Desde a segunda grande guerra que o transporte aéreo afirmou a sua utilidade e tem dado provas de grande resiliência, sobrevivendo às mais variadas crises, desde a crise do petróleo, na década de 70, à guerra Irão-Iraque, aos atentados terroristas, etc.. De todas estas crises, sem excepção, foi possível extrair importantes lições sobre o comportamento dos vários actores nesta indústria, e de como as decisões e comportamentos de uns afectam as decisões de outros. Este é um sector onde, desde sempre, a informação foi considerada um activo de grande importância; não faltam por isso estatísticas e previsões feitas em diferentes perspectivas. Portanto há informação bastante para que se possam desenvolver decisões de carácter estratégico, bem sustentadas, e considerando a complexidade que é característica deste sector.
A relação entre o PIB e o crescimento do transporte aéreo tem sido estável ao longo destas décadas (1970-2013), com um rácio de crescimento do número de passageiros em relação ao PIB de 1,5, suportado por vários estudos apresentados pela ICAO (International Civil Aviation Organization). Comparativamente com a evolução do PIB, o transporte aéreo revelou sempre uma maior amplitude (entre +2 a 5%) na variação das tendências de crescimento da sua procura.
Esta estabilidade é claramente derrubada com o advento da pandemia COVID-19, ameaçando pela primeira vez a resiliência do sector, o que significa que esta crise tem consequências de muito maior profundidade que as anteriores. Na Europa. o tráfego aéreo reduziu em média cerca de 60%. Observando os movimentos da semana de 14 de Outubro de 2020, que não foi a pior, a Ryanair reduziu 71%, a Turkish Airlines 52%, a Air France 56%, a Lufthansa 71%, a KLM 49% e EasyJet 84%. Não há qualquer dúvida de que a pandemia afectou de forma idêntica diferentes tipos de companhias aéreas; é por isso legítima a contestação de que as ajudas de Estado na UE estão a ser injustas para as chamadas companhias “low cost”. Também o transporte aéreo de mercadorias tem apresentado um declínio de capacidade de cerca de 22%, bastante inferior ao que se tem passado com o transporte de passageiros.
Como é evidente, Portugal não escapa a este tsunami que reduziu drasticamente a procura. Segundo as estatísticas publicadas pela ANAC, no segundo trimestre de 2020, os movimentos totais dos nossos aeroportos tiveram uma quebra de 91,16%, face a 2019, e uma quebra de 97,47% no número de passageiros transportados. Os aeroportos de Lisboa, Porto e Funchal, com cerca de 93% de quebra de movimentos e cerca de 98% de redução de passageiros, Faro com mais de 96% de quebra nos movimentos e mais de 98% nos passageiros, e Ponta Delgada com 80% de redução de movimentos e cerca de 95% de redução de passageiros. Em síntese, o transporte aéreo em Portugal foi totalmente esmagado pelos impactes da pandemia, e é assim o modo de transporte mais afectado por esta crise.
Toda a indústria está a rever em baixa as suas previsões. A figura seguinte apresenta a revisão de cenários de tráfego produzida em Setembro passado pelo Eurocontrol. É evidente para todos que os padrões de recuperação do passado não se vão repetir, e as previsões apontam para reduções de tráfego que oscilarão entre 40 a 60% para o horizonte 2028-2038. Nas excepções a esta tendência está o tráfego América do Sul – Europa Ocidental, com uma expectativa de crescimento significativo (acima de 3,4%), o que poderá oferecer-nos alguma vantagem competitiva dada a nossa posição de hub para o Brasil.
Acresce que o Turismo, um dos principais parceiros alimentadores do transporte aéreo, sofreu uma quebra brutal de receita, que sugere serem necessários 4 a 5 anos para recuperação deste sector, se não for fortemente estimulado e auxiliado.
Estamos, sem dúvida, perante uma crise no transporte aéreo sem igual. É, por isso, fundamental reflectir sobre quais são as possibilidades de retoma deste sector. Esta crise é muito diferente das anteriores porque questionou a forma de vida das sociedades. Acresce ainda que uma vez resolvida a crise da pandemia, expectável até final de 2021, teremos ainda que nos confrontar com um cenário de recuperação económica que ainda levará a algumas, se não muitas, falências. Perante este cenário, não se admite que o rácio da relação entre PIB, também com crescimentos tímidos, e tráfego aéreo regresse rapidamente ao patamar onde estava antes do COVID, de 1,5.
Portanto, o mundo mudou, as sociedades adquiriram outros valores que se reflectem em novos hábitos, a incerteza aumentou, e mudou também a nossa capacidade preditiva, e aumentou o risco dos investimentos feitos em cenário de forte incerteza. É necessário perceber os novos contornos da procura. Mas mesmo que pudéssemos acreditar que os padrões de retoma reproduziriam de alguma forma o passado, só podemos perspectivar retomas do sector entre 5 anos (cenário optimista) e 15 anos (cenário pessimista). É, por isso, indispensável que se realize um plano estratégico (longo prazo) para o sistema aeroportuário português, contemplando o turismo e o desenvolvimento urbano e regional, principais vectores da escolha de Portugal como destino e de Lisboa com principal gateway
Os ziguezagues sobre o futuro do Aeroporto de Lisboa.
As discussões têm sido fortemente dominadas por interesses económicos e políticos, e por isso contribuem mais para baralhar a população do que para informar com rigor e transparência. A melhor forma de enviesar um processo é começar por colocar as perguntas erradas, inevitavelmente as respostas saem do contexto e o processo permanece bloqueado. Talvez isto seja uma medida de sucesso da própria decisão política – agitar para que tudo fique na mesma.
Já em 2018 referi, no Jornal I, que uma das principais falácias argumentativas é comparar sistematicamente o que não é comparável. Primeiro colocava-se como alternativa a opção “Portela + Montijo” contra a opção “Alcochete”. Até onde pode ir a desinformação para manipular opiniões? Estas opções não são comparáveis. Mas, como se não bastasse, temos agora em noticias recentes Montijo versus Alcochete.
A opção “Portela + Montijo” é de curto-médio prazo, tem execução possível entre 4 a 5 anos, e uma capacidade final para 72 movimentos/hora, o que se estima possa acomodar o crescimento da procura nos próximos 10 anos, talvez 15 se o crescimento abrandar, o que parece ser natural no médio prazo, ainda que toda a discussão pública se alicerce sempre na presunção do crescimento ilimitado, o que não é obviamente realista, nem correcto do ponto de vista analítico. Em abono do rigor, vários cenários de crescimento devem ser admitidos, mas é necessário que sejam descritos com clareza para que se entenda quais os pressupostos que foram utilizados, e se possam descontinuar esses cenários quando os pressupostos não se justificam mais.
Enquanto não formos capazes de reconhecer que um novo aeroporto é um projecto de interesse nacional, que deve ser tratado com visão estratégica, rigor técnico e elevada qualidade de decisão política, a um nível supra partidário (…) o projecto do “novo aeroporto” vai ficando cada vez mais velho.
A opção “Alcochete” é de longo prazo, tem construção possível em 10 a 12 anos, após a efectiva decisão de avançar e correspondente viabilização financeira, com uma capacidade que, com quatro pistas, pode ser superior a 105 movimentos/hora. A formatação da decisão e a sua viabilização levam seguramente 2 a 3 anos a consolidar, de acordo com o que tem sido o nosso melhor padrão nacional nestas decisões. Portanto, esta opção, num cenário optimista, nunca poderá acontecer a menos de um horizonte de 15 anos, e terá de ser projectada para os 30 anos seguintes, razão pela qual as projeções de tráfego vão tipicamente para lá de 2050. Todos os especialistas sabem que a esta distância o grau de incerteza é elevadíssimo, e a única forma de o mitigar é ajustar as estimativas realizando novas previsões a períodos regulares.
Portanto, e em síntese, estas opções não são comparáveis. Podem ser complementares no eixo do tempo, se tal for decidido. Isto é “Portela + Montijo” é a solução de curto-médio prazo, enquanto se tomam decisões estratégicas para a solução de longo-prazo.
Mas, note-se, no longo-prazo não é o aeroporto que atrai passageiros e carga, é o destino. Isso implica perguntarmos se temos capacidade para gerar atracção bastante para alimentar um grande aeroporto. .A decisão de investimento em uma nova infraestrutura aeroportuária exige visão estratégica e todo um programa de desenvolvimento que enquadre este projecto, e que assim permita avaliar devidamente os riscos associados, por forma a atrair potenciais investidores.
Enquanto não formos capazes de reconhecer que um novo aeroporto é um projecto de interesse nacional, que deve ser tratado com visão estratégica, rigor técnico e elevada qualidade de decisão política, a um nível supra partidário, continuaremos a trazer o tema a público, de forma recorrente, como convém a alguns, e o projecto do “novo aeroporto” vai ficando cada vez mais velho. Vergonha alheia!
ROSÁRIO MACÁRIO
Professora e Investigadora em Sistemas de Transportes
Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa