Não devemos meter a foice em seara alheia, entrando deliberadamente num sector que tem a ver com problemas que não são nossos, ou então são de todos, mas só alguns têm a foice para meter naqueles que têm a seara.
Ou seja, e simplificando, intrometer-se naquilo que diz respeito a outrem.
Recentemente, uma notícia apareceu no TRANSPORTES & NEGÓCIOS e no Eco (onde vi/li) acerca de uma nova linguagem. Não é o Chat GPT, mas referiam que um consórcio com empresas de Portugal e da Europa vai desenvolver um sistema STM para que novos comboios equipados com o sistema europeu possam circular em linhas com o português Convel.
Estranhei este procedimento, talvez porque o nome da IP – que é a “dona“ da infraestrutura ferroviária – não surge no consórcio para criar um “tradutor” para que os novos comboios da CP e da Medway, esquecendo os “Fertagus” e os Captrain [Takargo] ou outros NOVOS operadores, possam circular nas linhas ferroviárias nacionais. “…Critical Software, Medway, Thales, Stadler e Alpha Trains são os elementos do consórcio que vai desenvolver esta solução, segundo anúncio feito nesta quinta-feira…”. Mais, o maior operador português (CP) também não está.
Desde já dou os parabéns a estas empresas por tentarem resolver um problema muito mais sensível do que a “bitola”, mas de que poucos falam e ainda menos quiseram resolver.
Mas sem investigar coisa nenhuma, não consigo perceber algumas coisas que se passam com a ferrovia nacional. Ou seja:
Primeiro, por que razão a IP não está envolvida Sendo ela a responsável pelo sistema de segurança da infraestrutura ferroviária – sinalização e segurança, quando é ela a gestora?
Segundo, por que não surge o maior operador ferroviário nacional – a CP – no consórcio?
Terceiro, por que se dirige diretamente apenas a alguns e não a todos? Ou, se se dirige a todos, de que forma será?
Esta aparente confidencialidade não deixa transparecer transparência, e deixa muitas perguntas que deixam transparecer a falta disso mesmo, de “informação e clareza”?
Não seria mais lógico quem percebe de questões de ferrovia estar presente?
Por mais que possamos estar aptos para efetuar determinado trabalho, deveríamos ser humildes e deixar quem está na área efetuá-lo. Mostraria, aparentemente, uma prova de inteligência.
Entretanto, pasmem-se, até a CP já deu lucro!
Bem, deixemo-nos destes considerandos e vamos a outra notícia pós-Pascal.
Depois de Jesus ressuscitar, eis que leio uma notícia onde se mostra que há um sector dos transportes, que não ressuscitou, porque nunca morreu, apenas e só porque ainda nunca viveu:
UE ainda a milhas de retirar o transporte de mercadorias da estrada.
Se não fosse sério, diria que é uma brincadeira, mas foi o Tribunal de Contas Europeu quem se manifestou, não foi um qualquer técnico, um qualquer amador da escrita ou até um jornalista da área.
Foi feita uma auditoria para apresentar e informar os decisores políticos e interessados sobre a eficácia das medidas da União Europeia de promoção do transporte Intermodal desde 2014.
Para o efeito, avaliaram-se as metas da UE em matéria de intermodalidade, fixadas no âmbito da sua estratégia, se foram devidamente concebidas e acompanhadas. O Tribunal avaliou também o quadro jurídico e se este proporcionou um adequado apoio ao transporte e à rede de infraestruturas de resposta às necessidades do transporte intermodal.
Conclusão brilhante é a de que o transporte intermodal de mercadorias ainda não consegue competir em igualdade de circunstâncias com o rodoviário. Ora, quer-me parecer que isso é dito, pelo menos anualmente, nos seminários do TRANSPORTES & NEGÓCIOS. Essencialmente, porque a UE não tinha uma estratégia especifica o transporte intermodal inserida em estratégias mais vastas relativas à transferência modal.
Quer-me parecer que está tudo dito.
Pode ser que a UE aproveite para ler o relatório, ou então continue a assobiar para o lado, a enviar dinheiro aos montes para um saco sem fundo sob a égide da intermodalidade, descarbonização e sustentabilidade, que são sempre palavras bonitas, mas que que muitos poucos pretendem implementar, essencialmente aqueles que continuam a construir aquela retórica na UE que apenas interessa a estes “construtores” de retórica, ou até a quem lhe encomenda a retórica da “coisa”.
Aparentemente há mesmo muita gente a meter a foice em seara alheia, ou seja, na:
- Regulamentação e segurança ferroviária;
- Documentação e gestão ferroviária;
- Gestão dos RH ferroviários;
- Competência e conhecimento técnico de ferrovia;
E finalmente a CP deu lucro. Porquê?
ANTÓNIO NABO MARTINS
Especialista em transporte ferroviário
CP deu lucro? Simples: Porque fizeram as contas e o novo contrato de serviço público paga déficit que sempre existiu!!
Quanto à ferrovia e ao seu brilhante futuro? Simples: Procure-se uma tecnologia com 150 anos e que sustente um negócio florescente nos dias de hoje!!
Cpts
Caro Autor
Julgo compreender o seu protesto quanto à constituição do consórcio para o STM.
Embora não esteja ligado a esta ação, recordo que tivemos no metropolitano um problema análogo. Entre 2000 e 2009 funcionou na linha vermelha um ATO (Automatic Train Operation), sistema de condução automática de nível GoA2 (grade of automation 2, com a presença dum maquinista na cabina e supervisão dum ATP – Automatic Train Protection ). Resolvemos o problema da compatibilidade entre fabricante do material circulante pré existente (a Siemens) e fabricante do ATO a adquirir (CSSET/Ansaldo) inscrevendo no caderno de encargos a obrigatoriedade de, quem ganhasse o concurso do ATO se entender com o fabricante do material circulante de acordo com as diretivas comunitárias. E a Siemens forneceu e recebeu as informações necessárias para o seu SIBAS controlar a curva de velocidade dos comboios conforme as informações dos captores da CSEET. Nós, no metropolitano, como donos da obra, acompanhámos e fiscalizámos.
Ressalvando não dispor de todos os elementos, é possível que no caso do STM, que lerá a informação das balizas do CONVEL recolhidas pelos captores do EVC (European vital computer) de modo a convertê-las em mensagens tipo ETCS, as coisas possam correr de forma análoga, sendo o fornecedor do ETCS a Thales ( existe um artigo muito interessante do representante da Thales publicado no repositório das comunicações apresentadas no 10º congresso do CRP em julho de 2022).
Trata-se de um procedimento que funciona já, por exemplo, na Noruega. Pessoalmente, eu preferiria que os comboios existentes só equipados com CONVEL circulassem só em linhas também equipadas com o CONVEL e os comboios novos em linhas com o ETCS, de forma análoga ao que poderia fazer-se com o problema da bitola interoperável e redes duais (curiosidade: extensão dos troços ferroviários em Espanha: bitola ibérica 11.211 km ou 77%, bitola UIC 3.030 km ou 21%, via de 3 carris 245 km ou 2%).
Sobre o relatório do TdC europeu inteiramente de acordo. Basta de palavras bonitas, mas note-se que falta o planeamento do nosso lado e sem ele não haverá cofinanciamento comunitário que se veja, por exemplo, alguém está a preparar o transporte de semirreboque por comboio numa altura em que o valor das exportações terrestres para o resto da EU ultrapassa o valor das exportações para Espanha?
Sobre um consórcio que envolve Stadler, Thales, Medway e Alpha Trains o autor conseguiu escrever “Não seria mais lógico quem percebe de questões de ferrovia estar presente?”. Nunca o apelido Nabo assentou tão bem a alguém
PS: sim, deveria ter sido a IP a criar o módulo STM. Mas não se pode esperar muito da IP, infelizmente. Além disso, a maravilha da legislação ferroviária europeia atua é que qq “equipa” pode desenvolver um módulo STM (neste caso, para Convel). Com a IP a pisar ovos neste assunto, as empresas do sector naturalmente fartaram-se e estão a unir esforços. Portanto, caro autor, evite emitir mais nabices sobre este assunto