“A crisis is a terrible thing to waste”
Paul Romer, Economista
Um dos efeitos da crise existencial provocada pela ameaça russa à ordem mundial com a invasão da Ucrânia é forçar a revisão da política energética da Europa. A razão é óbvia: segundo dados da Eurostat, a Rússia é o principal fornecedor de energia à UE, com uma quota de 27% no petróleo bruto, 41% no gás natural e 47% no carvão. A Alemanha é particularmente dependente da Rússia, a quem compra 35% das suas necessidades de petróleo, 55% do gás e 50% do carvão.
Em 2021 a UE importou 155 bcm (mil milhões de metros cúbicos) de gás natural da Rússia, equivalente a 112 milhões de toneladas e 900 TWh, o que representa cerca de 40% do consumo da energia proveniente do gás.
A Agência Internacional de Energia (IEA) divulgou recentemente um plano para reduzir a dependência da UE do gás russo (“10 Point Plan to reduce EU’s reliance on Russian Natural Gas”), que é representado sumariamente no diagrama junto.
Este plano pretende reduzir as importações da Rússia em mais de um terço dentro de um ano, sem contrariar o Pacto Verde Europeu e o programa “Fit for 55”. Uma das principais medidas é a importação de GNL de outras fontes, estimando-se que é possível substituir 20 bcm de gás russo dentro de um ano e 60 bcm a médio prazo.
A substituição do gás russo por GNL de várias origens coloca Sines numa posição privilegiada por três razões: i) é o porto europeu mais próximo da produção de gás no Atlântico, ii) é um porto sem constrangimentos, quer marítimos quer terrestres, e iii) é mais económico transportar gás por gasoduto do que por navio, em condições equiparáveis (o que não é sempre o caso, como veremos).
O mercado de GNL
O gás natural é uma mistura de hidrocarbonetos encontrada em jazigos subterrâneos, podendo estar, ou não, associado à presença de petróleo bruto. É constituído principalmente (90% a 95%) por metano, um hidrocarboneto alifático, saturado, de um só átomo de carbono na molécula, cujo símbolo químico é CH4. O metano tem um poder calorífico de 13,600 Kcal/Kg, contra 10,280 Kcal/Kg do HFO (“heavy fuel oil”) utilizado na propulsão de navios. No seu estado liquefeito, em que é transportado por via marítima, o gás natural tem uma densidade de cerca de 0.45 e é designado por GNL (gás natural liquefeito) ou, em inglês, LNG (liquefied natural gas).
A substituição do gás russo por GNL de várias origens coloca Sines numa posição privilegiada por três razões: i) é o porto europeu mais próximo da produção de gás no Atlântico, ii) é um porto sem constrangimentos, quer marítimos quer terrestres, e iii) é mais económico transportar gás por gasoduto do que por navio, em condições equiparáveis…
O transporte marítimo de gás natural no estado liquefeito é uma das grandes conquistas da engenharia naval, com uma larga quota-parte na revolução do mercado de energia a que temos vindo a assistir. Para tornar viável o transporte de gás natural é necessário liquefazê-lo, assim aumentando a sua densidade em cerca de seiscentas vezes. Por razões de segurança, a liquefação é conseguida por arrefecimento à temperatura de ebulição do metano de 161ºC negativos e não por compressão. O desafio tecnológico daí resultante só foi ultrapassado nos anos cinquenta do século passado pela equipa de projeto da J.J. Henry, sediada em Nova Iorque, com quem tive o privilégio de trabalhar alguns anos mais tarde. O primeiro navio de transporte de GNL, o “Methane Pioneer”, lançado em 1958, marca o início da revolução do gás natural.
A indústria do GNL tem as suas raízes na Europa. A primeira carga comercial foi importada da Argélia pela British Gas, em outubro de 1964. No ano seguinte, a França juntou-se à Grã-Bretanha e até 1970 os dois países foram os únicos importadores de GNL. Seguiram-se a Espanha, em 1970, e a Itália, em 1971. Em meados dos anos 70, o Japão entrou no mercado, tomando-se rapidamente no maior importador mundial de GNL.
