No dia em que o século começou, a aviação teve um infeliz papel de destaque. Vinte anos após o 11 de setembro de 2001, a imagem das aeronaves a colidir com as torres gémeas é representativa de grande parte do mundo que vivemos.
Uma das consequências do atentado foi que, pela primeira vez, foram utilizadas aeronaves como armas na realização de um atentado. Ou seja, o atentado não decorreu no aeroporto, ou dentro de uma aeronave, mas através da utilização das próprias aeronaves como arma, o que foi tenebrosamente revolucionário. Sinais disso, e da reação da comunidade internacional ao atentado, encontram-se no texto do Protocolo Suplementar à Convenção para a Repressão da Captura Ilícita de Aeronaves, aberto a assinatura em 2010, um dos vários instrumentos pensados e aprovados no seguimento da Resolução da Assembleia da ICAO A33-1.
…o que é de assinalar, quando comparado o pacote atual com o pacote aprovado em 2001, é a ausência do cuidado, por parte da Comissão, na limitação aos apoios aos danos diretamente resultantes pela suspensão das operações em virtude do encerramento de fronteiras a que assistimos nos últimos dois anos…
Aproveitando a data, e não alongando os inúmeros desenvolvimentos em matéria de segurança da aviação desde então, é importante recordar os efeitos económicos que resultaram do atentado. Quando as companhias aéreas ainda recuperavam do aumento abruto do preço de combustível que antecedeu o atentado, estas tiveram de lidar com o aumento do receio em voar e consequente redução das taxas de ocupação das aeronaves, especialmente nos voos domésticos dos Estados Unidos e nas rotas internacionais norte-atlânticas, com o encerramento do espaço aéreo norte-americano à aviação comercial durante quatro dias (até ao dia 14 de setembro de 2001), e principalmente com o elevado aumento do custo dos prémios de seguros de aviação.
Este cenário levou a que o tema dos auxílios estatais tivesse uma súbita atenção nos meses seguintes, tanto nos Estados Unidos da América como no resto do mundo, o que se torna assaz pertinente nos tempos atuais.
Tendo o Governo dos Estados Unidos da América, onde os operadores foram mais afetados, adotado em 2001 um pacote de medidas em benefício das suas companhias que incluía instrumentos de crédito especialmente aprovados para as companhias aéreas, e um auxílio direto e imediato de cinco mil milhões de dólares a distribuir por todos os operadores norte-americanos, a pressão sobre o bloco europeu em aliviar as restrições aos auxílios estatais fez-se imediatamente sentir. Como reação, a Comissão aprovou um pacote de medidas destinadas a compensar os operadores europeus, desde que as seguintes condições fossem respeitadas:
- A compensação ser atribuída de modo não discriminatório a todas as companhias aéreas de um mesmo Estado-Membro;
- A compensação ser limitada aos custos suportados entre 11 e 14 de Setembro de 2001;
- O montante ser calculado de forma precisa e objetiva através de critérios pré-determinados.
Adicionalmente, e em relação aos seguros aeronáuticos, os Estados-membros foram autorizados a cobrir a aumento extraordinário dos prémios de seguro dos operadores aéreos por um período limitado e apenas na escala da insuficiência de mercado ocorrida.
Ainda no que se refere aos apoios prestados no pós 11 de Setembro, a 27 de maio de 2003 a Comissão abriu um procedimento contra o governo Helénico referente ao auxílio prestado a 11 de julho de 2002 à companhia Olympic Airways por, alegadamente, ter recebido apoios em excesso do permitido. A questão foi decidida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no acórdão T-268/06 de 25 de junho de 2008, o qual declarou, “tratando-se de uma exceção ao princípio geral da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado comum, enunciado no artigo 87.º n.º 1, CE, o artigo 87.º, n.º 2, alínea b), CE deve ser objeto de uma interpretação estrita. Portanto, só podem ser compensados, na aceção dessa disposição, os prejuízos causados diretamente por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários.” (sublinhado nosso)
Ou seja, o Tribunal teve o cuidado de salientar a importância de a compensação em causa respeitar aos prejuízos diretamente resultantes do acontecimento extraordinário, recordando a importância de uma leitura estrita do regime excecional ao abrigo do qual as ajudas foram aprovadas. Prosseguindo, o Tribunal veio ainda a declarar que: “Consequentemente, deve existir uma relação direta entre os danos causados pelo acontecimento extraordinário e o auxílio de Estado, e é necessária uma avaliação tão precisa quanto possível dos danos sofridos”[1].
É curioso como à altura do 11 de setembro a Comissão teve o cuidado, respeitado pelo Tribunal, de garantir que os auxílios estatais prestados fossem absolutamente idênticos para todas as companhias auxiliadas, suportando os danos resultantes dos mesmos factos e calculados de forma objetiva.
A pertinência desta matéria nos tempos atuais é óbvia. Volvidos vinte anos do atentado, a Comissão volta a declarar que a crise pandémica em que vivemos se qualifica como uma situação excecional em que as condições de operação “diferem acentuadamente das condições de mercado em que normalmente operam. Mesmo empresas sólidas, bem preparadas para os riscos inerentes à atividade empresarial normal, podem ter dificuldades nestas circunstâncias excecionais, de tal forma que a sua viabilidade possa ser posta em causa.”[2]
Neste contexto, a Comissão volta a permitir a aprovação excecional de um conjunto de apoios aos operadores aéreos, os quais incluem:
- Subvenções Diretas até um montante pré-determinado, adiantamentos reembolsáveis ou benefícios fiscais;
- Prestação de garantias sobre empréstimos para garantias de liquidez;
- Taxas de juro bonificadas para os empréstimos;
- Seguros de crédito à exportação de operações garantidas a curto prazo.
…o tratamento diferenciado de operadores por parte dos Estados-Membros, e em especial a relevância da existência de participações públicas como critério na atribuição de apoios, também terá de ser justificado…
Não sendo necessário discutir a excecionalidade dos tempos atuais nem a importância destas ajudas para a sobrevivência de alguns operadores, o que é de assinalar, quando comparado o pacote atual com o pacote aprovado em 2001, é a ausência do cuidado, por parte da Comissão, na limitação aos apoios aos danos diretamente resultantes pela suspensão das operações em virtude do encerramento de fronteiras a que assistimos nos últimos dois anos. O desenho destes apoios incidem na prestação de auxilio a determinados operadores aéreos, sem uma forma objetiva de determinação de quais, deixando liberdade aos operadores na sua determinação, em detrimento de, em semelhança com 2001, se terem desenhado e concedido os apoios atendendo os danos sofridos avaliados de forma concreta e precisa, como o tribunal exigiu no caso da Olympic Airways.
É perante a diferença de comportamento por parte da Comissão na crise atual, em comparação com 2001, que se coloca em questão a forma como os apoios foram atribuídos na presente crise, em Portugal e em outros Estados-Membros. Se os apoios visam compensar riscos específicos resultantes de situações extraordinárias, a compensação dos danos sofridos por apenas alguns operadores terá de ser justificada pelo Tribunal perante o artigo 107(2)(b) do Tratado.
Adicionalmente, o tratamento diferenciado de operadores por parte dos Estados-Membros, e em especial a relevância da existência de participações públicas como critério na atribuição de apoios, também terá de ser justificado, não só perante as instituições europeias, mas também perante os cidadãos dos Estados-membros que assim procederam, como foi o caso de Portugal. Recorde-se que, em 2001, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 153/2001 apoiou todos os operadores nacionais, no pagamento de prémios de seguros independentemente da estrutura acionista dos operadores aéreos. Da mesma forma, o governo francês, na crise atual, apoiou todos os operadores licenciados em França, independentemente da estrutura acionista destes.
O interesse publicamente assumido pela Ryanair em contestar os termos em que os presentes subsídios estão a ser prestados encontra-se obviamente relacionado com a sua estratégia empresarial perante os antigos operadores de bandeira quando comparativamente beneficiados pelos apoios em causa.
Contudo, a posição da operadora irlandesa, contextualizada com o retrocesso na posição da Comissão quanto aos auxílios prestados a determinados operadores aéreos quando comparamos o atual regime de ajudas ao de 2001, levanta questões bastante pertinentes. A vontade dos estados-membros de apoiar operadores aéreos nacionais, obstaculizando a sua concentração e perpetuando um mercado demasiadamente fragmentado para ser competitivo não é novidade, é a posição da Comissão e a sua aparente submissão a interesses de Estados-Membros nesta matéria que parece ser um sinal de novos tempos. Aguardemos o que o Tribunal tem a dizer.
[1] Parágrafo 52 do acórdão T-268/06, “Olympiaki Aeroporia Ypiresies vs. Comissão”, no mesmo sentido, e citados na decisão, acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Fevereiro de 2006, Atzeni, e o., processo C-346/03 e C-529/03;
[2] P.8 da comunicação da Comissão “Quatro temporário relativo a medidas de auxilio estatal em apoio da economia no atual contexto do surto de COVID-19”
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper