O encalhe do navio Ever Given
Dois meses passados após os seis dias de encalhe do navio “Ever Given” no Canal do Suez (de 23 a 29 de Março de 2021) ainda não foram divulgadas oficialmente as causas que determinaram o acidente. Parece cada vez mais claro que o mesmo está associado ao chamado “efeito de squat” (efeito de navegação em águas pouco profundas), acompanhado de ventos fortes e má visibilidade (tempestade de areia) que se verificaram no momento da travessia do comboio de navios na travessia do Suez.
Lembramos que se tratava do 10.º maior navio porta-contentores do mundo (capacidade – 20.348 TEU’s), com um calado de 15,6 metros e uma área vélica muito extensa.
A reconstituição do acidente a partir das posições AIS evidencia que o navio seguia a uma velocidade significativamente superior à velocidade máxima permitida no trânsito do Canal do Suez.
Ora, logo aqui colocam-se algumas questões de difícil resposta. Quem já atravessou o Canal do Suez sabe que a bordo dos navios seguem dois pilotos da ACS – Autoridade do Canal do Suez que assumem a responsabilidade operacional da operação em articulação com os restantes navios que fazem parte do comboio de atravessamento para Norte/Sul. Isso não iliba o facto da responsabilidade legal / operacional final ser sempre do comandante do navio.
Naturalmente, a velocidade de navegação do comboio de navios é definida pelos pilotos da ACS e, perante as condições descritas (fortes rajadas de vento / má visibilidade), somos da opinião que se impunha aumentar a velocidade de navegação para aumentar a segurança da navegação. Julgamos ter sido isso que os pilotos da ACS decidiram.
O problema é que para aumentar a capacidade de “tracção” através do aumento da velocidade do navio, potenciamos o “efeito de squat” (que é directamente proporcional à velocidade do navio e agravado pela reduzida dimensão e profundidade do canal de passagem). O navio perdeu capacidade de manobra, “gingando” a um e outro bordo, até encalhar nas margens do Canal do Suez.
A pergunta que se coloca é se será legítimo que a Autoridade do Canal do Suez (ACS), responsável pela coordenação do atravessamento dos comboios de navios, pela articulação entre os pilotos da barra presentes em cada navio bem como pelos reboques e restante material de apoio, venha solicitar ser ressarcida em 916 milhões de dólares pelos custos associados ao encalhe do navio “Ever Given”?
Na nossa opinião, não. Por essa razão, os advogados da Shoei Kisen, proprietários do “Ever Given”, passaram ao ataque exigindo uma compensação de 100 milhões de dólares à ACS, alegando que a responsabilidade do acidente é da própria ACS, a qual, perante as condições de vento e mar existentes, não devia ter permitido a travessia do comboio de navios. Este facto é suportado por gravações de bordo que evidenciam que os pilotos da barra e a ACS discordaram sobre se haveria ou não condições climatéricas seguras para a travessia do Canal do Suez.
De acordo com a Shoei Kisen, proprietária do navio, impunha-se igualmente a presença de dois reboques a acompanharem o navio durante a travessia do Canal do Suez. Outro argumento interessante apresentado pela Shoei Kisen é a inaplicabilidade do “contrato de salvamento” por parte da ACS por ser simultaneamente concessionária do Canal do Suez. Parecem-nos argumentos lógicos que em termos de Direito Internacional Marítimo serão dificilmente rebatíveis.
O futuro será das redundâncias e da resiliência. Quer ao nível das infraestruturas, quer ao nível dos equipamentos, quer ao nível do próprio redesenho da cadeia de abastecimento com recurso a alternativas de transporte intermodais aéreas ou ferroviárias.
Por essa razão, diariamente temos vindo a assistir à redução do valor da compensação exigida pela ACS, que passou de 916 milhões de dólares (valor que englobava uma parcela de 300 milhões de dólares associados à perda de reputação, outros 300 milhões de dólares associados ao contrato de salvamento do navio e os restantes 316 milhões de dólares associados às despesas com o desencalhe do “Ever Given”), e neste momento, a Autoridade do Canal do Suez parece disposta a aceitar um valor de 200 milhões de dólares de depósito como garantia de compensação dos custos incorridos.
