Não foi acidental a data de publicação do “Fit for 55”, a 14 de Julho, data da tomada da Bastilha, já que a execução da proposta da Comissão Europeia que visa a redução de 55% das emissões no espaço da União até 2030 requer uma autêntica revolução na economia e indústria europeia para atingir os seus objetivos.
Confesso-me ambientalista, mas também me confesso genericamente simpatizante por causas perdidas. Dito isto, não acredito que em 2030 se consiga atingir o objetivo pretendido de reduções na Comunidade. Não por pessimismo, mas por tendência histórica, afinal, até hoje todos os objetivos definidos para redução de atividades poluentes no planeta têm falhado. É o velho brocardo de ninguém querer andar de bicicleta para salvar o planeta quando todos os outros andam de carro.
Porém, acreditar que nos próximos nove anos nada vai mudar (e nove anos não são nada numa indústria de capital intensivo como a aviação), pode vir a ser um erro fatal. Aliás, aqueles que foram apanhados de surpresa com o plano aprovado, lamento informar, já estão há anos desatualizados. Acreditar que não se prepara a aviação do futuro no presente, é condenar-se a ficar sem futuro.
Por definição, uma revolução requer uma alteração abrupta do paradigma atual. A determinação de rotas a operar, o perfil de passageiros, o equipamento a utilizar, os combustíveis em que investir, são tudo elementos que não serão colocados em causa no futuro, ao invés, são elementos colocados em causa já no presente e que têm de ser considerados em qualquer decisão estratégica do futuro já que o contexto em que a aviação retornará no pós-pandemia, é diferente do contexto de 2019.
Se é verdade que o “Fit for 55” inclui várias propostas legislativas que visam alterar a forma como os operadores aéreos fazem negócio, e que analisaremos com mais detalhe nos próximos meses, o “Fit for 55” não é o alfa e ómega da mudança, não inclui, nem de perto, a totalidade da mudança pretendida até 2030. Essa está já em curso à nossa volta, e as medidas legislativas já aprovadas e em vigor, ou em vias de aprovação, em outras jurisdições, têm de ser acauteladas e consideradas, não só pelo seu impacto imediato como pelo zeitgeist que delas se retira. Em concreto, e dando alguns exemplos:
A censura a voar é real. Atualmente, em França encontra-se em curso a proibição de voos em rotas onde exista uma ligação ferroviária direta. Naturalmente, em Portugal o peso de uma medida semelhante seria bem menor, mas o incentivo à utilização de formas alternativas de transporte pelo legislador é um sinal que não pode ser ignorado.
Este movimento de censura à utilização de aeronaves deve ser integrado num quadro de crescimento da vertente de “happy localism” no turismo, ou seja, o reforço positivo de soluções locais como destinos turísticos que não exigem a utilização de aeronaves para as deslocações. Aliado aos riscos de alterações climatéricas que tornam os destinos do mediterrâneo menos apelativos, os fatores de incerteza não podem ser ignorados. Para um país como Portugal, isto representa uma alteração significativa do perfil dos passageiros com uma redução de turistas de médio curso. Aliado à normalização de reuniões e contactos em teleconferência, também o tráfego de negócios terá de ser analisado com cautela nos próximos anos.
O “Fit for 55″ (…) importante no seu conteúdo, é mais relevante ainda pelo contexto em que foi discutido e aprovado. Não é um mapa da revolução que se pretende, é um plano de saída para a revolução em curso.
Em terceiro lugar, a taxação de combustíveis é outro elemento que tem sofrido uma forte pressão nos últimos anos. Ao contrário do que muitas vezes é assumido por profissionais na área, não existe uma proibição dogmática de taxação de combustíveis. Nos termos da Convenção de Chicago, é proibido aos estados contratantes taxar o combustível transportado a bordo das aeronaves quando estas entram no seu território (artigo 24.º da Convenção de Chicago). A nível de acordos bilaterais de serviços aéreos, nem todos preveem a proibição de se taxar o combustível e não é incomum encontrar reservas a tais isenções[i]. Por exemplo, nos comentários adicionais ao Documento suplementar ao Doc. 8632 da ICAO sobre taxação, a Noruega declara: “[ii]A Noruega questiona as razões para a isenção de impostos de combustíveis na Resolução. A politica fiscal relativa à proteção ambiental é justificação suficiente para a introdução de impostos sobre combustíveis utilizadas pelas aeronaves. Em voos domésticos, um imposto é aplicado (desde 1 de janeiro de 1999). A receita do imposto é destinada ao orçamento geral”. Posições semelhantes já foram publicamente assumidas por outros estados, como a Suécia ou a Suíça, embora esta última já tenha apresentado posições contra algumas medidas de foro ambiental e recentemente recusado um imposto ambiental, em referendo.
Em quarto lugar, a taxação da aviação existe em outras formas que não a taxação do combustível. Vários estados têm impostos ambientais sobre o ruído, dirigindo a receita para melhorias das condições aeroportuárias em termos de sonorização. Adicionalmente, existem impostos sobre bilhetes que são cobrados em vários outros estados, o exemplo mais famoso porventura será o imposto solidário existente em França que incide sobre os bilhetes e cuja receita é destinada a países em vias de desenvolvimento[iii].
Em Portugal, aprovou-se este ano um imposto sobre bilhetes a que, infelizmente, se tentou colar a imagem de taxa e de imposto ambiental chamando-lhe “taxa de carbono”. Em nossa opinião, não corresponde nem a uma taxa nem é ambiental. Além da má qualidade legislativa, lamenta-se que ao criar um falso imposto ambiental se esteja a retirar espaço de manobra ao legislador de tomar medidas verdadeiramente ambientais.
Finalmente, há vários anos que os modelos de contratação de pessoal dos operadores aéreos têm sido objeto de regulamentação, mormente na determinação do estado competente para fins de Segurança Social. Deve esperar-se que medidas genéricas de combate a práticas de dumping social, venham a reduzir a flexibilidade de contratação dos operadores aéreos. Não compreender que a determinação de mínimos de dignidade social se encontra relacionada com crescimento sustentável é não compreender a revolução em curso.
Em conclusão, a indústria de transporte aéreo já habituou todas as partes interessadas a constantes mudanças, faz parte do dinamismo da indústria e a mudança deve ser abraçada; todavia, a mudança deve também ser preparada.
O “Fit for 55″, de que falaremos com mais detalhe, sendo importante no seu conteúdo, é mais relevante ainda pelo contexto em que foi discutido e aprovado. Não é um mapa da revolução que se pretende, é um plano de saída para a revolução em curso.
[i] Decisão do Conselho 2007/339/EC;
[ii] “However, Norway questions the reasons for the tax exemption concerning fuel in the Resolution.
Tax policy in respect of environmental protection may be a reason for introducing taxes on fuel for
the use by aircrafts in general. For domestic flights, a tax on fuel is applicable in Norway (effect
from 1 January 1999). The revenue from this tax accrues direct to the Norwegian Exchequer.”
[iii] A receita é tratada de acordo com o artigo 22 da lei n.º 2005-1720 datada de dia 30 de dezembro de 2005
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper