Rui Raposo
Presidente da Associação de Armadores da Marinha de Comércio
O ano de 2021 continuou a ser vivido em ambiente de elevada preocupação e perturbação originado pela pandemia provocada pelo coronavírus (SARS-COV2) herdada de 2020, obrigando a esforços na redução dos impactos sociais, operacionais e económicos provocados e para a resolução dos muitos problemas suscitados, com especial destaque para a rendição dos tripulantes, os casos pandémicos a bordo e a vacinação de todos os marítimos,
Enquanto tal, persistiram ao longo do ano as preocupações dos armadores nacionais herdadas do exercício anterior quanto à necessidade de reduzir, tão rapidamente quanto possível, as emissões dos gases de estufa emitidos pelos navios rumo à total descarbonização e, bem assim, quanto às perturbações que nos últimos 8 anos têm afectado a actividade portuária, principalmente no porto de Lisboa, geradas pelas sucessivas situações de greve.
No primeiro caso, estiveram em consideração as medidas perspectivadas pelo European Green Deal (Pacto Ecológico Europeu) apresentado pela Comissão Europeia no final de 2019, que evoluiu ao longo de 2020 dando origem, já em 2021, à nova Lei Europeia do Clima e que culminou com a apresentação, em 14 de Julho, do volumoso pacote legislativo “Fit for 55”, que visa implementar os objectivos do Pacto Ecológico Europeu e, em especial, o objectivo de, até 2030, se reduzir em 55% as emissões dos gases de estufa quando comparadas com as de 1990, e a criação de uma taxa de cerca de $44 por tonelada de CO2 emitida.
A criação de um Índice de Eficiência Energética (EEDI) para Navios condiciona a velocidade (logo, o consumo) e obriga a que a potência do sistema de propulsão de um navio seja condicionada à carga que se propõe transportar
No segundo caso, porque a situação de greve, que já vinha do ano anterior, se manteve sem qualquer interrupção ao longo de todo o ano, se bem que as suas repercussões, tanto nas operações como no movimento de carga para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira tenham sido minimizadas pelos “serviços mínimos” acordados em 25 de Janeiro.
Para pensar o futuro teremos de ter em consideração que ainda não vai ser em 2022 que o COVID vai deixar de balizar muito as nossas vidas, e equacionar o que somos capazes de fazer em relação à digitalização e à descarbonização.
…localizar a produção mais perto dos grandes centros de consumo europeus (…) poderá determinar uma maior procura pelo transporte marítimo de curta distância para o transporte de mercadorias essenciais, até porque opera com navios mais pequenos e mais amigos do ambiente.
No entanto, é provável que se assista ao início da necessária correcção dos erros cometidos. tanto no que diz respeito ao ambiente como em relação ao modo como se tem organizado a produção mundial e o modelo de transportes.
Durante décadas, o Ocidente deslocalizou fábricas para a Ásia, especialmente para a China e India, e andou totalmente distraído, cometendo erros estratégicos graves, ao permitir que a Ásia fosse adquirindo capacidade para ser o grande produtor e distribuidor mundial de bens essenciais, principalmente de componentes electrónicos para aparelhos que nós todos usamos, peças para construir maquinaria nas fábricas europeias, compostos fundamentais para a fabricação de automóveis e medicamentos para fornecer o Ocidente.
É natural que se assista a uma inversão desta situação, com muitos países a optar por passar a localizar a produção mais perto dos grandes centros de consumo europeus, principalmente dos bens que passámos a considerar essenciais e para os quais não podemos ficar dependentes de países terceiros, o que poderá determinar uma maior procura pelo transporte marítimo de curta distância para o transporte de mercadorias essenciais, até porque opera com navios mais pequenos e mais amigos do ambiente.
Com o que se passa sobre as (in)decisões tomadas principalmente no COP 26 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021, realizada entre 1 e 12 de Novembro de 2021 na cidade de Glasgow, na Escócia, e as metas que estabelecem para a descarbonização do transporte marítimo para 2030 e 2050, deixa todos sem saber que decisões tomar.
De facto, nas entrelinhas destas reuniões percebe-se que nem sequer quem acordou as metas a atingir para a descarbonização em 2030 e 2050 acredita que isso seja possível.
Repare-se na alteração da narrativa:
- O carvão como fonte energética já não é para acabar em 2050, mas sim para ir sendo reduzida a sua utilização (a China já disse que nem pensar acabar com o carvão em 2050) ;
- O zero carbono já não é para ser atingido em 2050, mas para ser tendencialmente zero;
Todos sabemos que o processo de transição energética exige investimentos avultados pelo que carece de regulação para que haja condições concorrenciais idênticas para todos os armadores.
