O diferendo entre carregadores e transitários, de um lado, e companhias de navegação, do outro, preocupa a Comunidade Portuária de Leixões (CPDL), que decidiu escrever também ao Governo.
Em causa estão as críticas de carregadores e transitários, os “donos” das cargas”, às políticas de preços (e não só) dos operadores de transporte marítimo de contentores em tempos de pandemia. A polémica é global e por cá foi assumida, conjuntamente, pelo CPC e pela APAT.
As duas organizações escreveram ao Governo a pedir a sua influência junto do Bruxelas para que a Comissão investigue as práticas alegadamente ilegais, que já terão originado iniciativas semelhantes dos EUA à índia.
E porque pode haver cargas sem navios, mas não há navios sem cargas, a Comunidade Portuária de Leixões, preocupada com o futuro dos investimentos no porto nortenho, decidiu escrever também ao Governo – aos ministros dos Negócios Estrangeiros, da Economia, das Infraestruturas e do Ambiente – para colocar o tema em perspectiva, por um lado, e para alertar para a necessidade de haver alguma reflexão sobre a regulação do transporte marítimo, por outro.
Na carta, a que o TRANSPORTES & NEGÓCIOS teve acesso, a Comunidade Portuária, sem abordar a questão das alegadas práticas ilegais dos armadores, lembra o óbvio, isto é, que as oscilações de preços – e, logo, de custos – resultam das leis da oferta e da procura, pelo que se agora os preços dos fretes estão altos, em beneficio dos armadores, já houve tempos em que estiveram baixos, com os armadores a acumularem prejuízos milionários.
Mas subsistem motivações de preocupação, e daí o apelo da CPDL aos membros do Executivo para uma reflexão conjunta. Não apenas sobre os impactes do eventual (des)equilíbrio de forças entre donos das cargas e transportadores, mas também sobre os reflexos da evolução do modelo de negócio das companhias de navegação, cada vez mais voltadas para terra e integradoras na cadeia logística, numa economia periférica como a portuguesa, e desde logo nos seus portos.
A missiva termina também com um apelo ao Governo, num momento em que Portugal ocupa a presidência do Conselho:
“O Mercado do Transporte Marítimo está aberto; hoje, a Oferta posicionou-se, a Procura nem por isso; Portugal tem uma oportunidade para tentar equilibrar as duas Partes, quer a nível Nacional quer a nível Europeu. A Presidência Europeia é essa oportunidade!”
Pela sua importância, reproduzimos aqui na integra a missiva da Comunidade Portuária de Leixões:
Senhores
Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros
Ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital
Ministro das Infraestruturas e da Habitação
Ministro do Ambiente e da Acção Climática
Excelências,
Num comunicado conjunto da APAT – Associação dos Transitários de Portugal e do CPC – Conselho Português dos Carregadores, as duas Organizações condenaram “em absoluto e veementemente as práticas do transporte maritimo”, facto que chamou a atenção da Comunidade Portuária de Leixões.
Ambas as Organizações subscritoras do comunicado têm a responsabilidade, cada uma por si, de produzir e fazer chegar ao Mercado bens que, em muitos casos, transitam pelos portos, pelo que, para o Setor Portuário, a sua voz é a voz das Cargas e, portanto, um porto não pode ficar indiferente àquele texto.
O Porto de Leixões, neste momento, está a lançar o investimento na extensão do Quebra Mar, um investimento no montante de € 147 milhões, tendo como foco, não só, proteger as Cargas que hoje já passam pelo porto, mas também, assumir-se como candidato a novas Cargas provenientes da fixação de novas indústrias no seu Hinterland, sem esquecer a porta, sempre aberta, para a Espanha, um objectivo da estratégia do porto.
As Cargas são a razão de ser da Cadeia Logística, cujo movimento até ao destino, ao longo dos Canais Logísticos, tem de ser garantido de forma eficiente e eficaz.
O texto da APAT/CPC coloca em causa a eficiência e a eficácia do Transporte Marítimo, chamando a atenção para “as práticas do transporte marítimo”, questionando-as com exemplos, tais como, “as que impactam diretamente com a adição de sobretaxas várias desde o início da pandemia” ou como a “alteração de condições pré-acordadas entre as partes”, indo mesmo ao ponto de colocar dúvidas sobre eventuais práticas concertadas da Oferta de Transporte Marítimo, afirmando-se no comunicado que “já decorrem investigações” nos EUA, na China, na Coreia e na Índia.