A cadeia de valor do GNL compreende uma unidade de produção e de liquefação na origem, designada por “trem”, e um terminal de receção e regaseificação no destino. Tipicamente, o investimento num trem é efetuado com a garantia da compra do gás pelo período de amortização do investimento. De igual modo, a garantia do transporte marítimo do GNL permite ao armador financiar a construção de um ou mais navios metaneiros sem risco comercial. À medida que foram terminando os contratos mais antigos, passou a haver navios metaneiros disponíveis no mercado spot, tornando o mercado mais flexível.
Como se sabe, o futuro do mercado de GNL está condicionado pela aposta nas energias renováveis. Isso não impede que a Alemanha tenha anunciado recentemente a construção de dois terminais de GNL com um período de vida útil de, pelo menos, vinte anos.
A capacidade máxima de um terminal de GNL é determinada por vários fatores: a capacidade de receção de navios metaneiros e a sua rotatividade, capacidade de armazenagem intermédia (de modo a poder manter uma emissão de GN continua nos períodos entre navios), capacidade de emissão/regaseificação e, finalmente, mas igualmente importante, a capacidade da rede de transporte para levar o GN até aos pontos de consumo (gasodutos de adequada capacidade e estações de compressão estrategicamente localizadas ao longo da rede).
A rede ibérica de GNL
Espanha foi o terceiro país europeu, depois da Grã-Bretanha e França, a apostar no GNL, a partir de 1970. Hoje tem seis terminais ativos, com uma capacidade nominal de 61 bcm/ano. Um sétimo terminal, El Musel, localizado em Gijon, Astúrias, foi construído em 2012 mas nunca foi ativado. Atualmente está a ser convertido para fornecimento de LNG para navios. A Espanha lidera a Europa na capacidade de receção de GNL, seguida pelo Reino Unido e pela França.
A introdução de gás natural em Portugal só teve lugar em 1997, através do gasoduto do Magreb, com origem na Argélia e passagem por Marrocos e Espanha. Em 1998, o governo português decidiu, por razões estratégicas e económicas, construir um terminal de receção de GNL em Sines, tendo contratado o fornecimento de 1 bcm por ano de gás da Nigéria, por um período de 20 anos, com início em 2003. A importação de GNL por Sines cresceu a uma média de 7,5% entre 2003 e 2018 e de 13,5% entre 2018 e 2021, atingindo um volume de 5,7 bcm, ou 4,1 milhões de toneladas, com as origens indicadas no diagrama junto.
As capacidades nominais dos terminais ibéricos de GNL são indicadas no quadro junto.
Terminal |
bcm/ano |
% |
Sines | 6,0 | 9,0 |
Barcelona | 17,4 | 26,0 |
Huelva | 12,0 | 18,0 |
Cartagena | 12,0 | 18,0 |
Sagunto | 8,8 | 13,2 |
Bilbao | 7,0 | 10,5 |
Mugardos | 3,6 | 5,4 |
Total | 66,8 | 100 |
Oportunidade para Sines
O volume atualmente importado por Sines, cerca de 6 bcm/ano, está muito perto da sua máxima capacidade, não por incapacidade do terminal de GNL, mas pela limitação da rede de transporte, a qual poderia ser ultrapassada com a construção de uma estação de compressão (prevista para a zona do Carregado). Por comparação, Espanha tem 20 estações de compressão para uma área que é cerca de 5 vezes superior à de Portugal.
Para Sines poder contribuir para o esperado aumento da importação de GNL pela UE, estimado em 60 bcm/ano a médio prazo, é necessário, para além do investimento nas infraestruturas em Portugal, assegurar a interligação entre Espanha e França, que tem sido recusada pela segunda. Contudo, começa a haver sinais por parte da UE que este projeto possa agora avançar.
Num cenário otimista, a Península Ibérica poderá aumentar a sua produção em 30 bcm/ano e Sines captar 20% desse aumento, assim duplicando a sua capacidade para 12 bcm/ano.
JORGE D’ ALMEIDA
Presidente da Direção
Comunidade Portuária e Logística de Sines