eventualmente possível) baseou os traçados na utilização das curvas de nível (as “famosas” estradas aos “ss”), em lugar de proceder à edificação de pontes e viadutos ou à realização de túneis, que permitiriam linearizar os vários troços. Desta forma, ainda hoje, apesar da proximidade em linha reta, têm que ser percorridas muito maiores distâncias (com consequente custo energético) e tem que ser consumido mais tempo, o que se traduz não só em ineficiência como numa elevada ineficácia. Ou seja, em alguns casos, ainda hoje se paga adicionalmente pela solução “barata” encontrada há sessenta anos.
A minha terceira questão/preocupação relacionada com a trilogia energia/transportes/segurança prende-se com as soluções encontradas para a mobilidade elétrica, onde as pilhas e baterias de lítio têm ganho destaque.
Uma vez mais, olhando para o que pode parecer menos óbvio, e esquecendo por momentos a sua utilização, preocupa-me o transporte deste tipo de veículos (do segway ao automóvel elétrico, passando pelas trotinetes, bicicletas, motas, etc.) pelos riscos associados e pelo elevado desconhecimento sobre a melhor atuação em caso de acidente.
É certo que muito se fala sobre pilhas e baterias de lítio (o que nem sempre quer dizer que se fale corretamente) e há o risco de extrapolações perigosas a partir de casos particulares.
Mesmo assim, e porque os acidentes acontecem (veja-se o caso do navio Felicity Ace, com quase 4000 automóveis a bordo), as pilhas e baterias construídas de acordo com o Manual de Ensaios e de Critérios das Nações Unidas devem ser consideradas seguras, a menos que exista algum fator externo (por exemplo, esmagamento ou uma ação mecânica que implique deformação, ou alguma fonte de calor) .
Atender à envolvente, identificar os perigos, conhecer as regras e aplicar as melhores práticas permite-nos controlar o risco.
Seguramente.
JOÃO CEZÍLIA
Especialista em transporte de mercadorias perigosas
Obrigada João pelo seu testemunho, e por lançar o desafio a metalúrgica nacional…uma especie de “call to ation”.