Assim, face aos objectivos de desenvolvimento do porto, este comunicado não pode deixar a Comunidade Portuária de Leixões tranquila.
Com efeito, neste documento, traça-se um quadro nada favorável à permanência das Cargas no transporte marítimo. O comunicado não se escusa em falar “numa conduta que parece ter sido preparada, mas pouco usual por parte dos armadores (“carriers”)”. Enfim, práticas concertadas, que não se aceitam!
Vale a pena lembrar que Sem Cargas não há Navios, e que a afirmação recíproca não é verdadeira pois Sem Navios pode haver Cargas, uma vez que se utilizam outras soluções logísticas que não o transporte marítimo e claro está, neste caso, os portos ficam de fora.
Este quadro não satisfaz o Porto de Leixões que está a fazer investimentos fortes, como se disse, com objectivos ambiciosos de crescimento das Cargas.
No comunicado da APAT/CPC estão em causa práticas do transporte marítimo que podemos agrupar de duas formas:
- Uma, as práticas que resultam da Lei da Oferta e da Procura;
- Outra, aquelas que resultam da adulteração intencional dessa mesma Lei, práticas sobre as quais “já decorrem investigações”, segundo a APAT/CPC;
O primeiro grupo merece-nos reflexão, mas já quanto ao segundo, qualquer comentário, neste momento, torna-se prematuro devido à investigação que decorre.
Assim, como exemplo das práticas do primeiro grupo, lê-se no comunicado das duas Organizações que
“Desde o início da pandemia que se tem sentido um forte impacto do desequilíbrio de contentores e a redução da capacidade do transporte marítimo junto dos carregadores e dos transitários que, por sua vez, têm procurado assegurar a fluidez das suas cadeias de abastecimento globais, o que continua a ser crucial na crise actual.”
Salvaguardando o resultado da investigação sobre as tais práticas concertadas por parte da Oferta de Transporte Marítimo, em condições de competitividade (concorrência normal) este downsizing de que se queixam as duas Organizações no seu comunicado, está na mesma linha da overcapacity ocorrida há alguns anos e que contribuiu, nessa altura, para uma enorme degradação dos fretes. É o seu antípoda!
Nestas circunstâncias, olhando para os valores cobrados por um frete de um contentor de 40’ entre o FarEast e a Europa, os $ 500, de há uns anos atrás, e os $ 6000 (12 000?) de agora, dir-se-á que, entre os dois momentos, funcionou a Lei da Oferta e da Procura no Transporte Marítimo, onde cada parte, de forma lícita, procurou reverter a seu favor as regras do jogo.
Durante a década 2010/2019, a Oferta não conseguiu impor os seus termos e, assim, os fretes no Transporte Marítimo de Contentores deterioraram-se até níveis muito baixos e o conjunto das Linhas de Navegação que operavam neste segmento de Mercado, chegaram ao fim da década com prejuízos acumulados na ordem dos $ 28 Biliões, valor que tornava a situação insustentável.
Como era insustentável a situação (falências de Armadores!), o Transporte Marítimo reorganizou-se e procurou que os termos do jogo passassem a ser os seus, o que, neste momento, parece estar a conseguir, olhando para os níveis de frete praticados, agora.
A situação, hoje, tornou-se insustentável para as Cargas!
A menos que, a nível Mundial, qualquer das diversas Autoridades da Concorrência venha a concluir pela existência de práticas concertadas do lado das Linhas de Navegação Marítima, o Mercado Livre funcionou, a Oferta impôs os seus Termos onde antes a Procura o tinha conseguido fazer!
Nada a apontar!
No entanto, algumas questões devem ser colocadas à reflexão:
- Em Mercado Livre, a concentração a que se assiste, das Linhas de Navegação em Alianças (sancionada pelas Autoridades da Concorrência), tem interlocutor equivalente do lado da Procura que consiga equilibrar os pratos da balança?
- Em Mercado Livre, as Leis da Concorrência, tal como existem, protegem, de facto, a Procura face a estes agrupamentos cada vez mais robustos?
- Em Mercado Livre, um pequeno País como Portugal, localizado na periferia do pulmão económico da Europa, poderá proteger o seu Comercio Internacional, ou atrair Investimento Estrangeiro que dependa da infraestrutura de transportes para a exportação ou para a importação, quando os custos logísticos, de repente, se tornam insuportavelmente altos?
- Em Mercado Livre, os Portos Portugueses, que estão a promover investimentos para se adaptarem às necessidades do transporte marítimo, quantas vezes ditadas por decisões unilaterais da Oferta devido à escala crescente das suas unidades de transporte, têm um modelo de negócio suficientemente flexível para se ajustarem a esta nova realidade “imposta” pela Oferta do Transporte Marítimo?
- Em Mercado Livre, quando a robustez das Alianças das Linhas de Navegação dá sinais de se reforçar em Plataformas Digitais, procurando redefinir, a seu favor, o Negócio Logístico, a Transição Digital nos Portos Portugueses poderá funcionar como uma ferramenta de equilibrio entre a Oferta e a Procura de Transporte Marítimo?
Esta reflexão justifica-se, é urgente que se faça!
Nos últimos anos, as Linhas de Navegação, no mundo físico da Oferta de Transporte Marítimo, conseguiram, através das Alianças, reforçar-se e reverter, a seu favor, o equílibrio entre a Oferta e a Procura.
Agora, com as Alianças estabilizadas, as Linhas de Navegação, no mundo digital da Oferta de Transporte Marítimo, estão a dar mais um passo na consolidação dessa reversão, ao desenvolverem Plataformas Digitais de Serviço e de Negócio, que lhes permitirão fixar os seus standards como referências para a Cadeia Logística e, deste modo, tentarem o controlo do Negócio Logístico.
Mais uma vez o Mercado Livre a funcionar, sem restrições! Nada a opôr!
Mas chegando aqui, não obstante o funcionamento do Transporte Marítimo em Mercado Livre como determinam as regras da União Europeia, vale a pena interrogar sobre os meios que dispõe a Procura para reequilibrar o jogo, em que a JUL como Plataforma Digital do Estado, neutra por esta circunstância, parece ter potencial para contrabalançar a tendência de preponderância da Oferta de Transporte Marítimo.
Trata-se de uma reflexão que justifica espaço próprio para o debate, porém não deve ser adiado, visto que, em Mercado Livre, tem condições para ser um meio de proteção da Procura em face de uma Oferta de Transporte Marítimo cada vez mais concentrada!
Em Portugal, a Procura de transportes internacionais é constituída por um limitado número de grandes empresas e por um elevado número de pequenas e médias. Estas, as PME, operam no Mercado Internacional em limites competitivos extremos e, por esta circunstância, não têm capacidade para se confrontarem com uma Oferta de Transporte Marítimo cada vez mais reestruturada em Alianças Globais, reforçada nas suas Plataformas Digitais e, consequentemente, impondo-se, ainda mais, num Mercado Livre, aparentemente, pouco regulado.
Portugal, nos próximos seis meses, ocupará a Presidência da União Europeia. Portugal é um País com uma invejável história marítima construída na busca de soluções logísticas para resolver necessidades Nacionais e Europeias da Época. Fê-lo em proveito próprio e em detrimento de outras soluções logísticas, tendo desafiado grandes potências comerciais ou militares e, por isso, tem a obrigação de saber o que significa ganhar ou perder no Jogo da Logística. Tem obrigação de saber que isso se reflete na geoestratégia do País!
O Mercado do Transporte Marítimo está aberto; hoje, a Oferta posicionou-se, a Procura nem por isso; Portugal tem uma oportunidade para tentar equilibrar as duas Partes, quer a nível Nacional quer a nível Europeu.
A Presidência Europeia é essa oportunidade!
É necessário que o faça, olhando,
- não só, para a avaliação do real impacto das Alianças na Logística Europeia onde o quadro normativo de proteção da concorrência talvez justifique ser revisitado;
- mas também, para a Transição Digital nos Portos Portugueses e na Logística Nacional e a sua capacidade para estabilizar a concorrência;
- ou mesmo, para a Transição Digital a nível da União, onde a Plataforma ALICE (MarketPlace) foi adoptada pela Comissão. Os Estados Membros têm a obrigação de acompanhar a evolução desta Plataforma de Plataformas, dado os problemas de autoridade (soberania?) que pode envolver;
A Comunidade Portuária de Leixões, perante este sério problema da Cadeia Logística, não podia deixar de trazer esta apreciação dos factos até junto do Governo Português, levando-a aos Ministérios que, na nossa opinião, podem contribuir para uma boa solução deste severo desajustamento entre a Oferta e a Procura de Transporte Marítimo com forte impacto negativo na Cadeia Logística.
Apresentamos os mais respeitosos cumprimentos
Pela Direção da Comunidade Portuária de Leixões
Jaime Henrique Vieira dos Santos