Desde há alguns anos que o contrato de locação financeira (também designado leasing) assume um papel crucial no financiamento das empresas portuguesas, em particular, no setor dos transportes. Referimo-nos ao instrumento pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, que o locatário poderá comprar, decorrido o prazo acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios fixados no contrato.
Embora o núcleo essencial do contrato de locação financeira seja idêntico ao da locação propriamente dita, uma vez que, em ambos os casos, se pressupõe a existência da obrigação principal do locador de ceder o gozo de determinada coisa móvel ou imóvel e a obrigação correspetiva do locatário de usar a coisa de acordo com o fim a que se destina e de pagar uma renda, a verdade é que também existem diferenças entre estas figuras, que passam não só pelo facto de o leasing estar reservado às instituições bancárias e empresas do setor financeiro autorizadas pelo Banco de Portugal, como também pela possibilidade de o locatário adquirir a propriedade do bem pelo valor residual mínimo pré-determinado no contrato, entre outras.
Como sabemos, a conjuntura económica e financeira internacional, ainda marcada pelo impacto devastador da situação epidemiológica do início da presente década e gravemente afetada pelos conflitos bélicos, tem arrastado muitas empresas para uma situação de insolvência, ficando muitas das vezes por esclarecer que destino deve ser dado aos contratos de leasing ainda em curso, que geralmente têm um contributo considerável para a manutenção da atividade da empresa e para a sua recuperação, que é uma das principais finalidades do processo de insolvência.
Em matéria dos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso, a nossa lei insolvencial estabelece, como regra geral, que qualquer contrato bilateral (sinalagmático) que, à data da declaração de insolvência, não haja sido totalmente cumprido nem pelo insolvente, nem pela contraparte, fica com o seu cumprimento suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou pela recusa do cumprimento, no sentido que julgar mais conveniente, dentro das limitações dos seus poderes funcionais, que são natural e exclusivamente orientados para a satisfação do interesse da massa insolvente.
Contudo, sabemos que nem todos os negócios ainda não totalmente cumpridos à data da declaração de insolvência se sujeitam ao princípio geral, já que o nosso Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) regula, em particular, o destino de várias relações jurídico-contratuais do insolvente. Entre esses casos, encontra-se a locação que, ao contrário do que ocorre com os contratos não abrangidos por qualquer disposição especial, não se suspende com a declaração da insolvência, sendo apenas conferida ao administrador de insolvência a possibilidade de lhe colocar termo mediante denúncia, nos termos legalmente previstos.
Dentro desta temática, tem vindo a ser alvo de discussão na nossa jurisprudência o efeito que a declaração de insolvência terá especialmente no contrato de locação financeira, que, apesar de ser muitas das vezes qualificado como um contrato atípico, por assumir características que o distanciam das demais figuras contratuais traçadas na lei, tem uma base estrutural similar à da locação.
Em concreto, tem sido suscitada a questão de perceber se ao contrato de leasing ainda em curso à data da declaração de insolvência é aplicável o princípio geral (da suspensão do cumprimento), ficando as prestações de ambas as partes paralisadas até decisão do administrador de insolvência, ou se, por outro lado, o contrato se insere nas disposições especialmente aplicáveis à locação, mantendo-se a sua execução até que se opte pela extinção.
A resposta é aparentemente clara, tendo em consideração que, nas disposições do CIRE referentes aos efeitos da declaração de insolvência na venda com reserva de propriedade e operações semelhantes, em que expressamente se optou por inserir o contrato de locação financeira e a locação, quando preveja que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas, o legislador faz remissão para o regime geral, parecendo exprimir um pensamento que vai contra a aplicação da disposição especial para a locação.
…tem sido suscitada a questão de perceber se ao contrato de leasing ainda em curso à data da declaração de insolvência é aplicável o princípio geral (da suspensão do cumprimento), ficando as prestações de ambas as partes paralisadas até decisão do administrador de insolvência, ou se, por outro lado, o contrato se insere nas disposições especialmente aplicáveis à locação, mantendo-se a sua execução até que se opte pela extinção.
Uma grande parte dos nossos Tribunais tem entendido que, embora exista uma evidente proximidade entre ambas as figuras, no contrato de leasing é prevalecente a função de financiamento no interesse e para investimento do locatário (e não do locador-proprietário), que não é característica da locação propriamente dita, pelo que também por esse motivo haveria de ser aplicada a regra geral da suspensão do cumprimento.
Já outros entendimentos jurisprudenciais apontam no sentido de que o facto de podermos estar perante uma figura contratual atípica não nos conduz, sem mais, à aplicação do princípio geral, sendo necessário atender à natureza locatícia do negócio, que está na base da consagração da norma especial que estatui que aquele não é afetado pela declaração de insolvência. Esta solução visa, acima de tudo, a proteção e a maximização dos interesses da massa insolvente, uma vez que permite, no caso em que o insolvente é locatário, a manutenção do gozo do bem móvel ou imóvel locado, que pode ser essencial ao funcionamento da sua atividade empresarial, e, no caso em que aquele é locador, o recebimento das rendas correspetivas.
Apesar de se reconhecer que da aplicação, por interpretação extensiva, do regime previsto para a locação ao contrato de leasing poderiam resultar vantagens para a massa insolvente, a solução de aplicar o regime da suspensão do cumprimento neste caso é aquela que está alinhada com as demais disposições legais aplicáveis em matéria dos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso e que não descora, de igual modo, a satisfação dos interesses dos credores, quer seja num cenário de apresentação de plano de insolvência ou de liquidação do património do devedor. Até porque, o administrador de insolvência, que ficará incumbido de, no período de suspensão, optar pela execução ou pela recusa do cumprimento do contrato, adotará a solução que, no seu entender, melhor acautelará aquela finalidade.
LEANDRO RIBEIRO
Advogado Associado da JPAB
Departamento de Direito Bancário e de Insolvência e Recuperação de Empresas