No COP 26 pretendia-se que as medidas a aprovar concretizassem o objectivo de reduzir em 45% as emissões em comparação com 2010.
Fez as contas quem sabe do assunto e chegou à conclusão que as medidas acordadas não só não reduzem as emissões com as aumentam em cerca de 13,6%
Considerando que as medidas apresentadas são as que parece bem ser anunciadas, que são diferentes das que quem as apresentou pensa que pode realizar e ainda muito menos do que as que é capaz de concretizar, em vez de se conseguir que o aumento do aquecimento global não ultrapasse 1,5º até final do século, a continuar tudo como está é uma utopia! Chegaremos ao fim do século com um aumento da temperatura de 2,7º.
Todos os que conhecem minimamente o shipping concordarão que com os navios actuais e com os combustíveis actuais as metas de descarbonização que foram definidas para 2030 e 2050 são impossíveis de atingir.
Parece-me haver grande confusão entre o que é politicamente desejável e o que é tecnicamente possível.
…os pequenos armadores portugueses, que não beneficiaram das oportunidades dos grandes mercados e que operam principalmente no short sea e na cabotagem insular, não podem fazer experiências nem correr riscos de más decisões…
Os armadores não constroem navios, não produzem motores, não fabricam combustíveis, têm de adquirir o que está disponível no mercado e é necessário entender que o ciclo dos navios não está em consonância com os ciclos ambientais nem com as metas fixadas para o chamado “zero carbono”.
Em relação ao shipping, a única coisa certa é a incerteza. Ninguém tem a certeza sobre o “que vai mudar” e “como vai mudar”/“quando vai mudar”.
Os grandes armadores mundiais envolvidos nas viagens intercontinentais, que conseguiram ter lucros em 2021, depois de décadas de prejuízos, podem arriscar decisões, mas os pequenos armadores portugueses, que não beneficiaram das oportunidades dos grandes mercados e que operam principalmente no short sea e na cabotagem insular, não podem fazer experiências nem correr riscos de más decisões:
- Onde vou empregar o navio?
- Que tipo de navio vou encomendar?
- Mando construir o navio em estaleiros europeus ou encomendo o navio à China onde o preço do mesmo custa menos 20% a 25%?
- Que tipo de motorização vou instalar no navio?
- Justifica-se o dual-fuel?
- Vou optar por qual dos combustíveis?
- Haverá oferta desse combustível em quantidade suficiente no mercado e nos portos que eu vou escalar?
- E qual o tipo de propulsão? Convencional ou eléctrico?
Se queremos realmente que os navios sejam ainda mais amigos do ambiente (hoje os navios são o mais eficiente modo de transporte – transportam cerca de 90 % das cargas mundiais e só são responsáveis por 3% das emissões de gases de efeitos de estufa) as verbas pagas pela poluição que provocam têm de ser reinvestidas no sector, para financiar os necessários programas de investigação relacionados com o transporte marítimo, e não utilizadas pelos Governos noutros sectores.
Por outro lado, os custos de desenvolvimento e produção de combustíveis amigos do ambiente não podem voltar a ser suportados pêlos armadores, como aconteceu a 1 de Janeiro de 2020, com a imposição dos navios terem de usar combustível com o máximo de 0,5% de teor de enxofre (VLSFO) em que o preço passou para 569 USD/TM, quando no dia anterior (31 de Dezembro de 2019) o preço do IFO 380 usado nos navios era de 250 USD/TM.
Ou seja, de um dia para o outro o preço do combustível dos navios aumentou 128%.
A estratégia ocidental para a transição energética está a ser muito mal equacionada ao basear-se no aumento dos preços dos combustíveis, o que provou ser um erro, ao causar grandes problemas às economias dos diferentes países porque estas vão continuar, nos próximos anos, a depender muito do carvão, petróleo e gás (nos navios os custos operacionais são muito elevados e a factura dos combustíveis tem um peso expressivo).
Como muito bem refere a ICS – International Chamber of Shipping, “embora a IMO regule os navios, o desenvolvimento de tecnologias, combustíveis, sistemas de propulsão e infraestrutura relacionada que serão necessários para atingir o zero carbono pelo sector, são de responsabilidade e estão no controlo de outras partes que não os armadores, particularmente fornecedores de energia e fabricantes de motores que a IMO não pode regulamentar directamente”.