Perspectivas futuras para o atravessamento do Canal do Suez
Como sempre no transporte marítimo, são os grandes acidentes que determinam novas normas para a segurança da navegação.
Neste momento ainda não há enquadramento para isso, em face da disputa legal sobre a indemnização a pagar pelo Operador Marítimo à Autoridade do Canal do Suez. Seria um argumento utilizado pela Shoei Kisen para minimizar os custos da operação de salvamento.
Mal a questão legal seja resolvida, consideramos que é provável que passe a ser obrigatório durante a travessia do Suez a escolta de dois reboques ao costado tendo cabos passados ao navio. Tal teria sido suficiente para evitar o encalhe do “Ever Given” quando este perdeu a sua capacidade de manobra.
É importante regular um mercado dominado por Bandeiras de Conveniência, em que se tornou “normal” encontrar um navio tripulado por uma tripulação Indiana, de um Operador Marítimo de Taiwan (Evergreen), gerido por uma empresa Alemã (Bernhard Schulte Shipmanagement), com uma Sociedade Classificadora Americana (ABS – American Bureau of Shipping), propriedade de uma empresa Japonesa (Shoei Kisen), segurado no Reino Unido (UK P&I Club) e encalhado em águas do Egipto. O shipping na sua verdadeira acepção internacional.
O encalhe do “Ever Given” veio igualmente expor as fragilidades do Comércio Internacional e das infraestruturas e superestruturas (equipamentos) marítimo-portuárias de suporte que não conseguiram acompanhar a evolução no aumento da dimensão dos navios.
Disrupção e resiliência das cadeias logísticas
A grande virtualidade do encalhe do “Ever Given” foi evidenciar, por um lado a importância do transporte marítimo no desenvolvimento do Comércio Internacional, mas por outro lado veio mostrar que o seu actual modelo de desenvolvimento assente no aumento de dimensão dos navios não é sustentável em termos futuros.
As grandes cadeias de abastecimento globais subestimaram estes riscos e não conseguiram dar resposta aos mesmos.
O futuro será das redundâncias e da resiliência. Quer ao nível das infraestruturas, quer ao nível dos equipamentos, quer ao nível do próprio redesenho da cadeia de abastecimento com recurso a alternativas de transporte intermodais aéreas ou ferroviárias.
Durante o encalhe do “Ever Given”, quer a Maersk quer a MSC recorreram a ligações ferroviárias no Extremo Oriente – Europa para fazer o “bypass” ao Suez.
A solução de curto-prazo para fazer face ao problema do encalhe do “Ever Given” foi aumentar os níveis de stocks e evoluirmos dos modelos logísticos de “JIT – Just in Time” para modelos logísticos “JIC – Just in Case”. Este facto foi igualmente potenciado por um mercado em que os atrasos, o congestionamento portuário e a falta de fiabilidade dos serviços marítimos se tornou a norma e não a excepção tal como era no passado.
A nível das redundâncias cita-se o projecto de expansão e aprofundamento do Canal do Suez, que, por ordem do Presidente do Egipto, se iniciou imediatamente após o encalhe do “Ever Given” de modo a permitir que em todo o canal seja possível o trânsito em simultâneo de navios em ambas as direções. A profundidade máxima do Canal será aumentada para 22 metros (em contraponto aos actuais 20 metros) e a largura do Canal na zona do encalhe do “Ever Given” será aumentada em 40 metros.
A resiliência das cadeias de abastecimento, a digitalização no transporte marítimo, a preocupação ambiental e a transição energética serão os outros factores críticos de sucesso no mercado do transporte marítimo.
Mesmo em termos geoestratégicos novos “players” se perfilam. Por um lado, ficou clara a necessidade da presença das superpotências mundiais a “controlar” os pontos estratégicos do tráfego marítimo. Por outro lado, ficou igualmente patente a virtualidade de soluções alternativas como a Rota Polar Ártica como alternativa competitiva à Rota do Far-East.
FERNANDO CRUZ GONÇALVES
Professor da ENIDH