Foi recentemente publicado o Projeto de Lei número 360/XV/1.ª[1], o qual visa a proibição de “voos fantasma de ou para Portugal”. Infelizmente trata-se de uma proposta que só pode ser lida como um panfleto político sem qualquer interesse real.
Digo infelizmente, não porque haja qualquer necessidade de regular seriamente “voos fantasma”; digo-o por duas razões, em primeiro lugar, a falta de qualidade do projeto é tal que roça o desprezo por uma indústria que foi obrigada a despedir funcionários num período de crise profunda, e em segundo lugar, por não ser mais que uma demonstração de como o ativismo ecológico, quando sem fundamento, tira seriedade ao que é um tema que devia estar no topo de todas as agendas, assim protelando decisões que realmente interessam. E quais são essas? Aquelas que são concretizáveis e eficientes.
Deixo à opinião de cada um o que considerar do diploma, convido a que sigam o link e avaliem o mesmo enquanto cidadãos, mas tenho para mim o seguinte: este diploma tem apenas seis artigos e mesmo assim apresenta uma mão cheia de trapalhadas.
Em primeiro lugar, o diploma em causa prevê no primeiro artigo a proibição de voos “fantasma” com origem ou destino a Portugal. Existem variadas classificações de voo pela ICAO, mas não existe qualquer definição de voos fantasma. Sem qualquer problema, não existindo tal categoria de voos, a proposta avança com uma definição do mesmo. Será um voo fantasma o “voo realizado sem passageiros ou com ocupação abaixo de 10% dos lugares disponíveis”. Infelizmente, esta definição é desastrosa e a primeira trapalhada do projeto. Aplicada a letra da lei, que proíbe estes voos, ficam desde logo proibidos todos os voos sem passageiros. Fica a questão dos voos de posicionamento de aeronaves, já que não prevê a proposta de lei que esta apenas se aplique a voos comerciais. Assim, os operadores aéreos ficam proibidos de posicionar aeronaves. Tão só e apenas. Infelizmente o posicionamento de aeronaves é essencial na gestão de uma companhia aérea, desde logo, para garantir a sua manutenção e consequente segurança.
Mas também são proibidos – segunda trapalhada – voos com ocupação abaixo dos 10% dos lugares disponíveis. Fica a questão de saber se as companhias aéreas ficam responsáveis por indemnizar e prestar assistência aos passageiros que compraram bilhete em tais voos e comparecerem para voar. Provavelmente sim, por dois motivos, em primeiro lugar, porque as operadoras a isso são legalmente obrigadas. O primado comunitário significa que este projeto, se aprovado, não afastaria a aplicação do Regulamento (CE) n.º 261/2004 aos passageiros que compareceram para o dito “voo fantasma”, assim como, já agora, a Convenção de Montreal quanto ao ressarcimento dos restantes danos, pois sendo a Convenção um tratado internacional ratificado por Portugal, convém respeitar e cumprir.
O segundo motivo, aventuramo-nos a imaginar, será por razoes ideológicas. Instalou-se a ideia de punir companhias aéreas por existirem mas não eleitores por voarem nas aeronaves dessas companhias aéreas por muito frívola que seja a razão da viagem. Portanto, se uma companhia aérea vende uma passagem aérea num voo que mais tarde veio a ser um “voo fantasma”, proíbe-se o voo e a companhia aérea que se entenda com o passageiro. É a companhia aérea que é ambientalmente irresponsável, quer transporte veraneantes ou realize voos de emergência médica. Os passageiros e as razões que ow levaram a voar, esses estão isentos de moralidades ecológicas.
Fica também a curiosidade quanto à aplicação desta limitação a voos que tradicionalmente têm um baixo load factor numa perna tendo um elevado load factor no regresso. Proibindo a primeira perna, o que acontece aos passageiros da segunda perna? Mais importante, o que sucede aos voos realizados ao abrigo de Obrigações de Serviço Público? Note-se que a questão das obrigações de serviço público são especialmente relevantes, não só porque os operadores voam com uma regularidade contratualmente acordada com o Estado, mas também porque são voos reputados de interesse público que não são economicamente viáveis (por isso estarem sujeitos a obrigações de serviço público), ou seja, a probabilidade de terem uma baixa ocupação é precisamente o que justifica a instauração da obrigação de serviço público.
Veja-se um exemplo prático,: a SATA opera o voo para a ilha do Corvo com uma aeronave de 37 passageiros. Logo, se apenas dois residentes do Corvo quisessem voar para casa, não poderiam, era um “voo fantasma” e o voo era proibido pois os dois passageiros representam menos de 10% da capacidade da aeronave. Por outro lado, se dois turistas milionários quiserem visitar a ilha do Corvo no seu jato privado com capacidade de 19 lugares (e recorde-se que 19 lugares é relevante para efeitos de certificação de aeronaves e a lotação máxima habitualmente encontrada em jatos privados) já podem, pois os dois passageiros encontram-se acima dos 10% de lotação da aeronave.
A terceira infelicidade é também fácil de identificar, e está na alínea seguinte, onde a suposta lei define o que é um slot aeroportuário. Em primeiro lugar, um “slot” é uma faixa horária – lamentável legislador que recorre a estrangeirismos quando sentado na Assembleia da República, imagem que merece também ela reflexão – e, informa-se o incauto legislador, as faixas horárias já se encontram definidas no direito nacional e comunitário. Leia-se o artigo 2.º do Regulamento (CEE) n.º 95/93 de 18 de janeiro: “Faixa horária – a hora prevista de chegada ou de partida disponível ou atribuída a um movimento de aeronave numa data específica num aeroporto coordenado nos termos do presente regulamento”. Ou seja, o projeto cria uma definição nova de faixa horária, apesar de não saber como se chama uma faixa horária, e, inadvertidamente, cria uma definição circular. Assim, nos termos do projeto, uma “slot aeroportuária” é “a atribuição de faixas horárias específicas de aterragem e descolagem às companhias aéreas que operam em determinado aeroporto”. Ora, uma faixa horária que é a atribuição de uma faixa horária não é nada mais do que uma trapalhada sem nexo.
Mas a questão de fundo é muito mais grave. A quarta infelicidade do diploma é a total desconexão entre voos e faixas horárias. Houvesse diligência na preparação deste projeto e rapidamente a bancada parlamentar em causa ter-se-ia apercebido que apenas alguns aeroportos têm faixas horárias, e outros apenas as têm sazonalmente. Voos são uma coisa, faixas horárias são outras. É por demais óbvio que este projeto de lei quer versar sobre faixas horárias e não teve qualquer preocupação subjacente em compreender, sequer, como funciona a atribuição de faixas horárias e que apenas alguns aeroportos são coordenados.
Aqui chegados, entra a pedra de toque do regime, o artigo 4.º do projeto apresenta a seguinte redação: “As companhias aéreas que não realizem os voos fantasma não perdem direitos aos slots aeroportuários por esse motivo”. Parece-me legitimo perguntar qual a necessidade de proibir voos? Se na exposição de motivos é cabalmente apresentado que o objetivo é impedir a realização de voos vazios por operadores que visam apenas cumprir com a regra de utilização mínima de faixas horárias, não bastaria garantir que o direito às faixas horárias não se perde pela não realização de voos? Seria mais que suficiente para se alcançar o objetivo anunciado, a proibição de voos torna-se supérflua.
Como quinta infelicidade, basta apenas dizer que tudo isto é irrelevante porque tanto a proibição de voos como o congelamento de direitos históricos sobre faixas horárias, através de lei formal adotada pelo Parlamento Nacional não tem o mínimo cabimento já que as competências nacionais nesta matéria foram há muito delegadas na União Europeia. Proibir voos, mais do que totalmente injustificado para o objetivo pretendido, é ignorar que Portugal ainda é (e continuará a ser até decisão em contrário) um estado-membro da União Europeia, no qual existe um mercado comum e no qual desde 1992 existe um mercado único de aviação, no âmbito do qual todos os operadores comunitários são livres de operar qualquer destino no espaço europeu, com as frequências e tarifas que bem entenderem (sujeito a regras concorrenciais), pelo que a proibição de voos comerciais – sejam eles quais forem e independentemente do número de passageiros a bordo – é contrária ao Regulamento (CE) n.º 1008/2008, uma violação da liberdade de estabelecimento e também uma violação da liberdade de prestação de serviços. Dois direitos fundamentais europeus de uma só penada. Por outro lado, “garantir” faixas horárias para operadores viola o Regulamento Comunitário (CE) n.º 95/93 e cria barreiras de acesso ao mercado com claras consequências concorrenciais.
Quando se preenche o espaço de discussão, o qual não é ilimitadamente elástico, com propostas irreais ou de lavagem verde (…), perde-se espaço necessário à discussão e adoção de medidas que são realmente diferenciadoras e consequentemente necessárias.
Mas mais, porque há sempre mais, esquece-se o legislador que também existem voos para lá da aviação comercial. Existe aviação geral, existe carga e existe trabalho aéreo, só como exemplos. Todos abrangidos por uma proibição de realizar voos que, como se indicou, é totalmente desnecessária para o fim pretendido.
Note-se, como momento final, que de um partido político com representação no Parlamento Europeu não se pode aceitar um projeto de lei totalmente desligado da regulamentação comunitária e inconsciente da discussão em concreto sobre a revisão do regulamento sobre atribuição de faixas horárias que tem, entre outros, precisamente um ponto de discussão sobre a flexibilização da regra de obrigatoriedade de uso de faixas horárias.
Em suma, como diploma legal, este projeto pouco ou nenhum sentido faz. Falemos então de uma perspetiva de posicionamento político. Poderá valer como declaração de intenções? Manifesto político? Se é esse o objetivo, então é um erro e padece do mesmo pecado capital que outras iniciativas, algumas infelizmente aprovadas, como a taxa de carbono.
Em primeiro lugar, porque é errado apresentar publicamente um projeto de tão fraca qualidade. A incompetência não conquista, pelo contrário, alheia, e dá razão aos críticos de políticas ambientais ou de sustentabilidade na medida em que esta proposta não é exequível.
Em segundo lugar, o desenvolvimento de políticas públicas não é, como gostaríamos de imaginar, realizado através de um mapeamento cartesiano e cuidado de temas a discutir e regular. A imagem correta na criação de políticas públicas assemelha-se a uma floresta tropical onde cada árvore tenta crescer sobre as restantes para recolher luz. Da mesma forma, os temas políticos lutam por espaço na agenda pública. Quando se preenche o espaço de discussão, o qual não é ilimitadamente elástico, com propostas irreais ou de lavagem verde (o processo de camuflar sob uma bandeira ambiental políticas que não têm efeitos ambientais positivos), perde-se espaço necessário à discussão e adoção de medidas que são realmente diferenciadoras e consequentemente necessárias.
Um exemplo claro do que dizemos é a aprovação da taxa de carbono pelo atual governo. A minha oposição à taxa de carbono sobre viagens aéreas e marítimas, a qual é pública, assenta em duas razões simples. Primeiro, não é uma taxa, e segundo, não incide sobre o carbono. É um imposto turístico lavado de verde que retira espaço público à aprovação de verdadeiras medidas ambientais.
Se é nisto que consiste a agenda verde da política nacional, assuma-se então que estamos a viver A Grande Farra final e que ninguém quer, ou sabe, tomar medidas significativas.
[1] Disponível em:
https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/15/01/104/2022-10-19/42?pgs=42-43&org=PLC
Consultado a 15 de novembro de 2022.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial