Num mundo marcado por rivalidades estratégicas, crescentes conflitos e ameaças de tarifas aduaneiras, cadeias de abastecimento voláteis e reconfiguração acelerada dos fluxos comerciais, os portos marítimos estão a transformar-se, de forma inevitável, em peças centrais do novo xadrez geopolítico global.
De infraestruturas dedicadas essencialmente à eficiência económica e à movimentação de mercadorias, passaram a ser considerados ativos estratégicos de interesse nacional, alvos de disputas silenciosas e palco de tensões entre interesses comerciais, militares e diplomáticos.
Esta realidade é o pano de fundo da aguardada nova reflexão de Theo Notteboom e Hercules Haralambides no capítulo “Geopolitics on Steroids: Opportunity or Mayhem for Seaports?”, a publicar no livro “Infrastructure Grids and Networks: The Challenges Ahead, amid Security and Efficiency”.
Com um título provocador, o texto promete lançar uma nova luz sobre um fenómeno que há muito deixou de ser periférico: a politização dos portos e a transformação das infraestruturas logísticas em instrumentos de influência e confronto estratégico.
A globalização dos últimos 30 anos promoveu uma arquitetura portuária orientada pela eficiência, pela escala e pela interligação com cadeias logísticas globais just in time. No entanto, os últimos cinco anos revelaram um novo padrão de pensamento: a busca por segurança e previsibilidade passou a ser tão ou mais valorizada do que a eficiência.
Com isso, emergem novas prioridades:
- Redundância em vez de centralização;
- Maiores stocks em vez de just in time;
- Ligações com fornecedores, capitais, portos e navios “amigos” e não “inimigos”;
- Capacidade de controlo territorial sobre os fluxos;
- Valorização das localizações estratégicas com ligação a hinterlands críticos ou a corredores energéticos.
Os portos deixaram de ser neutros. Tornaram-se pontos nevrálgicos de políticas industriais, plataformas de controlo comercial e, em alguns casos, bases logísticas de apoio a operações militares.
Esta mudança de paradigma tem implicações para governos, operadores portuários, investidores e armadores.
A intensificação da geopolítica afeta os portos de múltiplas formas. Entre os principais riscos, destacam-se:
- Apropriação estratégica de portos por potências extrarregionais — seja através de fornecimento e investimentos em infraestruturas críticas, seja por concessões de longo prazo que colocam em causa a autonomia política dos Estados recetores;
- Politização das decisões de tráfego e escala — com companhias marítimas a redirecionar rotas com base em considerações políticas e sanções comerciais, mais do que em critérios de eficiência;
- Conflitos armados ou bloqueios navais — como os verificados no Mar Vermelho, no Mar Negro ou no Estreito de Taiwan, que podem colocar em risco portos em áreas de influência ou de tensão;
- Cibersegurança e vulnerabilidades digitais, das redes e de equipamentos — num contexto em que os sistemas de gestão portuária estão cada vez mais integrados e expostos a ataques com origem em interesses estatais;
- Dependência de cadeias logísticas controladas por alianças marítimas ou operadores com interesses estatais opacos — o que limita a autonomia de decisão dos portos e compromete a resiliência nacional.
Por outro lado, a geopolítica em modo “esteroides” também pode ser uma janela de oportunidade para determinados portos, especialmente aqueles com
- Localizações geoestratégicas privilegiadas, como encruzilhadas de corredores energéticos, nós logísticos de nova geração ou acessos ao Ártico;
- Capacidade de atrair investimentos para reforço de resiliência, como fundos soberanos ou programas de reconversão energética em zonas portuárias;
- Aptidão para se posicionar como hubs seguros e previsíveis, numa era em que a previsibilidade passou a ser escassa.
Portos que consigam demonstrar solidez institucional, estabilidade regulatória e interoperabilidade digital terão maiores probabilidades de se tornarem “refúgios logísticos” num sistema global cada vez mais fragmentado e multipolar.
Os portos deixaram de ser neutros. Tornaram-se pontos nevrálgicos de políticas industriais, plataformas de controlo comercial e, em alguns casos, bases logísticas de apoio a operações militares.
Um dos fenómenos mais significativos deste novo contexto é a corrida à criação de corredores estratégicos alternativos ao eixo sino-globalizado tradicional. O Corredor Índia-Médio Oriente-Europa, a Rota do Ártico, ou o Corredor Trans-Caspiano são exemplos de iniciativas que pretendem escapar ao domínio de certos corredores dominados por potências rivais.
Os portos deixaram de ser apenas os pontos finais das rotas: passaram a ser ativos cuja posse ou alinhamento pode determinar o sucesso ou o fracasso desses corredores. Mais do que nunca, a política externa, a diplomacia económica e a segurança marítima cruzam-se no desenho das rotas de comércio e energia.
É neste quadro de elevada complexidade que se insere o novo capítulo de Notteboom e Haralambides, dois dos mais reconhecidos especialistas mundiais em portos e economia marítima. Muito se espera que o texto traga:
- Uma sistematização atualizada dos riscos e oportunidades geopolíticas para os portos;
- Casos concretos de portos afetados pela nova geoestratégia marítima;
- Recomendações práticas para gestores portuários, decisores políticos e investidores institucionaiss
Num tempo em que o comércio marítimo deixou de ser apenas uma função económica e passou a ser uma função política e estratégica, este tipo de reflexão é muito importante.
Com efeito, compreender a geopolítica tornou-se uma competência crítica para quem dirige ou regula portos — e esta nova obra poderá ajudar a construir esse novo mapa mental.
VÍTOR CALDEIRINHA