De entre todos os negócios do shipping a compra e venda de navios é historicamente conhecida por proporcionar muito de tudo: grandes lucros, gestores geniais, grande corrupção, grande lavagem de dinheiro, grandes fugas legais e ilegais ao pagamento de impostos, etc..
Contrariamente a outros ativos cujo valor se deprecia ao longo da sua vida económica, os navios valorizam-se quando os mercados estão fortes. Quando as taxas de frete atingem níveis extraordinários, o valor dos navios no mercado de compra e venda sobe para valores também extraordinários, pois os investidores têm a expetativa de obter cash-flows elevados, de forma rápida e com risco possível de controlar através de contratos de fretamento de médio/longo prazo.
Grande parte dos lucros dos proprietários de navios é feito na compra e venda dos mesmos; não são lucros de operações de prestação de serviços de transporte marítimo.
Desde há vários anos, os académicos estudaram os ciclos do shipping utilizando as mais avançadas técnicas de análise de dados, e concluíram que o transporte marítimo está sujeito a um sem número de variáveis, entre elas eventos geopolíticos e desastres naturais. A volatilidade nos mercados é gigante e qualquer profissional do setor ouviu falar de situações em que navios duplicaram ou triplicaram de valor em poucos meses.
Acompanhando dia e noite o mercado muitos armadores fizeram fortuna comprando e vendendo navios no momento certo. Na crise de 2008, dois navios capesize gémeos (navios graneleiros com capacidade de carga entre as 110.000 e as 200.000 toneladas) foram vendidos com alguns meses de diferença por mais 90 milhões de USD do que o valor de compra.
São menos faladas histórias em que o valor dos navios desceu de forma abrupta e súbita e em que os proprietários e os bancos financiadores perderam milhões…
Mas onde Portugal é sem dúvida reconhecido internacionalmente é pela forma como os Governos, através de empresas controladas pelo Estado, decidem comprar e vender navios.
O que atrás se refere é O MERCADO A FUNCIONAR, onde muitos armadores, proprietários, gestores de navios e gestores de fundos de investimento têm a sua vida pessoal e/ou profissional. Mas vêm ao shipping muitos outros personagens que não gerem ou operam navios, mas que “descobriram o negócio” ou “foram aconselhados” a investir em navios para utilizar esse potencial de fazer fortuna.
Em Portugal, apesar da sua pequenez em termos de shipping, muitos profissionais terão ouvido falar, no passado e até mais recentemente, de empresários de outros setores a investir somas consideráveis em navios numa ótica de pura especulação e a perdê-las, de bancos a financiar operações de compra com base em planos de negócio absurdos e garantias baseadas em avaliações falsas do valor dos navios, armadores a receber subsídios do Estado para comprar navios dos quais já eram proprietários, estaleiros navais do Estado a construir navios com prejuízos elevados, bancos apoiados pelo Estado que vendem com enormes perdas navios que lhes ficaram nas mãos, através de múltiplos intermediários que fazem fortuna, etc., etc..
Mas onde Portugal é sem dúvida reconhecido internacionalmente é pela forma como os Governos, através de empresas controladas pelo Estado, decidem comprar e vender navios.
Na Wikipedia podem encontrar a história do navio “Atlântida”, que começou em setembro de 2006, com a assinatura de contrato entre os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC- Estado) e a empresa Atlânticoline (Governo Regional dos Açores) para construção do navio. Dessa história só não consta o valor de custo de produção do navio para os estaleiros que, segundo dados vindos a público recentemente, terá sido próximo dos 60 milhões de Euros (40% acima do preço inicial do contrato de construção).
Claro que casos como o do navio “Atlântida” nada têm a ver com O MERCADO A FUNCIONAR. Trata-se simplesmente de uma situação em que a gestão ruinosa de dinheiros públicos proporciona, no seu cúmulo, uma “genial” obtenção de mais valias por empresário privado. O que este caso tem de surpreendente é que foi o próprio comprador/vendedor que anunciou na comunicação social, em 2013, que o negócio tinha sido montado com base em empresas com sede em país onde as mais valias obtidas em negócios do shipping não pagam impostos ou eles são muito reduzidos.
Na Posidonia, uma feira internacional muito conhecida no shipping que teve lugar recentemente, foi referido que, de acordo com as Contas de 2021, uma empresa de origem grega (Danaos Corporation) tinha tido um lucro líquido de 1,05 mil milhões de dólares decorrente de mais valias na venda de navios porta-contentores. Valor nunca atingido no passado. Alguém sabe o nome da família grega que é o maior acionista e gestor da empresa? Alguém os ouviu reclamar genialidade? Não são estrelas da televisão. A empresa está cotada no New York Stock Exchange desde 2006.
Portugal também é conhecido pela arrogância dos seus governantes que raramente reconhecem erros e, por isso, estão sempre disponíveis para a voltar a repeti-los.
Em curso, está a construção em estaleiro espanhol de navios ferry de propulsão elétrica, por decisão do Governo de António Costa e Matos Fernandes, para a Transtejo – Transportes Tejo, S.A. O primeiro de 10 navios foi lançado à água em maio deste ano. Está ainda a decorrer o concurso para a empreitada de conceção/construção e fornecimento das estações de carregamento de energia de terra para esses navios. Como referi em vários artigos anteriores, na minha opinião o Governo e a Administração da Transtejo reuniram as condições para que o projeto seja o próximo desastre técnico e financeiro do shipping nacional.
Para o futuro temos mais navios ferry. Um comentador de televisão referia que uma das grandes vantagens do novo aeroporto do Montijo era ambiental. Segundo ele, os passageiros depois de saírem do terminal do aeroporto serão transportados para a cidade por meios sem impacto ambiental: ferries com propulsão a hidrogénio (algo em fase experimental em países nórdicos). Mais um grande projeto do shipping nacional que se espera, ao contrário do anterior, seja um dia avaliado em todos os aspetos técnicos, económicos e financeiros. Irá o Governo encomendar já 10 navios com propulsão a hidrogénio?
Os decisores políticos e os gestores públicos que entram no frenesim de comprar e vender navios construídos com dinheiros públicos devem saber que estão em zona de perigo porque o seu conhecimento do mercado é nulo ou insuficiente. A alternativa para por em prática projetos públicos de transporte marítimo é colocar a concurso público a execução de serviços com base em cadernos de encargos bem elaborados, não apenas do ponto de vista jurídico, mas em particular do ponto de vista técnico. Deixar que sejam os privados a assumir os riscos do investimento nos ativos-navios. Controlar de forma rigorosa a execução dos contratos.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos