Desde o final do século passado que o projecto de modernização da rede ferroviária nacional e a introdução da alta velocidade foi uma promessa constante de vários governos, chegando-se até a adjudicar o primeiro troço da nova linha em bitola europeia, entre o Poceirão e a fronteira do Caia. Com o resgate da troika a que o país teve de recorrer em 2011, todos estes projectos sofreram uma paragem abrupta ou foram pura e simplesmente abandonados.
Todavia, após esta interrupção forçada por falta de financiamento, o governo saído das eleições de 2015 questionou mais de 30 anos de projectos para a rede ferroviária, revertendo as opções tomadas desde 1985 e acordadas em cimeiras Ibéricas com o país vizinho, nomeadamente quanto às prioridades a seguir e à bitola a utilizar (bitola UIC) nas novas linhas de alta velocidade ferroviária (AVF). Ao invés, continuou-se o processo da modernização da linha do Norte (que se arrasta por mais de 30 anos) antes de construir a linha de AVF entre Lisboa e o Porto, implicando que as obras se tenham de processar sobretudo no período noturno, com significativos aumentos dos custos e evidentes transtornos na circulação dos comboios entre as duas áreas metropolitanas do país. Por outro lado, atribuiu-se prioridade à ligação Lisboa/Badajoz/Madrid, antes de consolidar o serviço na faixa litoral atlântica, onde reside mais de 80% da população do país e onde se produz 2/3 dos bens e serviços.
A aprovação do Plano Ferroviário Nacional (PNF) em 2022 veio consolidar estas opções, parecendo esquecer-se que o sistema ferroviário funciona em malha e há uma hierarquia de ligações em que as linhas de menor procura funcionam como alimentadoras das principais, devendo estas contribuir para a consolidação do modelo territorial constante do PNOPT, aprovado em 2019.
Recentemente, a Assembleia da República aprovou o lançamento do concurso internacional para o primeiro troço da ligação Lisboa/Porto, entre Gaia e Oiã (Aveiro), segundo um modelo PPP para construção e manutenção, optando pela bitola ibérica, ainda que, para garantir o financiamento europeu, o governo se tenha comprometido a proceder à emigração para a bitola UIC após estudo de rentabilidade financeira. Não se percebe esta opção, tanto mais que qualquer processo de mudança de bitola implica o encerramento da linha de AVF e a passagem do serviço para a linha do Norte com todos os problemas que daí derivam de ter a circular na mesma infraestrutura comboios regionais e comboios de alta velocidade, o que só é possível diminuindo fortemente a velocidade destes. Nestas condições, não será surpreendente que a análise financeira desta eventual mudança de bitola venha a concluir pela sua inviabilidade…. Está-se assim a perder uma oportunidade (talvez a última) de promover uma maior utilização do transporte ferroviário do país nas ligações de maior distância e quebrar de vez a sua falta de competitividade com o transporte individual e o avião.
…o protelar da abertura ao mercado do serviço ferroviário de passageiros (…) constitui mais um entrave à melhoria do serviço ferroviário no país
A ADFERSIT tomou posições claras a este respeito no período de preparação do PNF e aquando da sua discussão pública. De entre estas, realça-se a defesa de uma rede estruturante interoperável com a Rede Transeuropeia de Transportes, onde coexistiriam duas bitolas e composta pelo Corredor Norte/Sul ao longo da fachada atlântica, o Corredor Sul de vocação logístico-marítima e de ligação a Madrid em AVF, o Corredor Norte, mais vocacionado para o transporte de mercadorias e ligando os portos de Aveiro e Leixões a Salamanca. Esta rede principal completa-se por uma rede regional de serviço às aglomerações urbanas cuja massa crítica justifica um serviço ferroviário de qualidade e competitivo com o transporte rodoviário, além de criar conectividade de malha acrescida e alimentar a rede estruturante. Para além destas duas redes pugnava-se pelo reforço do serviço ferroviário nas duas grandes áreas metropolitanas do país, tanto no que se refere às redes suburbanas como às dos metropolitanos e eléctricos modernos.
Por outro lado, pensamos que o protelar da abertura ao mercado do serviço ferroviário de passageiros, de acordo com a diretiva comunitária aprovada em 1991 e só transposta para a legislação nacional em 2001, constitui mais um entrave à melhoria do serviço ferroviário no país e uma forma de manter a CP sem capacidade de influenciar decisivamente a definição de prioridades e o faseamento das intervenção na rede ferroviária nacional, com os evidentes prejuízos que isso tem implicado para a sua prestação de serviço público. A concorrência com operadores privados não só permitiria acréscimos de tráfego e redução de custos para os utentes da ferrovia (à semelhança do que se verificou em Itália, França e Espanha onde essa liberalização do acesso ao mercado já é uma realidade há mais de dez anos), daria um impulso à modernização da própria CP, como proporcionaria o desenvolvimento do sector ferroviário e uma maior capacidade de negociação com o gestor da infraestrutura.
Ainda neste âmbito, são hoje evidentes as consequências da estratégia de se ter diluído a antiga REFER na então Estradas de Portugal. A cultura rodoviária acabou por consolidar o seu tradicional domínio, como seria de esperar e foi alertado por todos os especialistas e entidades do sector ferroviário, entre as quais a ADFERSIT. Não só se perdeu um saber fazer aprimorado ao longo de décadas como, face à insuficiente dotação de meios técnicos e à maior capacidade de intervenção na rede rodoviária, as especificidades da ferrovia acabaram por não ser devidamente atendidas. Os sucessivos atrasos na realização das obras e intervenções na rede ferroviária, a fraca concretização dos planos previstos nos programas Portugal 2020 e PRR, são disso uma consequência.
Continuamos a considerar que estas posições são actuais e potenciam uma real modernização do sistema ferroviário nacional, permitindo ao poder político reequacionar prioridades, recuperar os atrasos em relação à concretização da maioria das obras e completar algumas intervenções que, tal como estão a ser realizadas, não resultarão de melhorias na velocidade de circulação dos comboios (casos das linhas do Oeste e do Algarve).
Sem isso, iremos muito provavelmente falhar o desígnio nacional de fazer do século XXI o século da ferrovia no país.
FERNANDO NUNES DA SILVA
Presidente da ADFERSIT
Excelente artigo, onde se indica o que neste pais nunca se fez e agora se quer dizer que queremos fazer.
Mais vale fazerem intervenções ferroviárias no comboio da Costa da Caparica que iriam ter o mesmo resultado.
Temos governantes e ditos “ferroviários” com muito pouca visão de futuro, não de futuro legislativo mas de futuro de investimento 20 a 30 anos.