Portugal parece capaz do melhor e do pior – e muitas vezes ao mesmo tempo. O atual enquadramento para os navios vive nessa dualidade.
Por um lado, temos o Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR). O MAR foi criado pelo Decreto-Lei n.º 96/89, de 28 de março, como um segundo registo de navios em Portugal, que convive com o menos expressivo registo convencional.
O MAR assumiu as funções de dinamização da marinha de comércio e de atração de novos armadores e navios, oferecendo custos competitivos e garantindo navios com elevados níveis de qualidade. Esses objetivos, pela intervenção de diferentes forças, foram amplamente atingidos.
O MAR foi-se afirmando como uma solução vendável a proprietários e financiadores. O enquadramento jurídico do MAR foi evoluindo para dar resposta às preocupações desses agentes.
Continuamos a precisar de um sistema coerente para o direito marítimo, que ainda não conseguimos ver no horizonte.
Assim, hoje o regime do MAR espelha a realidade da construção e compra e venda dos navios, propondo um regime flexível que acomoda a existência de intervenientes de diferentes jurisdições, que emitem documentos em diferentes línguas, em países fisicamente distantes, com fusos horários e dias úteis nem sempre coincidentes com os nossos. Em alguns pontos a técnica legislativa pode ser questionada – mas o desejo de dar resposta às necessidades práticas, não.
As preocupações, contudo, não são apenas logísticas. O regime do MAR toca cada vez mais em matérias tão importantes quanto a regulação da hipoteca. Nesse âmbito, para além de permitir a escolha da lei aplicável, o regime do MAR afasta uma das possibilidades de expurgação previstas no Código Civil e possibilita a atribuição ao credor hipotecário de direito de disposição sobre o navio.
Por outro lado, a evolução extravasou o regime próprio do MAR. Em 2009, por força das preocupações dos financiadores dos navios, o artigo 578.º do Código Comercial foi alterado para rever a lista dos privilégios creditórios de forma favorável aos financiadores.
No entanto, há vários outros pontos de contacto entre o ordenamento jurídico português e os navios registados no MAR. Pensamos, desde logo, na articulação do regime do MAR com a regulamentação geral relativa ao registo comercial de navios e, subsidiariamente, com o registo predial. Pensamos também na aplicação subsidiária aos navios registados no MAR do regime geral do registo temporário de navios. A tudo isto se somam as complicadas questões de direito internacional privado a que as operações de um registo internacional estão expostas e que apelam, entre outros, ao estatuto legal do navio.
Acontece que esses regimes – porque são datados e fragmentados – criam incerteza para o aplicador da lei, especialmente quando em confronto com as especificidades do MAR em matérias tão basilares como a das garantias reais. O problema enquadra-se numa questão maior, que se prende com o histórico abandono do direito marítimo e com a inexistência de uma regulamentação atualizada, coerente e sistematizada que permita a confiança desejada aos operadores.
Assim, e em suma, temos que continuar a caminhar. Podemos regozijar-nos com os sucessos do MAR, mas sempre cientes que a realidade vai testar os limites das soluções criadas e exigir respostas em caso de litígios. Continuamos a precisar de um sistema coerente para o direito marítimo, que ainda não conseguimos ver no horizonte.
MARIA JOÃO DIAS
Advogada Sócia da JPAB/ Societário e M&A