Quanto do teu cloreto de sódio são lágrimas de Portugal!
Felizmente o sal (NaCl – cloreto de sódio) é um produto químico que não está classificado como perigoso. Mas, nem por isso é inócuo ou indiferente e, neste caso, se mal utilizado, assassina um dos versos mais marcantes da literatura portuguesa …
Quero com isto dizer que nem todos os produtos químicos são classificados como perigosos, mas existe sempre algum risco subjacente ao seu bom ou mau uso, quer sejam classificados ou não!
O que muitos parecem não saber é que os critérios de classificação, e as regras decorrentes da classificação das mercadorias perigosas para transporte, estão em permanente atualização e revisão, em ciclos de dois anos, o que parecendo ser uma virtude do sistema facilmente se transforma num dos seus maiores defeitos.
Ou seja, os textos e as regras dos regulamentos são alterados mas as pessoas, parte fundamental do sistema, na grande maioria das vezes não conseguem acompanhar esta velocidade, quer pela complexidade e extensão, quer por estarem dedicadas a todas as outras tarefas ditas normais.
Falo disto a propósito de mais uma edição do Código IMDG, aplicado ao transporte marítimo de mercadorias perigosas na forma embalada ou em unidades de transporte de carga, ou seja, por exemplo, aplicado no caso da carga geral, na carga contentorizada ou no transporte de carga rolada.
Apesar das alterações recorrentes, há ainda uma grande maioria de empresas a fazer como sempre se fez, alheias a que o que possa ter sido correto esteja agora bastante distante das regras a que estão obrigados.
Há cinco anos, a Tutorial fez a primeira edição integral do Código IMDG em língua portuguesa (emendas 37-14), por ter identificado o elevado nível de incumprimento e desconhecimento sobre este importante instrumento aplicado ao transporte de mercadorias perigosas, com o intuito de instituir um caráter de regularidade no processo de atualização.
As novas emendas 40-20, que podem ser aplicadas voluntariamente desde o início do presente ano, e que terão caráter obrigatório a partir de 1 de junho de 2022, para além de trazerem mais números ONU (chegando a Lista de Mercadorias Perigosas agora ao UN 3549) compreendem mais de 600 alterações, supressões ou inserções, explanadas nas mais de 1000 páginas dos seus dois volumes (na edição portuguesa, 1138 páginas).
Apesar das alterações recorrentes, há ainda uma grande maioria de empresas a fazer como sempre se fez, alheias a que o que possa ter sido correto esteja agora bastante distante das regras a que estão obrigados.
Por exemplo, o hábito de chamar classes IMO às classes de perigo leva muitos a escrever “IMO” antes do número da classe, no momento de elaborar as declarações de carga perigosa, o que faz com que os documentos não só não respeitem as regras definidas para o transporte marítimo, como estejam igualmente em incumprimento caso as mercadorias sejam transportadas noutro modo de transporte.
Este “pequeno incumprimento” poderia ser sancionado no caso português (por aplicação do quadro sancionatório previsto no DL 180/2004, conforme alterado), relativamente às empresas, com coimas acima dos 10.000 euros. Refiro “poderia”, pois tenho dúvidas que alguma vez tal tenha sido aplicado…
O rei vai nu, mas ninguém tem a coragem de uma criança para o verbalizar.
É certo que os investimentos feitos na digitalização poderão fazer o seu caminho e atuar como elementos de prevenção ou deteção de cargas mal declaradas ou mesmo não declaradas, mas teremos que estar atentos aos dois circuitos que vincadamente trilham caminhos cada vez mais separados: o circuito da documentação e o circuito da carga. A velocidade a que circulam é tão elevada que, contrariamente ao que era necessário, nunca se cruzam.
Quando se pensa que as questões do Código IMDG são apenas importantes para as empresas de transporte marítimo (…), tal é altamente redutor e é um obstáculo a uma verdadeira cultura de segurança.
Mas entre os riscos da digitalização e da automação está o esvaziamento do conhecimento, com a agravante de se pensar que este não é necessário…
É cada vez mais importante o desenvolvimento de competências e a formação (por sinal obrigatória para todos os que têm que executar operações relacionadas com todos os modos de transporte de mercadorias perigosas) tem que ser levada a outra dimensão, transformando cada trabalhador/formando num ser aprendente, capaz de se adaptar a novas situações, com comportamentos intrinsecamente seguros.
Conhecer as novas regras tem que ser a norma e nesse sentido é importante utilizar as melhores ferramentas. Assim como importante é mantermos a nossa capacidade de questionar, a origem e pertinência do que está a ser aplicado, se tem ou não uma base legal.
Quando se pensa que as questões do Código IMDG são apenas importantes para as empresas de transporte marítimo e da mesma forma se pensa que as questões do ADR só importam aos transportadores rodoviários, tal é altamente redutor e é um obstáculo a uma verdadeira cultura de segurança. A segurança é um bem partilhado, complexo e permanentemente ameaçado. Não há a nossa segurança e a segurança dos outros, mas como o sal no prato, deve existir na dose certa, sob pena do resultado final ser desastroso.
Apropriando-me da expressão “a carga encontra sempre o seu caminho” está nas nossas mãos garantir que este seja o mais seguro, sem entraves ou custos excessivos e irracionais, face ao risco envolvido. A proibição é por vezes a opção mais fácil e egoísta daquele que não percebe a envolvente e de forma desresponsabilizada exerce o seu poder, quer seja num telefone, numa secretária ou num gabinete.
Àqueles que diabolizam as mercadorias perigosas, seria importante uma incursão simplificada na regulamentação ou no tema, pois um contacto desacompanhado pode intensificar medos e promover vulnerabilidades; desvios que podem conduzir ao próximo abismo.
A segurança da cadeia logística (toda ela, pois as cargas perigosas e não perigosas cruzam-se e entrecruzam-se em todos os instantes) depende cada vez mais do conhecimento e da compreensão.
Não basta garantir que as declarações de conformidade para as mercadorias perigosas (declaração do expedidor e certificado de carregamento do contentor/veículo) têm que estar devidamente assinadas (se corretas!!) no papel ou digitalmente. Os volumes apresentados para transporte também têm a sua forma de se declarar, através de etiquetas e marcas informando os seus perigos e a sua conformidade. O mais importante é garantir que as duas formas de declaração tenham a informação necessária, credível e concordante.
Hoje, sob o jugo de “alguns softwares”, pedem-se informações desnecessárias na busca de tudo saber (como é o caso da constituição e capacidades de embalagens interiores de embalagens combinadas, ou ainda mais aberrante, os códigos das embalagens), Fichas de Dados de Segurança, “porque sim”, porque se julga obrigatório…
Ruido, ruido e mais ruido, pois complica-se o processo esquecendo o que é importante, poderíamos dizer que é “fogo de UN 1327”*, que é como quem diz: “Fogo de palha”.
Porque todas as cargas são perigosas, mas apenas algumas são classificadas como tal e a palha é uma delas (e se húmida, molhada ou contaminada com óleo, é proibida de ser transportada) no transporte marítimo…
Seguramente.
Código IMDG – Código Marítimo Internacional das Mercadorias Perigosas, para cargas embaladas ou em unidades de transporte
ADR – Acordo relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada
UN 1327 PALHA 4.1 (conforme deve ser declarado em conformidade com o 5.4.1.1 do Código IMDG)
JOÃO CEZÍLIA
Tutorial, Lda.
Especialistas em transporte de mercadorias perigosas