
“As Guerras do Trigo, uma história geopolítica dos cereais”, de Scott Reynolds Nelson[i], é um livro oportuno que aborda, entre outros aspetos, a importância estratégica do transporte marítimo de cereais a granel desde o século XVIII, algo a que damos pouco importância porque hoje estamos obcecados com os gadgets, equipamentos industriais e todo o tipo de produtos fabricados na China, de que não prescindimos, e que dependem do transporte marítimo em contentores.
Segundo o autor do livro, a Ucrânia tem um solo extremamente fértil, a chernozem, uma terra argilosa escura, que sendo arejada permite a proliferação de minhocas e bactérias. Em 1768, a czarina Catarina II ordenou que mais de 100.000 soldados, por terra e pelo Mar Negro, invadissem e conquistassem a região. Essa ação fazia parte de um plano de construção do Império Russo, que previa o cultivo em larga escala de trigo na Ucrânia e a sua exportação para a Europa como forma de a controlar. Cem anos mais tarde (1860), a posição dominante da Rússia no mercado do trigo viria a ser interrompida pela entrada na Europa de grandes quantidades de trigo transportadas por via marítima dos Estados Unidos, na sequência da Guerra Civil Americana.
A partir de 1866, quatro empresas de cereais americanas controlavam o comércio e o transporte marítimo no Atlântico, um tráfego anual de 10.000 navios. Grande parte desses navios eram veleiros, porque o carvão num navio a vapor ocupava cerca de metade da capacidade de transporte na travessia do Atlântico o que tornava não rentável a sua utilização. Por outro lado, a alta densidade dos cereais permitia estabilizar a embarcação (veleiro) durante a viagem.
Entre as empresas que controlavam o comércio de cereais no século XIX estavam as ABCD – Arthur, Daniels Midland (EUA), a Cargill (EUA), a Dreyfus (França) e a Bunge (Países Baixos). Todas elas tinham também armazéns em Odessa.
Cereais da Ucrânia hoje
Em 2021, entre os maiores exportadores de trigo na Ucrânia continuavam a figurar as mesmas empresas: Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus – que são conhecidas como as ABCD pelo facto de financiarem a produção e o comércio de trigo a nível global. Empresas com 150 anos de história que controlaram nesse ano de 2021 cerca de 30% da exportação do país.
Entre janeiro e novembro de 2022, a Ucrânia[ii] exportou 9,6 milhões de toneladas de trigo, 21,9 mt de milho, 3,9 mt de sementes de girassol e 5,8 mt de outras sementes para produção de óleo. Um total de exportação de cereais e sementes de 50,9 milhões de toneladas (16,7% menos do que em 2021), no valor total de 21,1 mil milhões de dólares americanos.
…o envolvimento entre as ABCD, os armadores de navios graneleiros e os compradores do trigo e outros cereais e sementes garantiram o sucesso do Black Sea Grain Initiative.
O maior exportador de cereais da Ucrânia é a Kernel Holding Société Anonyme, registada no Luxemburgo, que tem como principal acionista Andrey Verevskiy, que foi deputado do Partido das Regiões (pró-russo) no Parlamento, de onde foi expulso em 2013. A Kernel controla 499.100 hectares de terra cultivável (área semelhante à do Distrito de Setúbal).
Os cereais, sementes e grãos são tipicamente transportados em navios com capacidade entre 10.000 e 60.000 toneladas (mini bulkers, handysize bulk carriers, handymax bulk carriers e panamax bulk carriers).
Como exemplo[iii], entre setembro e outubro de 2022, foram efetuadas 4 viagens entre portos Ucranianos (Odessa e Chornomorssk) e portos Portugueses, por navios com 7.757 t de trigo, 18.716 t de milho, 6.834 t de cevada e 21.000 t de canola. Um total de 55.300 toneladas.


Nesse mesmo período, entre portos Ucranianos e a China, as cargas transportadas em 35 viagens eram maioritariamente entre 30.000 e 60.000 toneladas (milho, girassol e cevada). Em 2021, o sexto maior produtor na Ucrânia foi a COFCO Agri Ukraine, uma subsidiária da empresa chinesa COFCO, que exportou 810.000 t em 2021.
Utilização de “navios sujos”
Recentemente[iv], com a procura de minério de ferro em queda na China e a quebra nas taxas de frete dos “ore carriers” (navios para o transporte de minério) as traders decidiram passar a utilizar este tipo de navios para transportar milho e soja. A COFCO International Ltd, a Archer-Daniels-Midland Co. e a Cargill, reservaram quatro “Baby Capes”[v] para transportar cereais da América do Sul para a Ásia durante o próximo ano. Segundo a Cargill a justificação é simples: “quanto mais carregamos, mais barato é o custo do frete para os nossos clientes e menor a pegada de carbono”.
Os navios para transporte de minério de ferro não são normalmente utilizados no transporte de cereais pois tal envolve um demorado processo de limpeza de porões – uma etapa necessária para garantir que os consumidores de cereais, humanos ou animais, não vão ingerir ferrugem, areia metálica ou outro tipo de resíduos sujos. Os porões são lavados com produtos químicos a alta pressão, escovados para retirar as lamas e drenados da água lamacenta. O processo de limpeza tem um custo e requer alguns dias extra de fretamento (pode demorar uma semana se for necessário raspar a pintar as paredes por se verificar impossibilidade de remover toda a sujidade).
Mercado
De acordo com os analistas[vi], as exportações de trigo da Rússia vão continuar a crescer em 2023 a não ser que as sanções criem complicações extremas para o afretamento de navios para carregar nos portos russos, nomeadamente no processamento de pagamentos nos bancos.
Estima-se que em 2022 a Rússia exporte 150 milhões de toneladas de cereais e sementes, dos quais 100 milhões de trigo. Os principais destinos para o trigo são Egito, Arábia Saudita, Argélia, Paquistão, Brasil e México. Entre as maiores empresas exportadoras da Rússia estão a Reef LLC (Rússia, controlada pelo Estado), a Glencore LLC (Suiça), a JSC Aston (Rússia, privada), a Cargil e a Louis Dreyfus Vostok.
Na minha opinião, mais do que a diplomacia da ONU e da Turquia, o envolvimento entre as ABCD, os armadores de navios graneleiros e os compradores do trigo e outros cereais e sementes garantiram o sucesso do Black Sea Grain Initiative. Mas em caso de agravamento da situação de guerra em 2023 pode a carência de trigo e outros cereais voltar a estar no centro das atenções, como esteve em quase todas as guerras e revoluções, como demonstra Scott Reynolds Nelson no seu livro.
[i] Editado pela Zigurate em outubro 2022.
[ii] https://latifundist.com/en/novosti/60418-tsogorich-ukrayina-eksportuvala-agroproduktsiyi-na-ponad-20-mlrd.
[iii] Ver em Black Sea Grain Initiative Joint Coordination Centre, https://www.un.org/en/black-sea-grain-initiative/vessel-movements.
[iv] Fonte: Bloomberg.
[v] Os “Baby Capes”, são os mais pequenos Capesize com capacidade para transportar cerca de 100 mil toneladas, isto é 50 a 60% mais do que os Panamax.
[vi] Reuters 8 Dezembro 2022, ver em https://www.hellenicshippingnews.com/russias-december-wheat-exports-close-to-record-experts-say/.
FERNANDO GRILO
Economista de Transportes Marítimos